O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 31 de março de 2020

Desarquivando o Brasil CLXV: Saúde, censura e epidemia, na ditadura e hoje

A medicina tem um papel importante para as ditaduras e os Estados imperialistas (como os EUA: uma referência é este artigo de George J. Annas e Sondra S. Crosby , "Post-9/11 Torture at CIA “Black Sites” — Physicians and Lawyers Working Together") para assessorar a repressão política, especialmente para a tortura (por exemplo, para verificar se tais corpos podem sofrer sevícias por mais tempo, ou se é necessário cuidar deles para prepará-los para mais sessões de crime contra a humanidade), a execução extrajudicial e o desaparecimento forçado, com os atestados de óbito falsos.
Na ditadura militar brasileira o papel da medicina como assessora científica do pau-de-arara e das valas clandestinas foi muito importante. Amelinha Teles e Janaína de Almeida Teles escreveram sobre a surpreendente grande proporção de médicos que estão entre os autores de graves violações de direitos humanos segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade ("A participação dos médicos na repressão política"):
A lista com os nomes de 377 agentes apontados como responsáveis por crimes de estado cometidos durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), apresentada no relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV1), entregue à Presidência da República, em 10 de dezembro de 2014, revela um dado estarrecedor, que teve pouca repercussão: entre os listados, 52 são médicos, o que corresponde a 13,8% do total de denunciados. Esses médicos estiveram envolvidos com graves violações de direitos humanos, como a prática de tortura, a produção de laudos necroscópicos falsos de militantes políticos, o ocultamento de cadáveres.
Há, ainda, várias outras dimensões a serem estudadas na relação entre ditadura e saúde, como o enfraquecimento da saúde pública e o fortalecimento dos negócios privados. Carlos Fidelis Ponte ("A saúde como mercadoria: um direito de poucos") explica como o criação do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS) em 1974, administrado pela Caixa Econômica Federal, serviu para transferir dinheiro às empresas privadas de saúde: "Instala-se, assim, um verdadeiro processo de drenagem dos recursos públicos que passam a capitalizar as empresas de medicina privada, transformando a saúde em um negócio bastante lucrativo."
Essa escolha política não era, evidentemente, a mais favorável para a epidemiologia. Nesta pequena nota, quero somente lembrar da epidemia de meningite em São Paulo, que começou em 1970 e que a ditadura militar tentou esconder, o que facilitou a disseminação da doença e provocou mais mortes. Apesar de sua importância, o assunto não foi tratado no relatório da Comissão Nacional da Verdade, que tendeu a subestimar as violações aos direitos sociais, como o direito à saúde. A exceção foi o capítulo sobre violações dos direitos dos povos indígenas, provavelmente o melhor de todo o relatório da CNV, que destacou os problemas da saúde indígena e o uso de epidemias para o genocídio daqueles povos.
A autora de Meningite: uma Doença sob Censura?, a médica e pesquisadora Rita de Cássia Barradas Barata, sobre essa epidemia, ocorrida durante o "Milagre" econômico, aponta que as desigualdades sociais crescentes e as más condições de vida propiciavam a epidemia: "Apesar do crescimento econômico vertiginoso, a política de "arrocho" salarial, a repressão política, os movimentos migratórios no sentido campo-cidade e norte-nordeste-sudeste, e o crescimento acelerado da periferia dos grandes centros urbanos compunham o pano de fundo das condições sócio-políticas e socioeconômicas favoráveis ao aparecimento e disseminação da epidemia." ("Epidemia de doença meningocócica, 1970/1977. Aparecimento e disseminação do processo epidêmico")
A Câmara dos Vereadores de São Paulo somente começou a tratar do assunto em 1972, reagindo ao pânico da população diante da morte, que enfim começava a ser noticiado pelos jornais:

