O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 13 de dezembro de 2015

Desarquivando o Brasil CX: Censura e gênero


Assim como Desarquivando o Brasil CIX, este é um texto que escrevi como participação em um fórum de um curso a distância sobre justiça de transição. Apesar do fraco aproveitamento no curso, achei que dava para aproveitar aqui estas linhas.

Muito interessante a primeira pergunta, que fugiu do óbvio. Seria previsível perguntar como ou se a “imprensa/grande mídia se constitui como um ator dos processos políticos no Brasil”. O que foge ao óbvio é indagar se convidamos todos a fazerem este debate.
Creio que as respostas podem ser muitas, e podem ser dar sob um prisma coletivo ou individual. Do ponto de vista coletivo, creio que ela deve ser negativa: o debate não logra prosperar. A esfera pública é largamente conformada pelos grandes veículos de comunicação, e os discursos críticos a esses meios são largamente bloqueados nela.
Um exemplo disso foi a própria recepção do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), cercada de ambiguidades: o jornal Folha de S.Paulo, por exemplo, publicou na mesma semana textos em defesa da tortura. Dos veículos da grande imprensa impressa, o único que fez mea culpa no tocante ao apoio à ditadura militar foi O Globo em agosto de 2013. A autocrítica de "Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro" (http://oglobo.globo.com/brasil/apoio-editorial-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-9771604) foi feita também na televisão. No entanto, como sustentei em outro lugar, essa limitada autocrítica não se traduziu em mudanças mais significativas da linha editorial do jornal, que continua a criminalizar os movimentos sociais e as manifestações populares, a manifestar-se contrariamente à democratização dos meios de comunicação no Brasil e, mais especificamente no tema da justiça de transição, não criou uma comissão da verdade própria, que muito teria a revelar; imagine-se como deveria ser a correspondência entre a família Marinho e os generais da ditadura. Certamente, se trazida a público, ela traria revelações sobre o período; o mesmo se pode conjecturar, pelo menos, em relação às famílias Frias e Mesquita.
Sob o prisma individual, não sei se os poucos textos que escrevi sobre o assunto puderam ajudar no debate. Um artigo que publiquei, “Os olhos vazados da liberdade: cultura autoritária no Brasil, censura judicial e Sistema Interamericano de Direitos Humanos” (https://idejust.files.wordpress.com/2010/04/ii-idejust-fernandes1.pdf), tentava tratar dos limites da liberdade de imprensa na ditadura militar e de como ela foi sustentada judicialmente. Destaco este trecho, sobre censura prévia:
A instituição jurídica da censura prévia deu-se por meio de uma pouco ortodoxa (segundo a hermenêutica jurídica) interpretação extensiva da restrição à liberdade de imprensa, vedada pelo direito constitucional vigente. Em uma tentativa de contestá-la judicialmente, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), o partido de oposição no sistema bipartidário vigente na época, tentou arguir a inconstitucionalidade do Decreto-lei nº 1.077 de 26/10/1970, que instituía a censura prévia de livros e periódicos (não prevista na Constituição), representando ao Procurador-Geral da República, Xavier de Albuquerque. Ele, no entanto, arquivou a representação, considerando que a apresentação ao Supremo Tribunal Federal era ato discricionário seu. O Supremo Tribunal Federal, por maioria, acabou por concordar com a posição sumamente governista de Xavier de Albuquerque. Pouco depois, em 1972, ele foi indicado pelo General Médici para o Supremo Tribunal Federal, no qual se aposentou em 1983.
No entanto, esse artigo tratava pouco da colaboração dos grandes jornais com o governo ditatorial. Vê-se que, mesmo no caso da censura, jornais como O Estado de S.Paulo receberam um tratamento muito menos severo do que a imprensa alternativa de esquerda, às vezes chamada de “imprensa nanica”, que era a que detinha, em geral, posições mais radicais contra a ditadura. Um exemplo marcante foi o jornal Ex-, que foi fechado à força no fim de 1975 depois de ter sido o primeiro veículo de imprensa a denunciar que Vladimir Herzog tinha sido assassinado.
Outro exemplo: a longa denúncia das execuções extrajudiciais, desaparecimentos e torturas feita pelos presos políticos no Presídio Barro Branco, em São Paulo, em outubro de 1975. A lista de 233 nomes e/ou codinomes de torturadores somente foi publicada integralmente no Brasil por um veículo da imprensa de esquerda, e não pelos grandes jornais: o Em tempo, que publicou em 1978. Cito esta passagem de outro texto que escrevi (“A carta à OAB em 1975: os presos políticos denunciam a ditadura”: http://verdadeaberta.org/upload/010-bagulhao-caso-edgar.pdf)

