O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

O maior poeta da língua volta ao Brasil: livros contra a invasão do Iraque e o assassinato de transexuais


Uma grande notícia editorial, depois de tantos infortúnios que o ano trouxe também para este campo. Aquele que é, para mim e outros, o maior poeta vivo que escreve em nossa língua, o português Alberto Pimenta, tem no Brasil mais um volume de poesia publicado. A Chão da Feira reuniu dois de seus livros: Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta e Indulgência plenária, ambos publicados originalmente pela & etc, editora de Lisboa.
Pimenta possuía apenas um livro de poesia no Brasil, a antologia A encomenda do silêncio, que organizei em 2004. Os livros agora reunidos, que não têm paralelo na poesia contemporânea em nossa língua, são posteriores à antologia.
Tive a honra de escrever um prefácio para esta edição. Transcrevo breves trechos, que devem servir para apresentá-lo:
Alberto Pimenta nunca se acomodou. Poeta, performer e linguista nascido no Porto em 1937, seu primeiro livro, entre as dezenas que escreveu, foi O labirintodonte, de 1970, publicado enquanto ainda estava no exílio na Alemanha. Em 1960, assumiu cargo de Leitor de português, mantido pelo governo de Portugal na Universidade de Heidelberg. Por recusar-se a apoiar a criminosa guerra colonialista que a ditadura salazarista movia em África, foi demitido em 1963 – a Universidade alemã, porém, o contratou.
Ele já havia requerido cidadania alemã quando ocorreu a Revolução dos Cravos em 1974. Quando finalmente pôde voltar a Portugal, em 1977, lançou um dos grandes livros de poesia do século XX, Ascensão de dez gostos à boca (voltado contra, entre outros, os desgostos da guerra), realizou performances, programas de televisão e diversas outras atividades.
Eduardo Lourenço já chamou Pimenta de herdeiro de uma tradição contestatória; Rosa Maria Martelo vê que em sua obra a “sabotagem dos discursos dominantes é uma estratégia fundamental, já não tanto em função de um hermetismo que torne a poesia resistente em si mesma, mas pelo desvio, pela derivação crítica”. De fato, o caráter político de sua obra é bastante pronunciado, e os dois livros aqui publicados bem o exemplificam.
Em Pimenta temos uma poesia cuja matéria é a insubmissão em uma forma igualmente insubmissa. Podemos lembrar, rapidamente, da guerra colonialista (que quase não deixou marcas na poesia portuguesa) atacada desde O labirintodonte; as críticas à União Europeia (“IV REICH/ também conhecido cabalisticamente por/ EUROPA”), o combate ao imperialismo (como no premonitório poema que começa “sonhei/ que um fogo vindo do céu/ devastava a América.”), a oposição à pena de morte etc.
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Apenas de um poeta abertamente político como este poder-se-iam esperar as obras reunidas neste volume, únicas na poesia contemporânea em língua portuguesa, e não apenas em Portugal, a começar pela matéria: não tenho notícia de livro de poesia inteiramente dedicado à invasão do Iraque pelos Estados Unidos, como Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta, ou ao assassinato de uma imigrante clandestina transexual, assunto de Indulgência plenária. Publicadas pela & etc em 2005 e 2007, respectivamente, trazem também surpresas; aos 68 e aos 70 anos, Alberto Pimenta continuava (e continua) buscando novas soluções poéticas.
Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta foi exposto ao público pela primeira vez em uma feira de livros na Mesquita de Lisboa e sofreu o boicote de várias livrarias. Deve-se lembrar que o Estado português apoiou a invasão e a ocupação do Iraque, e o mesmo fizeram alguns poetas. Nesta obra, desde o título, estamos próximos da estratégia da inexistência, que se opera no lugar da autoria: um leitor incauto bem poderia achar que o livro é uma tradução ou uma recriação de um autor iraquiano, com um tom lírico bastante incomum na obra de Pimenta. Vejam o que o segundo poema diz da invasão: “Mas ao coração dos homens/ Ainda não chegou/ E nunca chegará.// Não conseguirá/ Fazer dele/ Uma esponja/ Permeável à peste/ Que ele espalha/ À tona suave/ Da água da vida.” Esse tom lírico, no entanto, nunca se nega a retratar a violência (“Vivemos/ Na nossa própria terra/ Como/ Num campo de refugiados.”, no 26º poema), muito menos a edulcorar o que “É parte da história do roubo/ Que sustenta o Ocidente.” (12º).
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Também obra de intervenção e denúncia é Indulgência plenária, que marca uma virada na obra de Alberto Pimenta: da estratégia da inexistência passa-se à figura do escritor público, com sua persona poética que também deseja intervir na esfera pública para lograr determinados efeitos. Muda-se, pois, a estratégia.
Indulgência plenária emprega o recurso, raro neste poeta, de iniciar com um encontro do eu-lírico com a personagem. Ele o faz não em um alto ambiente, mas em um banheiro de aeroporto, e os buracos do mictório são assimilados a uma forma poética... Ele sai a procurá-la, encontra-a e conversam; ela menciona a operação e diz “Hoje veio-me uma saudade assim/ da Mosca e do haiku/ e Entrei no dos Homens/ onde dantes sempre/ entrava”. O poema põe, dessa forma, desde logo a questão de gênero, da transexualidade, por meio de um problema que aflige o cotidiano de tantas pessoas transgêneras: que banheiros lhes são permitidos ou seguros.
Quem foi Gisberta Salce? Transexual, brasileira, imigrante clandestina em Portugal, era soropositiva e se prostituía. Foi assassinada por afogamento, jogada em um poço depois de três dias de tortura e estupro por jovens de uma instituição católica na cidade do Porto. Não foram condenados por homicídio, já que a vítima ainda vivia quando foi atirada ao poço...
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Não por acaso, Maria Irene Ramalho já havia aproximado os dois livros aqui reunidos a propósito de uma passagem do livro de poesia que Pimenta publicou em 2013, De nada: neles, “O poeta dá voz poética à indignação contra a intolerância, a discriminação, a violência religiosa, racial e sexual, em suma, contra o colonialismo pós-colonial que continua a reger nossas vidas”.
Com efeito, ao tratar dos crimes de guerra cometidos no Iraque (que ajudaram a remodelar o sistema internacional segundo o terror de uma infinita “guerra” contra o terror) e dos crimes contra Gisberta (de dimensão social evidente no que desvela a discriminação contra os imigrantes na Europa e os transexuais), a poesia de Alberto Pimenta assume, talvez, uma categoria de justiça não pensada na Ética a Nicômaco de Aristóteles, e que se manifesta na busca da expressão rica e exata, eficaz para a luta contra o esquecimento das vítimas: uma resistência clandestina, própria da poesia.


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