Já anunciei neste blogue a chamada para a VII Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR, organizada pela jornalista Niara de Oliveira: http://desarquivandobr.wordpress.com/2013/03/24/vii-blogagem-coletiva-desarquivandobr/ Para quem quiser participar, como escritor ou apenas leitor, aviso que ela durará até 3 de abril.
Hoje e amanhã, sempre a partir das 21 horas, haverá um tuitaço #DesarquivandoBR, em razão do aniversário do golpe de 1964, que ainda é festejado por setores negacionistas, cada vez menores, da sociedade brasileira.
Ainda pretendo escrever uma ou duas notas. Reuni as referências de minhas primeiras notas sobre direito à memória e à verdade nesta ligação, por ocasião da VI Blogagem, em 23 de novembro de 2012: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/11/vi-blogagem-coletiva-e-desarquivando-o.html
Para quem tiver interesse, indico agora os poucos textos posteriores, que incluem a lembrança das três conferências que dei na EHESS no início do ano.
Desarquivando o Brasil XLIII: Bob Wilson, ditadura e arte política. "[...] em 1974, Bob Wilson veio ao Brasil montar A vida e época de Dave Clark
no I Festival Internacional de Teatro, organizado por Ruth Escobar, em
uma empreitada esteticamente e politicamente corajosa da atriz e
produtora. Dois agentes do DOPS foram assistir ao espetáculo, que durou
12 horas, do dia 13 ao 14 de abril."
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/11/desarquivando-o-brasil-xliii-bob-wilson.html
Desarquivando o Brasil XLIV: Araguaia e Marighella. "[...] não se deve esquecer que Marighella, no fim dos anos 1960, pensou no mesmo local para a guerrilha rural. Embora seu Minimanual do Guerrilheiro Urbano tivesse ficado célebre mundialmente nos anos 1970, o horizonte estratégico desse militante era o campo [...]".
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/11/desarquivando-o-brasil-xliv-araguaia-e.html
Desarquivando o Brasil XLV: Perseguidos de ontem e de hoje: As Caravanas da Anistia e as Mães de Maio. "A matéria do Jornal do Brasil, feita ainda durante os acontecimentos [...]
deixou de mencionar que Paulo Abrão, de manhã, exibiu e sugeriu
fortemente a leitura do livro das Mães de Maio, lançado na última
quarta-feira no Sindicato dos Jornalistas, em São Paulo. [...]
Paulo Abrão ressaltou a continuidade dos abusos contra os direitos
humanos da ditadura militar até hoje, e creio que ele tem razão."
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/12/desarquivando-o-brasil-xlv-perseguidos.html
Desarquivando o Brasil XLVI: A ditadura nas ruas da USP. "O reitor da época em que as 'medidas saneadoras' estavam sendo tomadas
era Orlando Marques de Paiva, professor da Veterinária, que acabou dando
o nome da rua onde se situa essa faculdade. Entre as razões para
merecê-lo, provavelmente está o calamitoso depoimento que deu a comissão
especial de inquérito aberta na ALESP em 1977, em razão do controle
ideológico sofrido pela USP [...]".
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/12/desarquivando-o-brasil-xlvi-ditadura.html
Desarquivando o Brasil XLVII: Citações desconcertantes. "'Hoje, repito, todos os Estados adotam a forma jurídica para exprimir os
seus comandos aos cidadãos. Assim, se não se levar em conta o conteúdo
desses comandos, tanto são estado de direito os Estados Unidos ou
França, como a União Soviética de ontem, a Alemanha nazista ou a Itália
fascista.' Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em entrevista publicada no Jornal do Brasil, 29 de maio de 1978."
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/12/desarquivando-o-brasil-xlvii-citacoes.html
Desarquivando o Brasil XLVIII: Conferências na EHESS e OAB vigiada. "Nos anos 1960, pelo contrário, a OAB assumiu uma postura oposicionista
em relação a João Goulart e apoiou o golpe de Estado em 1964. Pode-se
ler neste artigo de Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos trecho de
discurso de Povina Cavalcanti, em 7 de abril de 1964, em que o
presidente do conselho federal da OAB afirma que não houve violação à
Constituição no golpe (chamado de 'sobrevivência da nação')".
