O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Desarquivando o Brasil CXV: Brasil, permanente anistia informal para crimes contra a humanidade

Como outros dos textos que incluí neste blogue em dezembro de 2015, este é mais um comentário que fiz no fórum de um curso sobre justiça de transição. Mais uma vez, o tema foi a lei de anistia. Incluo abaixo uma das curtas tarefas que tive de elaborar, um ligeiro comentário sobre resumos aproximativos de votos dos Ministros do STF no julgamento da ADPF 153, em abril de 2010, sobre a lei de anistia.


A lei de anistia de 1979 já foi objeto de algumas das discussões do fórum deste curso, e muitos dos colegas já escreveram sobre ela nos módulos anteriores. Ela poderia ser vista como manifestação da legalidade autoritária, nos termos de Anthony Pereira, e a atual luta contra essa lei poderia ser considerada um elemento do que ele chama de “democratizar a democracia” (no artigo “A tradição da legalidade autoritária no Brasil", da biblioteca do curso)?
Creio que se pode responder afirmativamente às duas perguntas. O trabalho incompleto da justiça de transição e a subsequente necessidade de “democratizar a democracia” está presente na afirmação de Marcelo Cattoni e de David Gomes de que “Não estamos em um Estado de Exceção, estamos saindo de um, já há algumas décadas.” (no artigo “Transição e constitucionalismo: Aportes ao debate público contemporâneo no Brasil”, também da bibliografia do curso).
Katya Kozicki, no texto da bibliografia (“Backlash: as ‘Reações Contrárias’ à Decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF n. 153”), bem como alhures, analisou a reação de parte da sociedade brasileira, que questionou a decisão do Supremo Tribunal Federal no caso mencionado, em que a Corte considerou recepcionada pela Constituição de 1988 a lei de 1979:

Ao mesmo tempo, tal “apropriação” – pela sociedade – do papel de intérprete constitucional (que, neste sentido, deixa de ser um agente passivo e receptor das ‘verdades constitucionais’ proferidas pelo STF) demonstra a importância de questionarmos o papel que caba a cada um dos Poderes da República no aprimoramento da qualidade da nossa democracia e, não menos importante, do papel da própria sociedade nesse processo.

É certo que houve um grande apoio à decisão na grande imprensa (interessada no assunto, pois boa parte dela colaborou com a ditadura militar, como O Estado de S. Paulo, O Globo e a Folha de S. Paulo), mas várias vozes dissidentes apareceram assumindo o papel de “intérprete constitucional”, mesmo no meio jurídico, denunciando a extrema fraqueza jurídica e o falseamento da história que fundamentam a decisão do STF.
Emilio Peluso (no texto da bibliografia “A ADPF 153 no Supremo Tribunal Federal: a anistia de 1979 sob a perspectiva da Constituição de 1988”), outro desses autores que denunciou a decisão, mostra que o artigo 8º. do Ato das Disposições Constitucionais é claro ao circunscrever os efeitos da anistia apenas àqueles que sofreram “os atos de exceção”.
O Supremo Tribunal Federal, naquele julgamento, não hesitou em entrar em contradição com sua própria jurisprudência, como eu mesmo já fiz notar em outros textos, como este, em que comparei o fato de o STF ter-se autorizado a considerar não recepcionada a lei de imprensa da ditadura militar, na ADPF 130, mas não ter achado possível fazer o mesmo com a lei de 1979:

Nessa opção pelo continuísmo (que José Honório Rodrigues veria como confirmadora de sua tese sobre a história brasileira), há uma contradição jurídica, mas não política, com decisão de 2009 da mesma Corte. No julgamento da ADPF n. 130, que tinha como objeto a lei de imprensa, a lei n. 5250 de 1967, o Tribunal teve comportamento oposto: achou possível interpretar uma lei de mais de “trinta anos atrás” e considerou-a não recepcionada pela Constituição de 1988. É de se notar que o resultado não incomodou o setor de comunicações no Brasil, importantíssima parcela do braço civil da ditadura militar.
Resultado juridicamente semelhante, no caso da ADPF n. 153, pelo contrário, desagradaria não só os militares como seus apoiadores civis, que certamente não querem ver desvelada sua colaboração com o golpe e o regime dele decorrente. Pois a justiça de transição fundamenta-se no direito à verdade, que vem sendo ultrajado na militância revisionista das Forças Armadas e também – como se viu no julgamento desta ação – pelo Supremo Tribunal Federal e a Procuradoria-Geral da República. (FERNANDES, Pádua. Nem justiça nem transição: a lei brasileira de anistia e o Supremo Tribunal Federal. Sopro, junho 2010. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/nemjustica.html)

