A justiça de transição é um
exemplo de questão jurídica cujo nome surge inicialmente no pensamento
jurídico e que depois aparece em textos de caráter normativo. Como
Marcelo Torelly afirma, em “Justiça de transição – origens e conceito”,
ela apareceu “textualmente pela primeira vez em 1991, na escrita de Ruti
Teitel – 2011”. Ela não surge, porém, de elucubrações de teóricos, mas
da ação social sem a qual as transições não ocorreriam.
O direito internacional dos
direitos humanos – e não só ele, mas também o direito internacional
humanitário e o direito internacional penal – forneceu e fornece
instrumentos para a justiça de transição, instrumentos cuja origem vem
de contexto geopolítico muito diverso; Torelly, e não é o único a
fazê-lo, afirma que “O período entre Nuremberg e meados dos anos 1970 é a
primeira, caracterizada por um razoável nível de acordo no plano
internacional, viabilizando-se que crimes ocorridos em Estados soberanos
fossem processados penalmente por meio do Direito Internacional.” No
entanto, a questão da transição política tal como vem sendo estudada
desde os anos 1990 é posterior, e se apodera desses instrumentos que já
existiam, suscitando a criação de novos parâmetros normativos no direito
internacional, como o combate ao crime de desaparecimento forçado, para
que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos teve uma contribuição
especial.
Arnaldo Viera Sousa, “Nuremberg e os crimes contra a humanidade”,
afirma que o Estatuto de Nurembergue trouxe “a inédita modalidade de
crimes contra a humanidade”, que, em 1967, com a Resolução nº 2.338
(XII) da Assembleia Geral da ONU, foram considerados imprescritíveis, o
que foi previsto no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.Não se pode, é evidente, dizer que esses instrumentos estão consolidados: a recente, parcial e insatisfatória atuação do Tribunal Penal Internacional mostra que continuam existindo muitas incertezas no campo da teoria do direito e, especialmente, poucas condições na sociedade internacional para que ocorra a persecução penal sobre criminosos de guerra das grandes potências (por exemplo, os que bombardearam neste ano os Médicos sem Fronteiras).
Por outro lado, deve-se lembrar que a política para estrangeiros da ditadura militar não se norteava pelo direito internacional dos direitos humanos, de que o governo brasileiro tentou ficar afastado nesse período, e sim pela doutrina de segurança nacional, como já fizeram notar alguns, e Ana Luisa Zago reafirma em “Os Estrangeiros e a Ditadura Civil-Militar Brasileira”.
No entanto, qual seria o conceito de justiça de transição? Torelly adota um de natureza institucional, o da ONU. O texto de Flávia Piovesan, “Justiça de transição e o direito internacional dos direitos humanos”, não chega a uma definição:
À luz dos parâmetros protetivos mínimos
estabelecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos,
destacam-se cinco direitos:
1. o direito a não ser submetido à tortura nem a desaparecimento forçado;
2.o direito à justiça (o direito à proteção judicial);
3. o direito à verdade;
4. o direito à prestação jurisdicional efetiva na hipótese de violação a direitos (direito a remédios efetivos); e
5. as garantias de não repetição
decorrentes do dever do Estado de prevenir violações a direitos humanos,
mediante reformas institucionais (sobretudo no aparato da segurança e
da Justiça).
Os “instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos estabelecem um núcleo inderrogável de direitos”. Esse núcleo tampouco pode ser considerado uma definição de justiça de transição.
Kora Andrieu e Geoffroy Lauvau, organizadores da obra coletiva Quelle justice pour les peuples em transition?
(Paris : PUPS, 2014), destacaram essa incerteza, que provém do fato de a
justiça de transição estar em constante movimento, e que a concepção
inicial, que era estritamente jurídica, ampliou-se além do que sugerem
que os textos da bibliografia básica. “Hoje, esse alargamento da
disciplina chega a integrar o desenvolvimento econômico e a
redistribuição de terras, a justiça genérica, a luta anticorrupção, o
direito dos refugiados, a construção de monumentos ou ainda a elaboração
de novos manuais escolares.” (tradução nossa).