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/01/desarquivando-o-brasil-xlviii.html
O cerco à Aldeia Maracanã (Ruínas de Janeiro II, Terra sem Lei IX, Desarquivando o Brasil XLIX). "Uma continuidade, no entanto, que precede a ditadura militar é a de ver
os índios como "obstáculo", o que é típico da ideologia
desenvolvimentista. Shelton Davis tratou dessa questão em Vítimas do milagre: o desenvolvimento e os índios no Brasil, livro que não está comigo agora.
Cito-o muito indiretamente, portanto, de um relatório de espionagem
sobre a trigésima reunião da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso
da Ciência), feito pelo DOPS/SP [...]".
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/01/o-cerco-aldeia-maracana-ruinas-de.html
Desarquivando o Brasil L: Conferência na EHESS sobre a doutrina de segurança nacional. "Na minha segunda conferência na EHESS [...], sobre a doutrina de segurança nacional e o cidadão inimigo, o que mais causou surpresa foram as fontes francesas da doutrina."
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/01/desarquivando-o-brasil-l-conferencia-na.html
Desarquivando o Brasil LI: Conferência na EHESS e a Comissão da Verdade "Rubens Paiva". "Nesse contexto, ser legalista era ser subversivo, o que se relaciona à
perseguição sofrida por advogados de presos políticos e, depois, pela
própria OAB, quando ela, anos depois de apoiar o golpe de estado,
decidiu opor-se à ditadura. Dessa forma, a própria lei do regime podia
ser usada para denunciá-lo, desmascarando suas pretensões a ser visto
como democrático.
Posições esquemáticas, ou até mesmo topológicas, que vinculem
automaticamente legalismo a conservadorismo, devem ser substituídas por
um olhar atento às práticas sociais."
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/02/desarquivando-o-brasil-li-conferencia.html
Desarquivando o Brasil LII: 40 anos após a morte de Alexandre Vannucchi Leme. "Apesar de um certo mal-estar que os assuntos de justiça de transição e
direito à memória e à verdade causam em boa parte dessa Universidade (e
em outras instituições brasileiras), e também em razão desse mesmo
sentimento, creio que a Comissão da Verdade da USP, em suas futuras
atividades, deverá investigar documentos como o citado na informação
secreta do DOPS/SP, de 18 de outubro de 1973, que pode ser lida ao lado."
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/03/desarquivando-o-brasil-lii-40-anos-apos.html
Desarquivando o Brasil LIII: Blogagem Coletiva e Dia Internacional do Direito à Verdade. "O Brasil começou neste ano a oficialmente festejar a data, criada pela
ONU em 2010, em homenagem ao arcebispo de El Salvar Óscar Romero,
assassinado em 1980. No Rio de Janeiro e em São Paulo, artistas
organizaram eventos para a comemoração. Nos dois lugares, a escritora e
psicanalista Maria Rita Kehl, que é um dos membros da Comissão Nacional
da Verdade, apresentou os trabalhos."
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/03/desarquivando-o-brasil-liii-blogagem.html
Desarquivando o Brasil LIV: Negacionismo de reserva no Brasil e no Chile. "O
curioso documento admite o desaparecimento de vários oposicionistas (e
deixa clara a resposabilidade de Pinochet, que tentava jogar toda a
culpa sobre seu subordinado), mas quer demonstrar que a esquerda
inventava acusações contra a
DINA, Contreras e o ditador Em seu insistente negacionismo, chega a
afirmar que o Chile havia sido o 'único país no mundo' a derrotar o 'terrorismo' com um 'mínimo de baixas humanas' [...]".
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/03/desarquivando-o-brasil-liv-negacionismo.html
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
domingo, 31 de março de 2013
sábado, 30 de março de 2013
Desarquivando o Brasil LIV: Negacionismo de reserva no Brasil e no Chile
Com o que Carlos Fico chamou de "comunicado patético" (https://twitter.com/brasilrecente/status/317394150507044864), os presidentes dos Clubes Naval, Militar e de Aeronáutica divulgaram um manifesto, em 28 de março de 2013, com a data de 31 de março (certamente em alusão ao golpe de
1º
de abril de 1964), para criticar a Comissão Nacional da Verdade, cujos membros seriam "totalitários".
