O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Desarquivando o Brasil CIX: Memória e educação


Estou fazendo um curso a distância sobre justiça de transição. O curso já está indo para o final e estou com nota próxima de zero, provavelmente não serei aprovado. Decidi, porém, aproveitar os pequenos comentários que fiz no fórum para o blogue, eis que os textos aqui também são curtos.

Se a esfera pública corresponde (para falar em termos kantianos) a um pensar em conjunto, e ela é indispensável à democracia, e se o pensar em conjunto exige uma memória social, a memória e a verdade não podem deixar de ter um papel fundamental na construção de uma sociedade democrática. Halbwachs foi bastante citado aqui por conta da memória social; por isso, gostaria de lembrar outro autor, Jacques Le Goff, que, em “Histoire et mémoire”, aponta que a democratização da memória social é um imperativo prioritário para os “cientistas profissionais da memória”.
Essa afirmação torna-se mais fundamental para essa construção quando a matéria da memória e da verdade são o regime ditatorial e as graves violações de direitos humanos por ele cometidas ou permitidas, bem como a resistência contra a ditadura. Pode-se argumentar que as violências esquecidas repetem-se. As autoras Lívia Gimenes Dias da Fonseca e Talita Tatiana Dias Rampin, do texto “As lutas populares por direitos e as (in)transições brasileiras no contexto latino-americano”, da bibliografia deste curso, citam o PNDH-3, de 2010, que apresenta estes números: “calcula-se que, pelo menos, 50 mil pessoas foram presas somente nos primeiros meses de 1964; cerca de 20 mil brasileiros foram submetidos a torturas e cerca de quatrocentos cidadãos foram mortos ou estão desaparecidos.”
Hoje, após o relatório da Comissão Nacional da Verdade, sabe-se que o número de índios mortos supera oito mil em apenas dez etnias, e que somam quase dois mil as mortes já verificadas no campo. O esquecimento da enorme violência da ditadura militar no campo e nas florestas reflete-se na continuidade de graves violações de direitos humanos nessas áreas, que geraram, recentemente, a CPI do Genocídio (um crime contra a humanidade) na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul.
Ademais, há os negadores do passado: em uma espécie do que alguns chamam de revisionismo (em relação aos crimes nazistas), há os que neguem a ocorrência de uma ditadura no passado recente, ou a existência de graves violações de direitos humanos. Sem exceção, esses negadores correspondem a adversários da democracia e, como tal, atacam a memória e a verdade. Entre as recomendações da CNV, há diversas que dizem respeito diretamente à memória. No capítulo 18 do tomo I do seu relatório, essa questão aparece desde a primeira, "Reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964 a 1985)".
A falta desse reconhecimento representa uma afronta à memória do país, e um desprezo aos valores democráticos. A vigésima oitava recomendação refere-se diretamente às dimensões arquitetônica e urbanística da memória, que são de vital importância:

28] Preservação da memória das graves violações de direitos humanos
48. Devem ser adotadas medidas para preservação da memória das graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV e, principalmente, da memória de todas as pessoas que foram vítimas dessas violações. Essas medidas devem ter por objetivo, entre outros: a) preservar, restaurar e promover o tombamento ou a criação de marcas de memória em imóveis urbanos ou rurais onde ocorreram graves violações de direitos humanos; b) instituir e instalar, em Brasília, um Museu da Memória.
49. Com a mesma finalidade de preservação da memória, a CNV propõe a revogação de medidas que, durante o período da ditadura militar, objetivaram homenagear autores das graves violações de direitos humanos. Entre outras, devem ser adotadas medidas visando:
a) cassar as honrarias que tenham sido concedidas a agentes públicos ou particulares associados a esse quadro de graves violações, como ocorreu com muitos dos agraciados com a Medalha do Pacificador;
b) promover a alteração da denominação de logradouros, vias de transporte, edifícios e instituições públicas de qualquer natureza, sejam federais, estaduais ou municipais, que se refiram a agentes públicos ou a particulares que notoriamente tenham tido comprometimento com a prática de graves violações.

