O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Desarquivando o Brasil CXIII: Justiça de transição e lei de anistia

Outro texto que escrevi como participação em um fórum de um curso a distância sobre justiça de transição. Apesar do fraco aproveitamento, achei que dava para transcrever estas linhas por causa das referências.



A justiça de transição é um exemplo de questão jurídica cujo nome surge inicialmente no pensamento jurídico e que depois aparece em textos de caráter normativo. Como Marcelo Torelly afirma, em “Justiça de transição – origens e conceito”, ela apareceu “textualmente pela primeira vez em 1991, na escrita de Ruti Teitel – 2011”. Ela não surge, porém, de elucubrações de teóricos, mas da ação social sem a qual as transições não ocorreriam.
O direito internacional dos direitos humanos – e não só ele, mas também o direito internacional humanitário e o direito internacional penal – forneceu e fornece instrumentos para a justiça de transição, instrumentos cuja origem vem de contexto geopolítico muito diverso; Torelly, e não é o único a fazê-lo, afirma que “O período entre Nuremberg e meados dos anos 1970 é a primeira, caracterizada por um razoável nível de acordo no plano internacional, viabilizando-se que crimes ocorridos em Estados soberanos fossem processados penalmente por meio do Direito Internacional.” No entanto, a questão da transição política tal como vem sendo estudada desde os anos 1990 é posterior, e se apodera desses instrumentos que já existiam, suscitando a criação de novos parâmetros normativos no direito internacional, como o combate ao crime de desaparecimento forçado, para que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos teve uma contribuição especial.
Arnaldo Viera Sousa, “Nuremberg e os crimes contra a humanidade”, afirma que o Estatuto de Nurembergue trouxe “a inédita modalidade de crimes contra a humanidade”, que, em 1967, com a Resolução nº 2.338 (XII) da Assembleia Geral da ONU, foram considerados imprescritíveis, o que foi previsto no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.
Não se pode, é evidente, dizer que esses instrumentos estão consolidados: a recente, parcial e insatisfatória atuação do Tribunal Penal Internacional mostra que continuam existindo muitas incertezas no campo da teoria do direito e, especialmente, poucas condições na sociedade internacional para que ocorra a persecução penal sobre criminosos de guerra das grandes potências (por exemplo, os que bombardearam neste ano os Médicos sem Fronteiras).
Por outro lado, deve-se lembrar que a política para estrangeiros da ditadura militar não se norteava pelo direito internacional dos direitos humanos, de que o governo brasileiro tentou ficar afastado nesse período, e sim pela doutrina de segurança nacional, como já fizeram notar alguns, e Ana Luisa Zago reafirma em “Os Estrangeiros e a Ditadura Civil-Militar Brasileira”.
No entanto, qual seria o conceito de justiça de transição? Torelly adota um de natureza institucional, o da ONU. O texto de Flávia Piovesan, “Justiça de transição e o direito internacional dos direitos humanos”, não chega a uma definição:

À luz dos parâmetros protetivos mínimos estabelecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, destacam-se cinco direitos:
1. o direito a não ser submetido à tortura nem a desaparecimento forçado;
2.o direito à justiça (o direito à proteção judicial);
3. o direito à verdade;
4. o direito à prestação jurisdicional efetiva na hipótese de violação a direitos (direito a remédios efetivos); e
5. as garantias de não repetição decorrentes do dever do Estado de prevenir violações a direitos humanos, mediante reformas institucionais (sobretudo no aparato da segurança e da Justiça).