A lei de anistia, de fato, só pode ser caracterizada como espécime da legalidade autoritária, incompatível com o Direito Internacional dos Direitos Humanos e com a própria Constituição de 1988.
Para discutir a questão proposta, creio que temos que voltar a Anthony Pereira e sua tese sobre a legalidade autoritária, que está diretamente ligada à questão da judicialização da repressão. Havendo um elevado grau de consenso entre militares e o aparelho judicial, a repressão poderá ser mais judicializada; quando esse consenso não se dá, ou os tribunais não se mostram tão manipuláveis, prevaleceria a violência extrajudicial e o ataque frontal à “legalidade tradicional”, ele argumenta em Political (in)justice (University of Pittsburgh Press, 2005): “When regimes resort to extrajudicial violence and an all-out assault on traditional legality, it is often because they have failed to manipulate the laws and courts to their advantage.” (p. 192).
No caso do Brasil, é deveras notável que a manipulação tenha sobrevivido à ditadura, e a lei de autoanistia tenha sido amparada pela corte máxima do que é formalmente um regime democrático.
A persistência da distorção jurídica criada pela legalidade autoritária parece sinalizar outras persistências, outras continuidades da ditadura. Por exemplo, se os torturadores da ditadura militar continuam protegidos, os de hoje também estão a salvo: mais de um relatório da Organização das Nações Unidas apontou o papel estratégico do Ministério Público e do Judiciário no Brasil em violar a Convenção da ONU contra a tortura e outros tratamentos de cruéis, bem como a lei nacional que tipifica esse crime.
Da última vez, o relator especial da ONU sobre a tortura, Juan Méndez, visitou o Brasil em agosto de 2015. Ainda não há relatório, que só deverá ficar pronto em março de 2016. No entanto, Méndez afirmou em 14 de agosto deste ano que:

Há um alto grau do uso da tortura na interrogação. Há um alto grau de impunidade pela tortura. Perguntamos em muitos estados sobre tortura e maus tratos nas cadeias, o número de casos levados à Justiça e o número de condenações por tortura. Em todos os estados, se havia casos, era possível contar nos dedos da mão, [havia] muitos poucos processos. Não vimos uma condenação sequer por tortura, nem por abuso de autoridade. (G1. Relator da ONU diz haver 'alto grau' de tortura a presos interrogados no Brasil, 14 de agosto de 2015, disponível em  http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/08/relator-da-onu-diz-haver-alto-grau-de-tortura-presos-interrogados-no-brasil1.html)

O mesmo relator ressaltou a continuidade em relação à ditadura militar dessas práticas e da impunidade:


 Segundo o relator da ONU, a falta de transparência e a impunidade são resquícios da ditadura militar.
"É um legado que persiste na atuação da polícia e dos agentes do Estado. Há também um forte aspecto racial e de classe, que é preocupante. Mas governos democráticos não devem se esconder atrás do fato de terem herdado a tortura de regimes ditatoriais", afirma. (ORTIZ, Fabíola. Tortura ainda é recorrente no Brasil, diz relator da ONU. BBC Brasil. 21 out. 2015. Disponível em http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/10/151021_onu_entrevista_prisoes_brasil_fo)