No entanto, a lista só viria à luz no Brasil com a matéria “Presos denunciam torturadores”, publicada na edição de 26 de junho a 2 de julho de 1978, que trazia o retrato de quatro dos agentes apontados. Na própria publicação, o jornal comentava que:

"A denúncia foi formulada há quase três anos. Mas continua inédita nos jornais do país, pois não encontrou quem publicasse, aguardando talvez 'dias melhores'. 35 presos políticos fizeram uma relação dos nomes daqueles que foram seus algozes entre 1969 e 1975. EM TEMPO publica a acusação, na semana em que entra em julgamento o processo que a família de Wladimir [sic] Herzog move contra o governo, por conta da sua morte nas dependências do II Exército, quando lá se encontrava detido, em outubro de 1975."

A publicação no jornal Em Tempo teve imediata repercussão no Exército, como vemos em documento confidencial difundido ao DOI do II Exército, com a queixa da falta de providências do Ministério da Justiça em processar o jornal com base na Lei de Imprensa [...]
Na mesma semana, em Belo Horizonte, a sede do jornal sofreu um atentado. Mais adiante, no governo do ditador Figueiredo, os atentados a bancas de jornais que vendiam a imprensa “nanica” se tornariam correntes.
A censura, ilegal mesmo quando oficial, e os atentados aos veículos de imprensa de esquerda forma ainda mais significativos porque eram esses meios de comunicação que, em regra, abordavam a “perseguição contra as mulheres e a liberdade sexual”, matéria da segunda pergunta.
No relatório da Comissão Nacional da Verdade, lemos como esse tipo de perseguição era importante para o regime:
Em 1969, o general Márcio Souza e Melo escreveu que “publicações de caráter licencioso (...) poder[ão] despertar variadas formas de erotismo, particularmente na mocidade, (…) contribuindo para a corrupção da moral e dos costumes, (...) sendo uma componente psicológica da Guerra Revolucionária em curso em nosso País e no Mundo”. Já em 1970, na revista Defesa Nacional, um autor, que usou um pseudônimo, argumentou que a mídia estava sob a influência da “‘menina dos olhos’ do PC” e que os filmes e a televisão estavam “mais ou menos apologéticos da homossexualidade”. (tomo II, p. 303)
A repressão política, pois, estendia-se ao campo das políticas do corpo e às éticas sexuais, o que se refletiu na atenção da censura em apagar as referências não estereotipadas à mulher. Amelinha Teles, no texto da bibliografia básica (e também no livro Infância roubada, publicado em 2014 pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”), “Mulheres e ditadura militar”, lembra que a revista Realidade “teve sua edição especial dedicada à situação das mulheres apreendida pela censura” em 1967, e o número 45 do jornal Movimento, sobre a situação do trabalho da mulher no Brasil, foi também apreendido.
Esse tipo de repressão estendeu-se aos movimentos dos homossexuais. No tocante ao assunto, deve-se mencionar o jornal Lampião da esquina, que mereceu dois capítulos no livro Ditadura e homossexualidades (São Carlos: Edufscar, 2014), organizado por James Green e Renan Quinalha (autor do texto da bibliografia básica, “Uma ditadura contra a liberdade sexual”, que não teve o mesmo rigor historiográfico de Ditadura e homossexualidades – o texto usa a expressão LGBT para os anos 1970, o que o livro não faz “para não pecar por anacronismo usando termos de percepção de identidade alheios à época”, como muito bem ressaltam os organizadores na apresentação).
O artigo de Rita Colaço nesse livro, “De Denner a Chrysóstomo, a repressão invisibilizada: as homossexualidades na ditadura” (p. 201 a 244), que analisa a persecução policial e judicial contra a imprensa e os jornalistas homossexuais durante a ditadura militar, destaca que “abordagens injuriosas e ostensivas campanhas de extermínio de homossexuais e travestis atravessaram pelo menos cinco décadas (1960-2010), aquelas, e duas (1980-1990), essas, em jornais e emissoras radiofônicas, sem qualquer tipo de sanção estatal, apesar de constituírem práticas tipificadas, tanto pela mesma Lei de Imprensa (artigos 14, 19 e 22) quanto pelo Código Penal” (p. 237).
Isto é, o aparato policial-judicial somente era usado para perseguir os homossexuais, e não para garantir-lhes direitos, e isso refletia-se na imprensa, que não sofria sanções quando instrumentalizada pela repressão.
Rita Colaço mostra que esse processo não acabou com o fim da ditadura militar, o que mostra que a luta contra as discriminações de gênero e de orientação sexual é um trabalho inconcluso. Neste momento, em que os direitos das mulheres sofrem repetidas ameaças no Congresso Nacional, o debate continua urgente.
Deve-se notar que os movimentos homossexuais e os feministas encontravam rejeição também em parte da esquerda: pode-se lembrar, por exemplo, da expulsão da própria Amelinha Teles do PCdoB por ser feminista (e, assim, "dividir a luta" contra a burguesia, pretexto de uma esquerda machista que não quer por em causa a opressão de gênero). Lembremos de João Silvério Trevisan em sua obra pioneira Devassos no paraíso (Rio de Janeiro: Record, 2000), sobre o Lampião, em que fica claro desinteresse da esquerda em discutir esses dogmas. Um "dos seus números mais importantes" "se publicou um amplo e sério dossiê sobre a questão homossexual em Cuba, com a caricatura de Fidel Castro vestido de rumbeira, na capa. Para espanto dos editores, esse foi o número menos vendido de toda a história do jornal." (p. 362).
Trata-se, enfim, do silenciamento desse tipo de discriminação, que não deve ser mais tolerado.