Os “instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos estabelecem um núcleo inderrogável de direitos”. Esse núcleo tampouco pode ser considerado uma definição de justiça de transição.
Kora Andrieu e Geoffroy Lauvau, organizadores da obra coletiva Quelle justice pour les peuples em transition? (Paris : PUPS, 2014), destacaram essa incerteza, que provém do fato de a justiça de transição estar em constante movimento, e que a concepção inicial, que era estritamente jurídica, ampliou-se além do que sugerem que os textos da bibliografia básica. “Hoje, esse alargamento da disciplina chega a integrar o desenvolvimento econômico e a redistribuição de terras, a justiça genérica, a luta anticorrupção, o direito dos refugiados, a construção de monumentos ou ainda a elaboração de novos manuais escolares.” (tradução nossa).
Esse alargamento faz com que a justiça de transição seja mais uma bandeira militante e uma oportunidade de trabalho para os que nela militam do que uma categoria científica, como afirma Sandrine Lefranc (“L’ordinaire d’une justice de transition”, no livro mencionado)?
Dividida entre penalização e conciliação, direito e política, a justiça de transição deve assumir um papel reconstrutivo para a implementação “do processo de democratização e de pacificação das sociedades, notadamente contribuindo a restabelecer a confiança dos cidadãos em relação a suas instituições” (cito Andrieu e Lauvau, tradução nossa).
Nesse nó cego, tanto teórico quanto prático, da democracia e da confiança nas instituições (que deveriam ser objeto de reflexão necessária e preliminar antes de se falar em transição política), parecem-me bastante insuficientes muitos dos autores brasileiros que escrevem sobre a justiça de transição, bem como o próprio Estado brasileiro.
Escrevi recentemente um artigo que tenta abordar alguns desses entraves no contexto brasileiro, que sairá no livro "Para a crítica do direito". Um dos problemas do relatório da Comissão Nacional da Verdade, que analisei, foi justamente não estar atualizado com os parâmetros contemporâneos do direito internacional dos direitos humanos, deixando, por exemplo, de considerar o genocídio como grave violação de direitos humanos na seção de ordem teórica do relatório.

Em relação aos crimes de lesa-humanidade, só faço notar que eles têm natureza prescritiva, isto é, são obrigatórios; o que eles não têm é um caráter prescritível, ou seja, não prescrevem.
Creio, assim como fez a Comissão Nacional da Verdade no seu relatório, que o problema não é realmente a lei de anistia, mas a interpretação equivocada que foi referendada no Supremo Tribunal Federal, e que ainda pode ser revista por esse tribunal, eis que os embargos de declaração ainda não foram julgados. Bastaria interpretá-la seguindo a orientação da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso que você mencionou, afastando os efeitos da anistia em relação aos autores de crime contra a humanidade:

13. A CNV considerou que a extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres é incompatível com o direito brasileiro e a ordem jurídica internacional, pois tais ilícitos, dadas a escala e a sistematicidade com que foram cometidos, constituem crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não passíveis de anistia. Relativamente a esta recomendação – e apenas em relação a ela, em todo o rol de recomendações –, registre-se a posição divergente do conselheiro José Paulo Cavalcanti Filho, baseada nas mesmas razões que, em 29 de abril de 2010, levaram o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 153, com fundamento em cláusulas pétreas da Constituição brasileira, a recusar, por larga maioria (sete votos a dois), essa tese.
[...]
16. Em 24 de novembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) responsabilizou o Brasil pelo desaparecimento de participantes da Guerrilha do Araguaia durante as operações militares da década de 1970 (caso Gomes Lund e outros vs.Brasil). Sustentou que as disposições da Lei de Anistia de 1979 são manifestamente incompatíveis com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação de graves violações de direitos humanos, nem para a identificação e punição dos responsáveis.  Respaldou sua argumentação em sólida jurisprudência internacional, destacando também emblemáticas decisões judiciais que invalidaram leis de anistia na América Latina.

Trata-se do capítulo 18 do primeiro volume: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/Capitulo%2018.pdf
[...] lembro dos debates da Lei de Anistia, publicados pelo próprio Congresso Nacional poucos anos depois, em 1982. No fim da votação, o então senador pelo Rio Grande do Sul Pedro Simon, afirmou que "o derrotado não foi o MDB, o vitorioso não foi o partido oficial; nem moralmente o derrotado foi o partido oficial, foi o Congresso Nacional.[...] toda a Nação sabe e a Imprensa noticiou que o Relator, que os líderes da ARENA, no Gabinete do Ministro da Justiça, estudaram emenda por emenda e decidiram lá o que seria votado aqui. E decidiram lá, Sr. Presidente, lá no Poder Executivo, o que podia ser votado aqui."
O conchavo foi divulgado pela imprensa na época, e é espantoso que ainda hoje os setores conservadores o neguem, afirmando que a Lei de Anistia é legítima.



Nenhum comentário:

Postar um comentário