O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Terra sem lei XII: O III Encontro Nacional de Antropologia do Direito e os índios sob ataque

Hoje, às 16 horas, começará um tuitaço contra a proposta de emenda constitucional que pretende atribuir ao Congresso Nacional a atribuição de demarcar terras indígenas, de quilombolas e unidades de conservação, a PEC 215. Sugiro que vejam o aviso no portal do Instituto Socioambiental (ISA): http://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-isa/hoje-tem-tuitaco-contra-a-pec-215-participe
Na semana passada, referi-me a ela em um evento acadêmico. Eu iria apenas apresentar uma comunicação no III Encontro Nacional de Antropologia do Direito (ENADIR), na Universidade de São Paulo (que ocorreu, claro, não na faculdade de Direito, mas na FFLCH, como nas edições anteriores). No entanto, certo professor não pôde aparecer, e a advogada e colega minha Rosangela Barbosa propôs meu nome para a organizadora do evento, a professora Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer. Assim, acabei coordenando no dia 30 de agosto, com a colega, uma oficina de leitura crítica de peças judiciais sobre questões indígenas.
Rosangela Barbosa destacou a generalizada deficiência em antropologia na formação dos graduados em direito. E tratou dos problemas de aplicação da Constituição brasileira, em relação aos direitos dos índios, pelo Judiciário brasileiro.
Eu lembrei que tanto a Antropologia quanto o Direito Internacional foram criados como instrumentos para a dominação pelas potências coloniais. Mas não devemos nos prender a um fetiche da origem, que é praticamente a metodologia de certos autores pretensamente radicais. A história mostra como esses mesmos instrumentos de saber e poder podem ser apropriados de forma favorável aos índios, e é por isso que ambos (antropologia e direito internacional) estão sob intenso ataque hoje no Brasil, como se viu na recente investida do governo de Dilma Rousseff contra a Comissão Interamericana de Direitos Humanos após a cautelar (já revogada) contra a construção do empreendimento ilegal em Belo Monte.
Quis dar um enfoque também político ao problema, afirmando que os direitos dos índios estavam sob ataque, para fazer jus à questão. O sítio Povos indígenas no Brasil. do ISA, publicou uma lista das atuais ameaças no Poder Legislativo federal, projetos de lei e de emenda à constituição, bem como de portarias e de decreto do Poder Executivo federal: http://pib.socioambiental.org/pt/c/terras-indigenas/ameacas,-conflitos-e-polemicas/lista-de-ataques-ao-direito-indigena-a-terra
Há também ameaças no Judiciário, uma delas a conclusão, no Supremo Tribunal Federal, do julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que oficializará o retorno da doutrina de segurança nacional à Amazônia. Eu já havia escrito um pouco sobre o problema neste blogue, nesta série da "terra sem lei", a destacar a ilegalidade afrontosa da ação dos Poderes desta república contra os povos indígenas. Faço, obviamente, uma ironia com a caracterização colonial dos índios como povos sem fé, sem lei, sem rei.
Se há algo de novo e interessante no uso e invocação, pelos povos indígenas, do direito oficial do Estado que os persegue, isto é, o emprego dos instrumentos jurídicos estatais contra o próprio Estado que os criou e viola acintosamente, a velha novidade é a "cultura cínica em relação às leis" que os três Poderes continuam a cultivar à revelia da Constituição da República e do Direito internacional.
Outra velha novidade é a ressurreição da jamais falecida doutrina da segurança nacional, desta vez com a ajuda do Supremo Tribunal Federal. Tratei disso na comunicação que fiz no ENADIR, de que transcrevo um trecho:

O desenvolvimentismo militarista ainda encontra seus porta-vozes no dia de hoje, e fez-se presente no julgamento do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ainda não encerrado no Supremo Tribunal Federal, na Petição nº 3888-RR (doc. XV). A Terra Indígena havia sido homologada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2005, com 1,7 milhão de hectares, 194 comunidades e cerca de 19 mil índios, o que gerou reação de produtores de arroz, que chegaram à região a partir da década de 1970, invadindo terras indígenas.
O Advogado-geral da União simplesmente transcreveu, no trecho antes citado, excerto do acórdão. Trata-se de evidente violação à Convenção 169 da OIT, desta vez pelo Supremo Tribunal Federal, que pretende que a obrigação de consultar os povos indígenas seja desrespeitada nos casos da política de defesa nacional, o que inclui fontes enérgicas e exploração de riquezas “de cunho estratégico”. A caracterização “estratégica” dessas fontes e riquezas, pretende o tribunal, será da competência do Ministério da Defesa e do Conselho de Defesa Nacional. Temos, assim, a subordinação aos militares de assuntos ligados às políticas de desenvolvimento, que é uma velha novidade: estava presente na última ditadura, o que incluía a construção de hidrelétricas. Por esse motivo, o presidente Médici havia feito ao CSN uma consulta sobre a transformação de certos Municípios em área de segurança nacional. No relatório feito pelo secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional, mais tarde presidente, general João Baptista de Oliveira Figueiredo, lido na 15a consulta ao Conselho de Segurança Nacional, em de 23 de abril de 1970 (doc. III), lê-se que "As obras em curso e o complexo hidroelétrico a ser instalado tornam, desde agora, os Municípios de TRÊS LAGÔAS e CASTILHO de particular importância sob os aspectos da Segurança Nacional. - A preocupação com a região já havia sido demonstrada pelos Ministros da Marinha e do Exército, quando, por ocasião dos trabalhos iniciais sobre os municípios de interesse da Segurança Nacional, solicitaram a inclusão do Município de TRÊS LAGÔAS, com base nos fatores político, econômico e militar."
 O impacto dos grandes empreendimentos impostos à população, "tensões indesejáveis", "problemas de ordem política e psicossocial", deveria, pois, dentro dessa lógica repressiva, receber uma resposta militar. Note-se que o general Figueiredo, que passou para a história como amante de estrebarias, mas não da natureza em geral, simplesmente ignora o impacto ambiental do empreendimento (assunto novo para a época, de qualquer forma).  O relatório foi aprovado e os Municípios foram considerados de "interesse da Segurança Nacional" por meio do Decreto-lei no 1105, de 20 de maio de 1970.  Dessa forma, seus prefeitos passaram a ser nomeados pelo Governador do Estado após aprovação do Presidente da República, segundo artigo 2º da lei 5449 de 4 de junho de 1968. Essa possibilidade legal era uma das maneiras de limitar ainda mais o espaço da oposição (em alguns dos Municípios atingidos por essa medida durante a ditadura militar, o MDB era forte) e poder implementar seus projetos com menos resistência.Um exemplo de grande empreendimento, a usina hidrelétrica em construção em Belo Monte, no Pará, tem sido feita à revelia do direito ambiental e da consulta aos povos indígenas, o que foi reconhecido em 2013 pelo próprio governo federal.
A 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, nos autos do AI 2006.01.00.017736- 8/PA, decidiu pela paralisação do empreendimento, e proibir o seu licenciamento ambiental, pela invalidade do Decreto Legislativo nº 788/2005, que violou o art. 231, § 3º, da Constituição Federal, autorizando a Usina sem a oitiva das comunidades indígenas. Essa decisão foi parcialmente suspensa pela Ministra Ellen Gracie, em 2007, então no Supremo Tribunal Federal (já se aposentou) em Suspensão de Segurança[1]. Sua decisão, em 2012, foi corroborada pelo Ministro Ayres Britto, sem fundamentação constitucional e exame do mérito, apenas com a alegação que haveria perigo à economia pública se o empreendimento fosse paralisado. Decidiu que “o acórdão impugnado [era] ofensivo à ordem pública, [ali] entendida no contexto da ordem administrativa, e à economia pública, quando considerou inválido, [naquele] momento, o Decreto Legislativo 788/2005 e proibiu ao IBAMA que elaborasse a consulta política às comunidades interessadas” (doc. XVI). Daí o comando para “suspender, em parte, a execução do acórdão proferido para permitir ao Ibama que proceda à oitiva das comunidades indígenas interessadas”. Note-se que se podem imaginar poucos danos maiores à ordem pública, aos índios e ao meio ambiente do que a conclusão dessa usina.


[1] A suspensão de segurança, que foi empregado no caso, e é uma medida de legalização da exceção no ordenamento brasileiro, criada em favor das pessoas de direito público, e tem sido empregada para viabilizar os grandes empreendimentos. Ela permite que os magistrados em geral mais politicamente caracterizados, os presidentes dos tribunais, possam decidir sem qualquer fundamento legal ou constitucional a pedido do Ministério Público e de pessoas de direito público, em nome de qualquer coisa que etiquetem como grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas (condições previstas no artigo 15 da lei  nº 12.016 de 2009, no artigo 25 da lei nº 8.038 de 1990, e ainda no 4º da lei nº 8437 de 1992, que acrescenta o "manifesto interesse público" e a "flagrante ilegitimidade").