A criação desses memoriais não deve limitar-se a Brasília, naturalmente, devido à amplitude da questão (mais ampla do que os limites da nação, tendo em vista a colaboração internacional no golpe e na repressão continental) e às particularidades regionais de como se deu a repressão no território brasileiro. Seria importante que todos os Estados tivessem espaços como o Memorial da Resistência em São Paulo: local de exposição permanente sobre a ditadura, com exposições temporárias e espaços para palestras, bem como programas para professores de ensino fundamental e médio trabalharem com a história da ditadura.
A recomendação 26 nesse mesmo capítulo recomenda o prosseguimento das investigações em campos que a Comissão Nacional não logrou investigar a contento. No capítulo 5 do tomo II do relatório da CNV, a dimensão étnica e cultural da memória é contemplada, com a  recomendação da "Instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, exclusiva para o estudo das graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, visando aprofundar os casos não detalhados no presente estudo."
Uma comissão indígena da verdade, evidentemente, integrará índios, que detêm a memória e o saber sobre seus povos. Sem o reconhecimento dessa diversidade étnica e cultural do país, não se atenderá ao direito à memória e à verdade, tampouco serão realizados os princípios democráticos.
Este é apenas um dos campos em que se pode ver a imbricação entre memória, verdade e democracia.

No texto, da bibliografia deste curso, “As lutas populares por direitos e as (in)transições brasileiras no contexto latino-americano”, as autoras Lívia Gimenes Dias da Fonseca e Talita Tatiana Dias Rampin afirmam que “a memória acaba por ter um papel duplo na ação educadora libertadora, pois é condição para a sua realização, bem como é fruto dessa prática que (re)constrói essa memória e difunde-a dentro da história em processo”.
Devo concordar com essa consideração, tendo em vista a) o papel estratégico que a ditadura viu no campo da educação; b) a importância dada à educação por comissões da verdade para o processo de justiça de transição. No primeiro ponto, podem-se citar a proibição da UNE, a reforma da educação, A não esclarecida morte de Anísio Teixeira, que não foi investigada pela CNV, as invasões da UnB, da PUC-SP e de outras instituições de ensino, o decreto-lei 477/1969, que previa como infrações, por exemplo, qualquer “paralisação de atividade escolar”, seja por professor, aluno funcionário “ou empregado de estabelecimento de ensino público ou particular”, bem como a prática “de atos destinados à organização de movimentos subversivos, passeatas, desfiles ou comícios não autorizados” e a participação nesses atos, o porte, a confecção, a impressão, a distribuição e a guarda de “material subversivo de qualquer natureza”, o uso de “dependência ou recinto para fins de subversão” e a prática de “ato contrário à moral e aos bons costumes” etc., com categorias vagas, indeterminadas, que permitissem a mais ampla arbitrariedade na perseguição de vozes discordantes.
Foi marcante desse período também a proibição do método de Paulo Freire e seu exílio e, em geral, das iniciativas de educação popular. A Comissão da Verdade da Bahia, por exemplo, constatou que “A repressão política recairá sobre seus setores progressistas, a ação católica e o MEB (Movimento de Educação de Base). Na juventude da AC, especialmente a JEC (Juventude Estudantil Católica) que reunia os secundaristas e a JUC (Juventude Universitária Católica) que reunia os universitários.” (Comissão Estadual da Verdade - BA. Relatório de atividades 2013/2014. p. 80).
Os estudantes tiveram um papel muito importante na luta contra a ditadura. É interessante ler, no livro de Rodrigo Patto Sá Motta, "As universidades e o regime militar" (Rio: Zahar, 2014), que em várias instituições os estudantes estavam à esquerda do corpo docente e pautavam as manifestações políticas. De acordo com a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo 'Rubens Paiva”, mais de um quarto dos mortos e desaparecidos políticos do Dossiê organizado pela Comissão de Familiares eram estudantes:



Os estudantes organizados tiveram um papel político de luta fundamental contra a ditadura militar. Foram às ruas protestar, participar de passeatas, integraram movimentos de luta armada, distribuíram panfletos, lutaram, enfim, contra o sistema repressivo vigente naquele momento. A participação dos estudantes foi expressiva, sendo que eles constituem uma grande parte dos mortos ou desaparecidos políticos brasileiros. Segundo estudo feito pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” das 436 pessoas que constam no Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos, elaborado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, 125 eram estudantes. (Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Capítulo “Perseguição ao movimento estudantil paulista”. São Paulo, 2015. Disponível em http://verdadeaberta.org)

Apesar disso, deve-se notar que permanecem até hoje diversas homenagens a políticos e colaboradores da ditadura em escolas e universidades. No relatório da Comissão da Verdade da Unicamp, ressalta-se que, em 2014, o Conselho Universitário recusou-se a retirar a homenagem ao antigo Ministro da Educação de Médici, coronel Jarbas Passarinho, executor da reforma da educação e doutor honoris causa por essa universidade em 1973. Nesse caso, deve-se notar o pequeno apoio recebido pela Comissão com a nota contrária à decisão do Conselho:

Em nota publicada no dia 16 de junho de 2014 (ver anexo 3), a Comissão manifestou seu apoio às decisões das Congregações da Faculdade de Educação (FE), Instituto de Arte (IA), Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) e Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), que haviam solicitado a revogação do título de Doutor Honoris Causa concedido pela Unicamp em 1973 ao coronel Jarbas Passarinho, então Ministro da Educação do governo militar do General Emílio Garrastazu Médici. Diante da polêmica causada pela decisão do Conselho Universitário da Universidade que, em 5 de agosto do mesmo ano, não aprovou as moções da faculdade e institutos citados, recebemos em nossa página da internet (www.comissaoverdade.unicamp.br/contato) mais de 10 mensagens manifestando descontentamento com o resultado da votação. (Relatório final da Comissão da Verdade “Octávio Ianni” da Unicamp, Campinas, 2015, p. 6)

O que mostra que o empenho das instituições de ensino no processo de justiça de transição no Brasil foi e está sendo parcial e ambíguo. O que pode comprometer o segundo ponto, a importância dada à educação por comissões da verdade para o processo de justiça de transição. Até que ponto as instituições de ensino estarão à altura das recomendações das diversas comissões da verdade? Para a educação contribuir para o processo de justiça de transição no Brasil, seria necessário tirar do papel recomendações como, no tomo I, “[16] Promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos na educação”, e, no tomo II, “Inclusão da temática das 'graves violações de direitos humanos ocorridas contra os povos indígenas entre 1946-1988' no currículo oficial da rede de ensino, conforme o que determina a Lei no 11.645/2008”. Essas recomendações, por sinal, são compatíveis com o PNDH-3 e o Plano Nacional de Educação.
No texto “O legado da ditadura para a educação jurídica brasileira”, de Alexandre Bernardino Costa e Roberto Aguiar, da bibliografia deste curso, lê-se que com a ditadura militar houve “uma grande e rápida expansão do ensino superior privado, sobretudo, nos cursos de menor custo”, sem a realização de pesquisa e de extensão, e os cursos jurídicos correspondentes “passaram a ser os formadores de um exército de reserva” para a “elite burocrática nacional”, e a “cumprir funções de formação política e ideológica” com um “senso comum teórico dos juristas” que separava “o Direito da Política”.
Se o diagnóstico desse texto é correto em relação à ditadura militar, deve-se perguntar o quanto dele permanece. Com os últimos governos da democracia foi acelerada a expansão do ensino superior privado, largamente realizada com incentivos públicos, para a criação de grandes conglomerados empresariais que exploram o ensino. A política privatista do atual governo federal foi acentuada em 2015 com os cortes orçamentários. Com esse quadro, é de se perguntar até que ponto as instituições públicas e privadas poderão ou desejarão realizar a educação comprometida com o processo de justiça de transição e a promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos.

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