Esse alargamento faz com que a justiça de transição seja mais uma
bandeira militante e uma oportunidade de trabalho para os que nela
militam do que uma categoria científica, como afirma Sandrine Lefranc (“L’ordinaire d’une justice de transition”, no livro mencionado)?Dividida entre penalização e conciliação, direito e política, a justiça de transição deve assumir um papel reconstrutivo para a implementação “do processo de democratização e de pacificação das sociedades, notadamente contribuindo a restabelecer a confiança dos cidadãos em relação a suas instituições” (cito Andrieu e Lauvau, tradução nossa).
Nesse nó cego, tanto teórico quanto prático, da democracia e da confiança nas instituições (que deveriam ser objeto de reflexão necessária e preliminar antes de se falar em transição política), parecem-me bastante insuficientes muitos dos autores brasileiros que escrevem sobre a justiça de transição, bem como o próprio Estado brasileiro.
Escrevi recentemente um artigo que tenta abordar alguns desses entraves no contexto brasileiro, que sairá no livro "Para a crítica do direito". Um dos problemas do relatório da Comissão Nacional da Verdade, que analisei, foi justamente não estar atualizado com os parâmetros contemporâneos do direito internacional dos direitos humanos, deixando, por exemplo, de considerar o genocídio como grave violação de direitos humanos na seção de ordem teórica do relatório.
Em relação aos crimes de lesa-humanidade, só faço notar que eles têm natureza prescritiva, isto é, são obrigatórios; o que eles não têm é um caráter prescritível, ou seja, não prescrevem.
Creio, assim como fez a Comissão
Nacional da Verdade no seu relatório, que o problema não é realmente a
lei de anistia, mas a interpretação equivocada que foi referendada no
Supremo Tribunal Federal, e que ainda pode ser revista por esse
tribunal, eis que os embargos de declaração ainda não foram julgados.
Bastaria interpretá-la seguindo a orientação da Corte Interamericana de
Direitos Humanos no caso que você mencionou, afastando os efeitos da
anistia em relação aos autores de crime contra a humanidade:
13. A
CNV considerou que a extensão da anistia a agentes públicos que deram
causa a detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções,
desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres é incompatível com o
direito brasileiro e a ordem jurídica internacional, pois tais ilícitos,
dadas a escala e a sistematicidade com que foram cometidos, constituem
crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não passíveis de anistia.
Relativamente a esta recomendação – e apenas em relação a ela, em todo o
rol de recomendações –, registre-se a posição divergente do conselheiro
José Paulo Cavalcanti Filho, baseada nas mesmas razões que, em 29 de
abril de 2010, levaram o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 153, com
fundamento em cláusulas pétreas da Constituição brasileira, a recusar,
por larga maioria (sete votos a dois), essa tese.
[...]
16. Em 24 de novembro de 2010, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) responsabilizou o Brasil
pelo desaparecimento de participantes da Guerrilha do Araguaia durante
as operações militares da década de 1970 (caso Gomes Lund e outros vs.Brasil).
Sustentou que as disposições da Lei de Anistia de 1979 são
manifestamente incompatíveis com a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando
um obstáculo para a investigação de graves violações de direitos
humanos, nem para a identificação e punição dos responsáveis. Respaldou
sua argumentação em sólida jurisprudência internacional, destacando
também emblemáticas decisões judiciais que invalidaram leis de anistia
na América Latina.
Trata-se do capítulo 18 do primeiro volume: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/Capitulo%2018.pdf
[...] lembro dos debates da Lei de Anistia, publicados pelo próprio Congresso Nacional poucos anos depois, em 1982. No fim da votação, o então senador pelo Rio Grande do Sul Pedro Simon, afirmou que "o derrotado não foi o MDB, o vitorioso não foi o partido oficial; nem moralmente o derrotado foi o partido oficial, foi o Congresso Nacional.[...] toda a Nação sabe e a Imprensa noticiou que o Relator, que os líderes da ARENA, no Gabinete do Ministro da Justiça, estudaram emenda por emenda e decidiram lá o que seria votado aqui. E decidiram lá, Sr. Presidente, lá no Poder Executivo, o que podia ser votado aqui."
O conchavo foi divulgado pela imprensa na época, e é espantoso que ainda hoje os setores conservadores o neguem, afirmando que a Lei de Anistia é legítima.
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