Ele
pode ser lido nesta ligação: http://www.defesanet.com.br/dita/noticia/10237/31-de-Marco----Nota-dos-Clubes-Militares
Qual é
a preocupação aparente desses militares da reserva? Que haja uma nova versão
dos fatos ocorridos durante a ditadura. Por essa razão, preocupado com a
investigação sobre os crimes cometidos pelos agentes do Estado, seus
colaboradores e financiadores, em fevereiro último, o presidente do clube de
Aeronáutica, o brigadeiro Ivan Frota, havia entregue a Cláudio Fontelles, da
CNV, documentos, principalmente o ORVIL, livro sobre as organizações
clandestinas de esquerda elaborado a partir das informações obtidas por meio da
tortura: http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,militares-criticam-comissao-da-verdade-e-homenageiam-golpe-de-64,1014395,0.htm
O
próprio documento entregue, pois, depõe contra aqueles que o entregaram...
Esse
tipo de reação negacionista contra mecanismos de justiça de transição também ocorreu em outros lugares. No
Chile, o General Manuel Contreras Sepúlveda entregou documentos à Justiça, com um manifesto,
de 12 de maio de 2005, "Introducción a la entrega de documentos que
demuestran las verdaderas responsabilidades de las instituciones de la defensa
nacional en la lucha contra el terrorismo en Chile", que li na Biblioteca
de Nanterre (e pode ser baixado aqui: http://www.latinamericanstudies.org/chile/contreras-2005.pdf). Ele dirigiu a DINA (Direção da Inteligência
Nacional), uma das peças fundamentais da repressão política e do terror de
Estado durante a ditadura de Pinochet.
Contreras já havia sido condenado pelo assassinato do oposicionista Orlando Letelier nos EUA, e sofreria nova pena neste processo: http://www.latinamericanstudies.org/operation-condor.htm
O
curioso documento admite o desaparecimento de vários oposicionistas (e deixa clara a resposabilidade de Pinochet, que tentava jogar toda a culpa sobre seu subordinado), mas quer demonstrar que a esquerda inventava acusações contra a
DINA, Contreras e o ditador Em seu insistente negacionismo, chega a afirmar que o Chile havia sido o "único país no mundo" a derrotar o "terrorismo" com um "mínimo de baixas humanas":
[...] nuestra Patria ha sido el único País en el mundo que ha derrotado al terrorismo con un minimo de bajas humanas, en relación a la criminalidad y violencia con la cual esta especie violentista ha demonstrado producir a lo largo de su accionar en tantos lugares del planeta.
A afirmação
negacionista, que minimiza a violência da repressão chilena, é acompanhada da
defesa da negação dos direitos humanos pela repressão política: "vincular
a luta contra o terrorismo aos direitos humanos" seria um "grave erro
de incalculáveis consequências".
Nesse ponto, como também ocorreu no Brasil (o script da doutrina de segurança nacional apresentava semelhanças nos dois paises), a direita armada associa os direitos humanos ao marxismo, pois permitiria que os marxistas fossem considerados "vítimas":
Vincular la lucha contra el terrorismo com los DD.HH. es un grave error de incalculables consecuencias. Este peligroso error queda palmariamente demostrado por cuanto los DD.HH., como concepto universal, fue apropriado por los marxistas y tuvo como principal escenario de aplicación y desarollo a nuestro País, traduciéndose em que los terroristas fueran considerados “las víctimas” y, los Militares que derrotaron al terrorismo en Chile fueran catalogados como “victimarios”.
Nesse ponto, Contreras acaba por admitir o caráter criminoso do regime de Pinochet na violação institucionalizada dos direitos humanos pelos órgãos de repressão. Entende-se, portanto, que Contreras lamente a democratização; com ela, "Queda
la impresión que la Historia, en este caso, ha variado trágicamente su rumbo". Felizmente, o curso da história virou... É o mesmo lamento daqueles militares da reserva brasileiros, com a significativa diferença de que estes não foram condenados nem processados.