José Antônio Oliveira Laet, nesta sessão de 29 de setembro, diz que "Não há o menor perigo de epidemia", mas apenas "surtos epidêmicos". O vereador José Storópoli retomou o assunto para criticar a Prefeitura por causa da insalubridade de São Paulo, propícia para as bactérias: "Mas a causa do mal, diriam os técnicos, os especialistas na matéria, que trabalham pela verdadeira cauda do povo, reside na sujeira desta cidade, começando pelo Rios Pinheiros e Tiete, a poluição atmosférica, de um modo generalizado, e o lixo que campeia por esta cidade (haja vista o «lixão» de Vila Guilherme), e a cada dia que passa a sua desumanidade se multiplica." Em 2 de outubro do mesmo ano, o mesmo vereador voltaria a fazer essa crítica por causa do surto de febre tifoide em São Paulo.
Oliveira Laet era da agremiação partidária de sustentação da ditadura, e estava cumprindo seu papel de defender o regime e a bactéria.
Em 9 de maio de 1973, o então vereador Celso Matsuda, também da Arena (o político foi secretário nacional da habitação do governo de Jair Bolsonaro até 13 de dezembro de 2019), referiu-se de forma eufêmica aos fatos:
Mudando um pouco de assunto, Sr. Presidente, nobres Srs. Vereadores, gostaria de alertar as autoridades sanitárias para um problema que, acredito, se não chega a ser um surto, pelo menos, está-se espalhando parcialmente pela Cidade de São Paulo. Refiro-me ao pronunciamento feito pelo nobre Vereador Arthur Alves Pinto, que denunciou um caso que ocorreu em várias escolas da zona sul, e, recentemente, recebi a notícia e telefonemas de diversas sociedades amigos de bairros que também acusam o mesmo problema na zona norte. E, ainda há pouco, a filha de um nosso funcionário foi acometida do mesmo mal: meningite. Quero alertar as autoridades públicas, a respeito do que está ocorrendo nas escolas públicas, estaduais e municipais, sobre um possível surto de meningite em São Paulo.
No entanto, segundo o artigo citado de Rita de Cássia Barradas Barata, a situação já era de epidemia há algum tempo:
Para o Município de São Paulo, como um todo, a incidência foi epidêmica a partir de abril de 1971. Se consideramos a primeira incidência epidêmica em cada distrito e subdistrito, mesmo que a seguir  ela tenha retornado aos níveis endêmicos temporariamente, em abril de 1971, cerca de 31 distritos e subdistritos já haviam apresentado número excessivo de casos, pelo menos durante um mês.
Já em janeiro de 1970, 4 subdistritos apresentaram incidência epidêmica para a doença meningocócica.
O cinismo das autoridades federais, que fingiam não estar informadas sobre o assunto, embora tivessem impedido a imprensa de informar o público sobre a epidemia (Beatriz Kushnir, em seu Cães de guarda: Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, comprova que a palavra meningite estava entre as proibidas pela ditadura), foi assunto desta manifestação do vereador Mário Hato na sessão de 2 de agosto de 1974:
Sr. Presidente, nobres Vereadores: Fiquei surpreendido com a surpresa que o Sr. Ministro da Saúde teve frente a este surto epidêmico de meningite que invadiu esta cidade e outras do País. A surpresa é porque o Sr. Ministro da Saúde, como médico, deveria saber que 2,5% da nossa população é portadora de meningococus nas vias aéreas superiores. Portanto, cerca de duzentas mil pessoas, em São Paulo, são portadoras deste germe, sem que se manifeste a meningite. Isto, porque são pessoas resistentes
Assim, por meio da censura e do negacionismo oficial, contribuía o governo com a mortandade. Barradas Barata e José de Cássio Moraes ("A Doença Meningocóccica na Cidade de São Paulo durante o Século XX") afirmam que o aumento de casos levou ao fim da inútil negativa da realidade pelas autoridades, e a saída de Médici do governo facilitou a mudança de orientação:
Com relação à epidemia de doença meningocócica, durante a maior parte do tempo, as autoridades recusaram-se a fornecer dados exatos a respeito da magnitude. Quando a simples recusa de informações não era mais um mecanismo eficaz para impedir o acesso da imprensa aos dados, passou a haver censura prévia aos meios de comunicação, invocando-se, na defesa dessa medida, a “segurança nacional”.
A magnitude assumida pela epidemia a partir do inverno de 1974, entretanto, impediu que as autoridades continuassem negando sua existência. A troca do general presidente, naquele ano, facilitou a mudança de atitude das autoridades. Mesmo assim, o boletim diário da Secretaria da Saúde era enviado regularmente ao Serviço Nacional de Informações (SNI) que o entregava ao presidente Geisel (JORNAL DA TARDE, 1974). 
O ministro da saúde de Geisel, Paulo Machado, buscou reverter os efeitos da epidemia sobre a imagem do governo elogiando os médicos brasileiros; minha referência neste ponto é Priscila Vitalino Severo Pais ("Considerações históricas sobre os intentos das Conferências Nacionais de Saúde: projetos políticos em transição na edição de 1977"):
[...] mesmo a crise desencadeada pela meningite acabou por ser abarcada pela estratégia da ditadura de apresentar uma política de saúde bem-sucedida. Por isso, mais importante que citar os problemas vividos em meio à epidemia e alertar a população sobre seus perigos, era preciso referenciar os feitos dos profissionais brasileiros, o que mantinha o tom ufanista do discurso oficial e reforçava a ideia da execução de “políticas eficientes” por meio da ênfase nos resultados da campanha profilática e mesmo da boa formação técnica e intelectual que os profissionais brasileiros teriam recebido.
Trata-se de algo que lembra o que têm feito certos políticos e apoiadores do governo de hoje, como o jogador de futebol Neymar, convocando para "aplausos" públicos aos profissionais de saúde, desviando a atenção dos protestos contra o governo e das más condições de trabalho na saúde pública, embora não seja ainda o teor do discurso do ocupante da presidência, que continua infecciosamente negacionista da realidade.
Não se sabe exatamente quantas foram as vítimas daquela epidemia. Talvez tenham ocorrido 900 óbitos. Se a saúde era um assunto de segurança nacional, pois podia comprometer a imagem do regime, a saúde de trabalho o era duplamente. A repressão e a vigilância sobre os sindicatos não o deixava passar em branco. O DOPS/SP acompanhava eventos como a Semana de Saúde do Trabalhador (SEMSAT), como se vê neste rascunho do delegado Romeu Tuma em 1979 para uma informação a ser distribuída, entre outros órgãos do sistema de informações, ao SNI. O material de divulgação da Semana, "Saúde não se troca por dinheiro", foi desenhado pela Laerte:




Há outras questões na relação entre saúde e ditadura que se põem na resistência contra o regime. Além dos profissionais de saúde que lutaram contra a ditadura, às vezes engajados na guerrilha, contra a ditadura, há também a atuação de seus sindicatos e organizações, como, veja-se abaixo, o Sindicato dos Médicos de São Paulo, que apoiava o Comitê Brasileiro pela Anistia:


Do lado dos movimentos sociais, ao menos no Estado de São Paulo foram muito importantes aqueles relativos à saúde, que voltaram nos anos 1970. Neste relatório do II Exército em 1979, destacam-se os "Encontros populares de saúde", que eram apoiados pelo "clero progressista":


A observação de que se tratava de "justas reivindicações" é interessante, vinda do II Exército. E justa.
A aproximação dos profissionais de saúde com esses movimentos é outro tema de nota; ela foi destacada, por exemplo, no relatório final do XV Congresso Nacional de Médicos Residentes, encontro acompanhado pelos agentes da repressão, traçaram-se diversas diretrizes, todas voltadas para a democratização do país, entre elas a "liberdade de organização e expressão".



Creio que a proposta era completamente pertinente, eis que a liberdade de expressão não é, de forma alguma, um tema estranho à saúde. Temos aí uma das provas da necessidade de considerar os direitos humanos interdependentes e indivisíveis: com a censura imposta pela ditadura militar à menção à epidemia de meningite, comprometeu-se o direito à saúde, e vidas foram perdidas.
A tentativa do governo Bolsonaro de sonegar as informações sobre a atual pandemia de coronavírus, bem como o discurso e a prática presidenciais negacionistas não apenas lembram aquele período histórico, o da ditadura militar, que o ocupante da presidência tanto preza, como, em sua negação dupla aos direitos humanos, é capaz de multiplicar as vítimas mortais.

Nota: Os documentos citados estão sob a guarda do Arquivo Nacional, com exceção das atas da Câmara dos Vereadores, que podem ser consultados no Centro de Memória da Câmara Municipal.

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