Um adendo, por causa de um comentário sobre um dos textos da bilbiografia: O texto de Amelinha Teles tem como fim pautar o tema. Quem quiser ver uma descrição mais pormenorizada das violações de direitos contra mulheres e crianças que ela descreveu, pode lê-las no capitulo "Verdade e gênero" da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva": http://verdadeaberta.org/relatorio/tomo-i/parte-ii-cap3.html
Amelinha, sabemos, foi coordenadora dessa Comissão. Nesse capítulo, mostra-se também que as mulheres tiveram um papel fundamental na luta contra a ditadura; a participação feminina nas organizações de esquerda superava a participação política oficial no Congresso Nacional da época - e mesmo no de hoje:

Quanto à participação política, muitos ainda são os obstáculos e resistências enfrentados pelas mulheres brasileiras. Segundo o Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), dos 436 casos de morte e desaparecimento tratados no documento, 11% são mulheres. Já na região do Araguaia, dos 70 guerrilheiros desaparecidos, 12 eram mulheres, ou seja, 17%. De acordo com o Estado Maior do Exército no ano de 1970, havia mais de 500 militantes guerrilheiros aprisionados em quartéis, sendo que no Rio de Janeiro, 26% eram mulheres. Estes números não são nada desprezíveis se comparados com os atuais. Por exemplo, os resultados do pleito de 2014, revelam que somente 10% de mulheres foram eleitas para o Congresso Nacional, reservando ao Brasil o posto de país mais desigual da América do Sul em representação feminina no Legislativo. Apesar da reeleição da presidenta Dilma Rousseff - militante na luta de resistência à ditadura - e da legislação eleitoral brasileira, desde 2009, obrigar que ao menos 30% das candidaturas sejam femininas, os partidos políticos continuam assumindo uma posição sexista sem oferecer verbas ou espaço para uma disputa em condição de igualdade. Muitas são “mulheres-laranja”, indicadas somente para cumprir a cota prevista em lei [...]
Com isso em mente, entende-se facilmente que o atual combate ao que se chama maliciosamente de "ideologia de gênero" seja uma bandeira dos setores políticos mais retrógrados, que querem ampliar esta situação de profunda desigualdade.


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