Já que
esses militares estão preocupados com a CNV (julgando-a mais efetiva do que boa parte dos militantes de esquerda), poderiam, quem sabe, colaborar com
ela procurando, por exemplo, descobrir o que o tenente-coronel Sergio Arredondo,
encarregado da DINA no Brasil, oficialmente adido militar, fazia neste país. Ele participou da Caravana da Morte em 1973 (http://epoca.globo.com/edic/20010129/mundo1a.htm).
Teria ele entrado em contato com os
torturadores brasileiros que estiveram presentes no Chile desde o início da
ditadura de Pinochet? Qual foi seu papel na cooperação entre as duas ditaduras
no âmbito da Operação Condor? Ele teria participado do possível assassinato de Juscelino Kubitscheck, como já se suspeitou: http://www2.uol.com.br/JC/_2001/2703/po2703_11.htm?
P.S.: Esta nota integra a VII Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR, cuja chamada pode ser lida nesta ligação: http://desarquivandobr.wordpress.com/2013/03/24/vii-blogagem-coletiva-desarquivandobr/
sexta-feira, 29 de março de 2013
Fábulas da censura: O poeta Pound ouvindo soul na praia de Ipanema
O Poeta Pound Ouvindo Soul na Praia de Ipanema
Atirei
O pau no gato
Mas o gato não morreu
Dona Chica admirou-se
Do berrô ] 2x
Que o gato deu,
Miau!
"Não restam dúvidas de que a música deve ser vetada. Sem direito a recurso. Trata-se de um incentivo à guerrilha urbana. Parece que não basta mais andar com o manualzinho do Debray. Nem com as bulas dos coquetéis molotov. Agora eles querem cantar sua fúria livremente pelas ruas, por meio de metáforas trabalhadíssimas (É coisa de poeta? Não, poesia é mais simples. Mais natural. Nada dessa sofisticação artificial e pretensiosa.) Mas as aparências não enganam, exceto se não forem aparentes. A letra silencia justamente o que não diz. A palavra cala por meio de seu não. Mas é inútil ocultar. O lado verdadeiro é o avesso da verdade. Não podemos nos enganar: arte é apenas uma interpretação rasteira. Lendo melhor, vemos que ela é política. Ler melhor é questão política."
"Reconhecemos na letra ora em análise uma paródia à política do governo em relação às florestas e, mais especificamente, à Amazônia. Esta nova subversão, verde, comunismo disfarçado de ciência, a ecologia, é potencialmente muito mais perigosa do que as antigas formas vermelhas. Como se houvesse problema em derrubar algumas árvores (atirei o pau!) e caçar alguns animais, o gato, que é a onça, animal feroz e traiçoeiro já nas lendas ingênuas dos índios, figuras folclóricas do nosso passado subdesenvolvido. O jeitinho verde de subverter se insurge contra os próprios motores do nosso desenvolvimento, como a gloriosa e inenarrável Transamazônica! Esta maravilha do mundo moderno, este prodígio da engenharia humana, mais uma conquista da técnica e da ciência brasileira, ao lado dos futuros satélites e usinas nucleares, virá tão somente a confirmar o Brasil como lume de todos os povos e não pode ser vilipendiada por línguas falazes sem que se esteja afrontando a segurança nacional..."
- Você também foi contra? Até você, que tem todos os discos dele?
- Tenho o barulho subversivo só para entender as estratégias da Guerra Revolucionária.
- Eu pensava em não censurar nada, não vi nada de errado com...
- Este é o risco: não haver nada de errado.
- Continuo não vendo nada.
- Esses compositores são muito sofisticados, conforme apontei. Pegue uma enciclopédia. Pegue aquela que foi censurada mês passado, mandei ela ficar no departamento, pois é muito boa. Consulte. E veja a que eles recorrem para esconder suas más intenções. Enquanto usamos a cultura para mostrar e educar, os artistas a empregam para obscurecer e duvidar. Cuidado com o que lê. Você pode ser apanhado.