Mais adiante, na conclusão, destaco essa continuidade com a ditadura militar, nessa articulação de segurança e desenvolvimento própria do "desenvolvimentismo":
Há uma certa continuidade na oposição de interesses alegadamente inspirados na defesa do país contra os índios brasileiros, da existência de uma Brigada Indígena nos anos 1970 à preocupação com o estabelecimento de unidades militares, hoje, em terras indígenas. A esse respeito, pode-se lembrar do Decreto no 6.513 de 22 de julho de 2008, que previu que “O Comando do Exército deverá instalar unidades militares permanentes, além das já existentes, nas terras indígenas situadas em faixa de fronteira, conforme plano de trabalho elaborado pelo Comando do Exército e submetido pelo Ministério da Defesa à aprovação do Presidente da República.”, denunciado por Beto Ricardo e Márcio Santilli como “resposta concessiva a segmentos anti-indígenas”, e não uma efetiva necessidade da defesa do Estado brasileiro (2009, p. 37). Essa continuidade pode ser verificada também entre os militares, como afirmou Rubens Ricúpero a respeito da “visão de desenvolvimento a qualquer custo” (2009, p. 148), reiterada nas pressões do caso Raposa Terra do Sol. E também na esquerda que chegou ao poder após democratização, como afirma Eduardo Viveiros de Castro a respeito do Partido dos Trabalhadores, que teria mantido o país na condição de plantation (2008, p. 172).

Em 29 de agosto deste ano, diversas organizações de direitos humanos (a ABGLT, a Comissão Pastoral da Terra, a Justiça Global e várias outras) assinaram uma carta aberta para a Ministra Maria do Rosário (talvez a ocupante de atuação mais nula da pasta de Direitos Humanos em sua breve história), reclamando da inexecução do PNDH3 (Programa Nacional de Direitos Humanos), que tanta celeuma gerou na sua criação (a direita e a grande imprensa julgou-o praticamente um golpe comunista). Na carta, que pode ser lida nesta ligação, um dos pontos destacados é a demarcação e a titulação das terras indígenas e quilombolas, que diante da larga omissão do Executivo, estão agora sob a mira do Congresso Nacional com a PEC 215, que certamente piorará a situação.
Para terminar esta breve nota que escrevo para o tuitaço, lembro que uma das questões que vi serem levantadas no ENADIR era a alegação, em processos judiciais, que os laudos elaborados por antropólogos e pela FUNAI não poderiam ser levados em consideração porque eles eram "parciais", isto é, eram realizados por quem desejava proteger os índios... O argumento é medularmente idiota, mas merece ser examinado pelo que revela do espírito da época.
É curioso criticar, no processo, a FUNAI por ela cumprir sua competência, suas funções institucionais (quando isso acontece), isto é, por cumprir a lei. É o sinal pouco sutil de que não se deseja que o direito seja cumprido quando ele ampara os povos indígenas. Almeja-se que eles se tornem uma categoria de pessoas sem garantias, que possam ser desalojadas de suas terras (o grande alvo das investidas dos Poderes instituídos, das empreiteiras e grileiros) e, assim, tenham que deixar de ser índios e se integrar ao mercado, o que certamente ocorreria seja como pobres, seja como mendicantes.
Afora o questionamento dos limites da imparcialidade, temos que lembrar que o próprio juiz não pode ser caracterizado como imparcial nesse tipo de questão: na condição de representante do Estado, e que, ademais, irá decidir a questão, ele, estruturalmente no processo, possui um lado ao julgar as causas desses povos cuja organização não é estatal.
De qualquer forma, não entendo como alguém possa defender a "imparcialidade" diante das causas que envolvem diretamente a dignidade humana, como é o caso da sobrevivência dos povos indígenas.

P.S.: Dalmo Dallari, aqui, explica a inconstitucionalidade da PEC 215: http://www.ecodebate.com.br/2013/08/14/dalmo-dallari-pec-215-que-passa-para-o-legislativo-demarcacao-de-terras-indigenas-e-inconstitucional/

2 comentários:

  1. Interessantíssimo descobrir com a postagem que o Município de Três Lagoas, em Mato Grosso do Sul fora considerado de interesse para a segurança nacional. Ali perto, os Ofayé-Xavante, afetados pela usina, em sua última parcela de território...Quanto ao incidente de Suspensão de Segurança, paradoxalmente, tem sido ele muito útil na proteção de grupos indígenas sujeitos a ações de reintegração de posse...as vezes como última medida de urgência antes de reintegrações não suspensas pelo recurso propriamente cabível...abr, Adriana

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    1. Obrigado pelo comentário.Nesses casos, a suspensão faz sentido, pois evita o dano à ordem pública. Abraços, Pádua.

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