O Judiciário, em regra, não pune os torturadores de ontem nem os de hoje. Por isso, organizações como as Mães de Maio estão próximas a militantes da justiça de transição, que, no Brasil, de fato, tornou-se uma discussão essencial para a luta pela efetivação da democracia e dos direitos humanos.
Em outra questão premente, a do genocídio e do etnocídio contra os povos indígenas no Brasil, as continuidades com a ditadura militar são pelo menos igualmente evidentes. Basta ver as últimas administrações federais, de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff, que conseguiram desenterrar e financiar projetos da ditadura militar de usinas hidrelétricas que afetam Terras Indígenas (TI). Belo Monte é um dos exemplos desses projetos, que empalidece diante do que se promete para a destruição do Rio Tapajós, contra a qual o povo Munduruku está promovendo a autodemarcação de suas terras.
Há outras ameaças, como a da liberalização da mineração em TI, que a ditadura militar tentou fazer mas não conseguiu, permitida em substitutivo do projeto de código de mineração em trâmite no Congresso Nacional, bem como a chocante novidade de que o governo federal prepara medida provisória para financiar a invasão e a destruição ambiental de Terras Indígenas: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,governo-prepara-mp-que-cria-compensacao-financeira-para-explorar-terras-indigenas,10000003615
A ideologia desenvolvimentista da doutrina de segurança nacional, etnocêntrica e destruidora do meio ambiente, está mais forte do que nunca nos três Poderes. Por causa, disso, os movimentos indígenas também estão a abraçar as causas da justiça de transição. Afinal, entre as recomendações do relatório da CNV, estão a demarcação, a desintrusão e a recuperação ambiental de suas terras.
Lembro que os responsáveis pelo genocídio dos povos indígenas durante a ditadura militar também não foram punidos, assim como as violações promovidas e financiadas pelos governos de hoje não estão sendo, em regra, impedidas pelo Judiciário.
Parece haver no Brasil uma anistia informal permanente para crimes contra a humanidade...

II



Elaboro esta tarefa restringindo-me aos resumos dos votos destacados na matéria jornalística do jornal O Globo em 30 de abril de 2010. Faço notar, porém, que ela reduziu terrivelmente a argumentação do julgamento.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, foi julgada improcedente. Prevaleceu a interpretação de que a Lei n. 6683/1979 (lei de anistia) fez “esquecer” as graves violações de direitos humanos cometidas pelos agentes da repressão. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), nessa decisão, cometeram impropriedades jurídicas, históricas e lógicas. Listo apenas o que está presente na reportagem:

  1. Ignorância de direito penal e da própria jurisprudência no STF na tese de que os “crimes cometidos na ditadura” já estariam prescritos: Cesar Peluzo, Marco Aurélio de Mello.
  2. Falseamento da história: lei de anistia como “acordo” ou “ampla negociação política”: Eros Grau, Gilmar Mendes.
  3. Análise pretensamente originalista da lei de anistia não segundo a Constituição, mas os valores “da época”: Eros Grau.
  4. Desconhecimento das funções do STF ao afirmar que a OAB havia pedido para “mudar” a lei: Eros Grau e Carmen Lúcia.
  5. Ficção do perdão mútuo na lei de anistia: Ellen Gracie e Celso de Mello. Ou, na (irônica?) expressão de Marco Aurélio Mello, “ato abrangente de amor”.
Na leitura do caso, vê-se, por exemplo, que a Ministra Carmen Lúcia comungou do ponto 2, e que boa parte dos argumentos em prol dos torturadores já estavam contidos no parecer do Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel. Fiquemos, porém, com este resumo.
A tarefa exige a contraposição desses trechos com a “perspectiva teórica de O Direito Achado na Rua e dos textos indicados para leitura nos módulos 8 e 9”. O Direito Achado na Rua tem, de fato, uma postura teórica, que é a do materialismo dialético, mas não uma visão específica sobre justiça de transição, campo em que adotou a perspectiva do Idejust (Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição). Os autores que cito da bibliografia são todos desse Grupo.
A perspectiva do materialismo dialético, de qualquer forma, não autorizaria o falseamento da história feito pela posição predominante do STF. Em relação aos pontos 2 e 5, lembro de Katya Kozicki: a lei de anistia “foi imposta em 1979 pelo agonizante regime militar”; ademais, “para além das questões jurídicas, temos os homens e mulheres que, vítimas destas práticas, constituem-se em sujeitos vivos da história a reclamarem o direito à verdade e à memória.[1].
No tocante ao ponto 3, temos a questão do originalismo, que implica retroceder (numa perspectiva conservadora, que não é a do Direito Achado na Rua) às intenções da época em que a Constituição é promulgada. No constitucionalismo dos EUA, há originalistas que desejam interpretar a Constituição segundo a Declaração de Independência, e aqueles que preferem partir dos princípios dos constituintes[2].
Neste caso, porém, interpretou-se de acordo com os valores da ditadura, anteriores à Constituição de 1988, que é a norma da democratização, e com eles incompatível; como afirmou Emílio Peluso, diante da Constituição “o STF preferiu dar validade a um sentido de uma lei imposta durante uma ditadura”[3]. Marcelo Cattoni e David Gomes bem explicam o erro: “ou uma Constituinte não possui limites e pode alterar aqueles que supostamente foram impostos a ela, ou não se trata de uma Constituinte, mas apenas de um processo de reforma da Constituição”[4].
Note-se que a tese do ponto 1 foi desautorizada pelo próprio STF no caso de sequestros de desaparecidos, reconhecendo-lhes o caráter de crime permanente.
Considerar que uma lei da ditadura não foi recepcionada pela Constituição de 1988 também já havia sido feito (na Lei de imprensa de 1967) e não se confunde com legislar (ponto 4).
Somente os votos de Lewandowski e de Ayres Britto, vencidos, estão próximos da perspectiva deste curso, por apontarem que a tortura não é crime político, nem mesmo segundo a jurisprudência do STF.