“Pound foi um poeta fascista norte-americano que morreu louco. Soul é um ritmo idem. A letra fala da resistência à influência da cultura americana, que não morre, apesar dos ataques que sofre dos músicos nacionais. O pau é o pau-brasil. Temo que a letra vá acirrar os conflitos da Guerra Fria. Também é possível que a letra esteja se posicionando numa posição pró-soviética. É melhor consultar o Itamaraty, que tão bem tem servido nosso Estado, sobre a questão.”
"Como se sabe, pound é a moeda inglesa. O fato de estar ouvindo soul, que é alma em inglês, significa que o compositor acha que o novo regime é sustentado por agentes estrangeiros, ou, então, infâmia maior, indica uma crítica mordaz à política soberana de endividamento externo. A canção só poderá ser liberada se o título for vertido para o vernáculo."
- Poeta desde o título? É coisa de desocupado. Vou riscar tudo. Na prisão esse pessoal nem lava o chão direito.
"Obviamente esta música tem conotações obscenas de perversão consubstanciada na inversão sexual verificada no louvor do órgão sexual masculino. O compositor, desde a última obra aqui liberada (com voto contrário meu), "Ciranda, cirandinha", em que pouco veladamente incitava os jovens para a prática do sexo grupal e do amor livre, o que é uma mentira, se houvesse liberdade é óbvio que não haveria amor, ele vem denegrindo a sagrada instituição, e com que aplausos da intelectualidade, sempre vendida aos interesses alienígenas, da família. Nenhuma obra mais desse músico merece ser liberada. Que os jovens não ouçam mais mensagens libidinosas que possam conduzi-los à prática de atos licenciosos. Ainda mais aqueles que ofendem a lei de Deus e da natureza. Dessarte, a liberação deve ficar condicionada à troca da palavra Dona por Senhora, que, pelo contrário, inspira castidade."
- Tá na cara. Se é Ipanema, é maconha. Se mudar o título para Higienópolis, tudo bem.
- Tem comunista com letra P?
- Como assim?
- Muita aliteração: Poeta Pound ouvindo soul na Praia de iPanema... Depois, a música fala de pau...
- Claro, o Prestes! Tem tudo a ver como ele, essa coisa de pau é bem de militar.
- A exceção do P é "ouvindo soul".
- Código óbvio para soucialismo. E a Dona Chica só pode ser Cuba.
"A letra insinua que há prisioneiros políticos neste país, os gatos, animais traiçoeiros, e que eles sofrem maltratos. Berrô, quem é? Uma aberração? Por que 2 x? É uma identidade secreta. Se o compositor for interrogado, talvez se veja forçado a revelar o verdadeiro nome de Berrô."
"... e o miau final é uma corruptela óbvia de Mao!"
Não, não se levantem! Minhas estrelas não exigem continência de vocês, civis; isto é, nem sempre. Vim ver o trabalho deste setor, um dos mais leais e capazes de nosso Estado. Estão trabalhando contra quem? Esse aí? Conheço seus sambinhas. Minha filha é gamada nele, só de lembrar tenho vontade de arrebentar com o sujeito. Pois é, para esse artista metido a bacana e esperto, vocês têm que trabalhar todos juntos mesmo, para evitar os fatais enganos já cometidos e que causaram certos expurgos no setor. O que é isso aí? Não, não quero ler o que vocês escreveram não. Parecer não tem nada de arte. Quero a obra. Lê só o primeiro verso da música para mim. Interessante. Atirou... E mata, no final? Mata mesmo? Então liberem; é música de macho!
Atirei
O pau no gato
Mas o gato não morreu
Dona Chica admirou-se
Do berrô ] 2x
Que o gato deu,
Miau!
"Não restam dúvidas de que a música deve ser vetada. Sem direito a recurso. Trata-se de um incentivo à guerrilha urbana. Parece que não basta mais andar com o manualzinho do Debray. Nem com as bulas dos coquetéis molotov. Agora eles querem cantar sua fúria livremente pelas ruas, por meio de metáforas trabalhadíssimas (É coisa de poeta? Não, poesia é mais simples. Mais natural. Nada dessa sofisticação artificial e pretensiosa.) Mas as aparências não enganam, exceto se não forem aparentes. A letra silencia justamente o que não diz. A palavra cala por meio de seu não. Mas é inútil ocultar. O lado verdadeiro é o avesso da verdade. Não podemos nos enganar: arte é apenas uma interpretação rasteira. Lendo melhor, vemos que ela é política. Ler melhor é questão política."