[1]Backlash: as ‘Reações Contrárias’ à Decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF No 153”, da bibliografia deste curso.
[2] TUSHNET, Mark. A Court Divided: The Renhquist Court and The Future of Constitutional Law. New York: W. W. Norton & Company, 2005, p. 96.
[3] “A ADPF 153 no Supremo Tribunal Federal: a anistia de 1979 sob a perspectiva da Constituição de 1988”, da bibliografia deste curso.
[4] “Transição e Constitucionalismo: Aportes ao debate público contemporâneo no Brasil”, da bibliografia deste curso.


Nota sobre o Ministério Público Federal:
Os procuradores que desejavam fazer a investigação dos crimes da ditadura militar ficaram isolados muito tempo dentro da instituição. Vejam que o grupo de trabalho relativo à justiça transição só surgiu DEPOIS (aproximadamente UM ANO após: Portaria 21 da 2a. Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, de 25/11/2011) da condenação do Brasil pela Corte Interamericana. Por que não foi criado antes, se a ditadura acabou em 1985? A instituição não queria mexer nisso. Ademais, não podemos jamais esquecer do parecer do Procurador-Geral da República na ADPF 153, favorável aos torturadores e carrascos do regime. Roberto Gurgel manifestou-se em janeiro de 2010 pela improcedência da ação proposta pelo Conselho Federal da OAB e boa parte de seus argumentos foram incorporados ao voto do Ministro Eros Grau, relator da ação.
O próprio Ministério Público Federal conta parte dessa história embaraçosa no livro Grupo de Trabalho Justiça de Transição: Atividades de Persecução Penal desenvolvidas pelo Ministério Público Federal, publicado em 2014 pela instituição, felizmente disponível na internet (http://2ccr.pgr.mpf.mp.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/justica-de-transicao/relatorios-1/Relatorio%20Justica%20de%20Transicao%20-%20Novo.pdf). Cito este trecho que reconhece o atraso da instituição:
As primeiras iniciativas do MPF de responsabilização penal dos agentes de Estado envolvidos em graves violações a DH durante o regime militar datam dos anos de 2008 e 2009. Nesse período, os procuradores Marlon Weichert e Eugênia Gonzaga protocolizaram oito notícias-crime – seis na PR-SP, uma na PR-RJ e uma na PRM-Uruguaiana – requerendo a instauração de PICs com vistas à apuração de casos de sequestro/desaparecimento forçado e homicídio/execução sumária contra Flávio de Carvalho Molina, Luis José da Cunha, Manoel Fiel Filho, Vladimir Herzog, Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, Luiz Almeida Araújo, Horacio Domingo Campiglia, Mônica Susana Pinus de Binstock, Lorenzo Ismael Viñas e Jorge Oscar Adur (p. 16-17)
 
Vejam nas páginas seguintes do livro que outros membros do MP pediram ARQUIVAMENTO de algumas dessas investigações. Foi necessária a condenação no Caso Gomes Lund e outros para que a situação mudasse e o grupo de trabalho fosse formado no MPF.
As denúncias apresentadas por esse GT, de fato, fazem muito bem o uso do Direito Internacional, bem como dos documentos que lhe foram enviados pelas Comissões da Verdade para instruir as investigações. É um trabalho muito importante.

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