"Reconhecemos na letra ora em análise uma paródia à política do governo em relação às florestas e, mais especificamente, à Amazônia. Esta nova subversão, verde, comunismo disfarçado de ciência, a ecologia, é potencialmente muito mais perigosa do que as antigas formas vermelhas. Como se houvesse problema em derrubar algumas árvores (atirei o pau!) e caçar alguns animais, o gato, que é a onça, animal feroz e traiçoeiro já nas lendas ingênuas dos índios, figuras folclóricas do nosso passado subdesenvolvido. O jeitinho verde de subverter se insurge contra os próprios motores do nosso desenvolvimento, como a gloriosa e inenarrável Transamazônica! Esta maravilha do mundo moderno, este prodígio da engenharia humana, mais uma conquista da técnica e da ciência brasileira, ao lado dos futuros satélites e usinas nucleares, virá tão somente a confirmar o Brasil como lume de todos os povos e não pode ser vilipendiada por línguas falazes sem que se esteja afrontando a segurança nacional..."
- Você também foi contra? Até você, que tem todos os discos dele?
- Tenho o barulho subversivo só para entender as estratégias da Guerra Revolucionária.
- Eu pensava em não censurar nada, não vi nada de errado com...
- Este é o risco: não haver nada de errado.
- Continuo não vendo nada.
- Esses compositores são muito sofisticados, conforme apontei. Pegue uma enciclopédia. Pegue aquela que foi censurada mês passado, mandei ela ficar no departamento, pois é muito boa. Consulte. E veja a que eles recorrem para esconder suas más intenções. Enquanto usamos a cultura para mostrar e educar, os artistas a empregam para obscurecer e duvidar. Cuidado com o que lê. Você pode ser apanhado.
“Pound foi um poeta fascista norte-americano que morreu louco. Soul é um ritmo idem. A letra fala da resistência à influência da cultura americana, que não morre, apesar dos ataques que sofre dos músicos nacionais. O pau é o pau-brasil. Temo que a letra vá acirrar os conflitos da Guerra Fria. Também é possível que a letra esteja se posicionando numa posição pró-soviética. É melhor consultar o Itamaraty, que tão bem tem servido nosso Estado, sobre a questão.”
"Como se sabe, pound é a moeda inglesa. O fato de estar ouvindo soul, que é alma em inglês, significa que o compositor acha que o novo regime é sustentado por agentes estrangeiros, ou, então, infâmia maior, indica uma crítica mordaz à política soberana de endividamento externo. A canção só poderá ser liberada se o título for vertido para o vernáculo."
- Poeta desde o título? É coisa de desocupado. Vou riscar tudo. Na prisão esse pessoal nem lava o chão direito.
"Obviamente esta música tem conotações obscenas de perversão consubstanciada na inversão sexual verificada no louvor do órgão sexual masculino. O compositor, desde a última obra aqui liberada (com voto contrário meu), "Ciranda, cirandinha", em que pouco veladamente incitava os jovens para a prática do sexo grupal e do amor livre, o que é uma mentira, se houvesse liberdade é óbvio que não haveria amor, ele vem denegrindo a sagrada instituição, e com que aplausos da intelectualidade, sempre vendida aos interesses alienígenas, da família. Nenhuma obra mais desse músico merece ser liberada. Que os jovens não ouçam mais mensagens libidinosas que possam conduzi-los à prática de atos licenciosos. Ainda mais aqueles que ofendem a lei de Deus e da natureza. Dessarte, a liberação deve ficar condicionada à troca da palavra Dona por Senhora, que, pelo contrário, inspira castidade."
- Tá na cara. Se é Ipanema, é maconha. Se mudar o título para Higienópolis, tudo bem.
- Tem comunista com letra P?
- Como assim?
- Muita aliteração: Poeta Pound ouvindo soul na Praia de iPanema... Depois, a música fala de pau...
- Claro, o Prestes! Tem tudo a ver como ele, essa coisa de pau é bem de militar.
- A exceção do P é "ouvindo soul".
- Código óbvio para soucialismo. E a Dona Chica só pode ser Cuba.
"A letra insinua que há prisioneiros políticos neste país, os gatos, animais traiçoeiros, e que eles sofrem maltratos. Berrô, quem é? Uma aberração? Por que 2 x? É uma identidade secreta. Se o compositor for interrogado, talvez se veja forçado a revelar o verdadeiro nome de Berrô."
"... e o miau final é uma corruptela óbvia de Mao!"
Não, não se levantem! Minhas estrelas não exigem continência de vocês, civis; isto é, nem sempre. Vim ver o trabalho deste setor, um dos mais leais e capazes de nosso Estado. Estão trabalhando contra quem? Esse aí? Conheço seus sambinhas. Minha filha é gamada nele, só de lembrar tenho vontade de arrebentar com o sujeito. Pois é, para esse artista metido a bacana e esperto, vocês têm que trabalhar todos juntos mesmo, para evitar os fatais enganos já cometidos e que causaram certos expurgos no setor. O que é isso aí? Não, não quero ler o que vocês escreveram não. Parecer não tem nada de arte. Quero a obra. Lê só o primeiro verso da música para mim. Interessante. Atirou... E mata, no final? Mata mesmo? Então liberem; é música de macho!
quinta-feira, 28 de março de 2013
Hamlet Molotov, ou Julián Axat, poesia e história
Esta tradução foi escrita para a VII Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR, cuja chamada pode ser lida no blogue da jornalista Niara de Oliveira: http://pimentacomlimao.wordpress.com/2013/03/24/vii-blogagem-coletiva-desarquivandobr/ Dela já estão a participar a jurista Maria Carolina Bissoto (http://entrepasadoyelfuturo.blogspot.com.br/2013/03/45-anos-da-morte-do-estudante-edson.html) e a jornalista Suzana Dornelles (http://desarquivandobr.wordpress.com/2013/03/24/nao-passara/).
Gosto muito da poesia argentina e da forma como autores contemporâneos tratam as questões da história e da política.
Um dos principais nomes da poesia argentina de hoje é Julián Axat, que é um dos poetas que tenho estudado mais regularmente. Depois de lê-lo, traduzi-lo e resenhá-lo, acabamos nos tornando amigos. Em seu livro de 2012, Neo (Buenos Aires: El Suri Porfiado), ele avança ainda mais no diálogo entre poesia e história.
O amplo espectro do peronismo cobre da direita à esquerda. A parte IX alude à volta de Perón em 1973 e ao episódio do massacre de Ezeiza; no palco onde discursaria o ex-exilado estavam homens armados de Osinde, da direita do peronismo, que atiraram nos grupos de esquerda, em um conhecido e não apurado episódio de massacre da história argentina. Antonio Cafiero, social-democrata, perdeu a disputa pelo controle do peronismo para Menem (ver este artigo da professora Marcela Ferrari: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-33522012000200005&script=sci_arttext&tlng=pt).
Há outras alusões. Kafka, o caudilho Facundo Quiroga, Ginsberg, Shakespeare, o genocida Videla, o Pai - encarnando a figura do desaparecido pelo terror de Estado - e outros nomes circulam neste caleidoscópio, cujo centro é a ditadura militar argentina.
Vejam como o crânio que Hamlet, o vingador de seu pai, segura, torna-se em um coquetel molotov na parte VI. Não conheço nada de equivalente a essa combinação de militância e memória na poesia brasileira, a essa imaginação literária da justiça.
Gosto muito da poesia argentina e da forma como autores contemporâneos tratam as questões da história e da política.
Um dos principais nomes da poesia argentina de hoje é Julián Axat, que é um dos poetas que tenho estudado mais regularmente. Depois de lê-lo, traduzi-lo e resenhá-lo, acabamos nos tornando amigos. Em seu livro de 2012, Neo (Buenos Aires: El Suri Porfiado), ele avança ainda mais no diálogo entre poesia e história.
O amplo espectro do peronismo cobre da direita à esquerda. A parte IX alude à volta de Perón em 1973 e ao episódio do massacre de Ezeiza; no palco onde discursaria o ex-exilado estavam homens armados de Osinde, da direita do peronismo, que atiraram nos grupos de esquerda, em um conhecido e não apurado episódio de massacre da história argentina. Antonio Cafiero, social-democrata, perdeu a disputa pelo controle do peronismo para Menem (ver este artigo da professora Marcela Ferrari: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-33522012000200005&script=sci_arttext&tlng=pt).
Há outras alusões. Kafka, o caudilho Facundo Quiroga, Ginsberg, Shakespeare, o genocida Videla, o Pai - encarnando a figura do desaparecido pelo terror de Estado - e outros nomes circulam neste caleidoscópio, cujo centro é a ditadura militar argentina.
Vejam como o crânio que Hamlet, o vingador de seu pai, segura, torna-se em um coquetel molotov na parte VI. Não conheço nada de equivalente a essa combinação de militância e memória na poesia brasileira, a essa imaginação literária da justiça.
Antologia
2020
a Juan
Diuzeide
1
Montar uma
bicicleta coxal / sair a passeio / levar
as medulas
pelo DNA
extraído da
irmã que busca poeta / não Tinajero
/ Evas /
muitas Evas /
apropriadas
/ re-tratadas ou próximas a sê-lo
guidão em
suas vértebras do dizer
2
Armar uma
biblioteca sobre o golpe de 76 / fazê-la
arder ao
agregar
a versão
“40 anos depois, as causas do golpe
foram...”
3
Procurar o
filho idiota de Videla / convidá-lo a
participar de
Hijos com coletes.
4
Pre mortem:
encontrar radiografia de fêmur 1973: chumbo de 22 intacto no fêmur esquerdo /
Ezeiza / disparada enquanto / do palco Osinde lê Uivo de Ginsberg / alguém
(ainda não sabemos) / lhe faz manicure.
5
Posmo-rtem:
Caminhante de sombras / resto abatido entre tiras e ladrões exige devolução de
seu olho azul / para buraco teia aranha em calota perfurada / “O tempo dos
ossos é o tempo do vazio ou das pistas” (Franz Kafka. Diários).
6
Depois de
vinte anos encontram o crânio de seu pai / só o crânio / por fim era seu / o
apoiou sobre a mesa de luz para quando se desvelasse / diante do espelho falou
o monólogo do Príncipe da Dinamarca / usou-o como cinzeiro / envolve-o em papel
de jornal da época e até lhe desenhou um sorriso / em 2001 encheu-o de benzina
e pano úmido lançou-o molotov em um tira / nele escreveu versos de Maiakóvski
na frente onde mais tarde escondeu uma tiara com gravata nomenclatura / hoje
limpo de novo na mesa de luz
7
Sonho com o
ataúde do ex-presidente / Regresso à praça nessa tarde de outubro / volto à
mesma fila / na sala, se abre o caixão / saem vários John Malkovich
interpelando-me / queres ser a mim ou a nós? /A resposta vem da fila no fundo,
onde outros Malkovich gritam: Acabou-se Hamlet, agora Hécuba!
8
É
necessário submergir nas profundidades e salvar o pai para converter-se em um
menino real?
9
Antologia peronista
2020 / sonho que o General me encarrega de fazer a lista que vai trazê-lo de
volta da Espanha / passo a colocar companheiros nas filas dos assentos do avião
/ poetas de uma futura antologia neo-urondiana / então o General exige paridade
e não esqueça os neo-cafieristas / que esses têm que estar de qualquer jeito na
comitiva de regresso / desperto quando recordo que meu pai estará esperando a
chegada do avião / vão atirar nele do Palco / e ali está Osinde vociferando
Howl / e um neocafierista que faz as mãos com uma lixa / enquanto / pensa em um
poema para minha antologia 2020.
10
Armar o
arquivo das organizações revolucionárias / o museu mais completo da guerrilha
armada / de todas as guilhotinas em que a palavra fraternidade tenha sido
cortada / como margarita ou porco / arremessada sua cabeça de coágulo com
pétalas de sujeira & sangue / um Facundo bárbaro e civilizado / operação saciedade
ou a impossibilidade de sua leitura / para novas gerações adivinhas-tesouras /
as que visitem o museu.
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