Como lá estive muito ocupado com as tarefas acadêmicas, concentrei-me em livros teóricos. Dessa forma, esta antologia não será poética como foram estas: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/07/antologia-de-viagem-argentina.html e http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/07/antologia-de-viagem-argentina-ii.html
Tampouco será mural (como esta: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/08/antologia-mural-de-viagem-argentina.html), eis que os parisienses não aprovam tais práticas na paisagem urbana. No entanto, as manifestações podem ser vistas e ouvidas nas ruas da cidade. Uma das mais célebres composições de Clément Janequin (1485-1558) é justamente "Voulez ouyr les cris de Paris", de que o Ensemble que leva o nome do compositor fez uma grande gravação: http://www.youtube.com/watch?v=FiPhbS_ZlRk.
Da Renascença aos dias de hoje, os gritos de Paris continuam a se fazer ouvir. Trago aqui apenas alguns dos que pude registrar em cartazes, acompanhados de excertos de obra que lá comprei e li, Retour à Reims (Paris: Flammarion, 2010 - a primeira edição é de 2009), de Didier Eribon, um livro que transita com imaginação entre teoria e autobiografia. O sociólogo, em razão da morte do pai, com quem não falava há anos, retornou à cidade natal, motivando todo um olhar sociológico sobre o passado, a família e o meio operário em que ele foi educado.
Por sinal, será publicado novo livro dele neste ano, La société comme verdict: http://didiereribon.blogspot.com.br/2013/03/a-paraitre-le-17-avril-la-societe-comme.html
Os cartazes, fotografei-os nas duas manifestações que acompanhei. A canção de Janequin não termina afirmando que, se se quer ouvir mais, deve-se ir para rua?
Escrevi uma nota sobre a passeata de 27 de janeiro deste ano em prol do matrimônio igualitário na França, o Mariage pour tous: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/01/matrimonio-igualitario-na-franca-ii.html
Nela, incluí algumas fotos, porém, alguns dos cartazes mais curiosos, deixei-os para depois.Como o cartaz ao lado, que afirma que certa parte do corpo do manifestante é um local de embates (amorosos, imagino), e não assunto de debates. O trocadilho funciona em português.
Bandeiras da frente da esquerda coloriam a paisagem, bem como as do arco-íris, tipicamente presentes nas manifestações pela liberdade sexual.
Ainda a respeito de formas alternativas de "parentalidade", vemos o cartaz com sensata interpretação bíblica, "Santa Maria/ Mãe de aluguel".
É de lembrar que a prática da mãe de aluguel é ilegal na França. O governo, em 25 desse mês de janeiro, gerou uma reação raivosa da direita por decidir facilitar o reconhecimento da cidadania francesa às crianças de pai francês que nasceram no estrangeiro por meio dessa prática.
O fascismo dessa direita é tão grande que deseja negar o direito à nacionalidade, no entanto previsto pelo artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Por outro lado, pode-se lembrar de uma crítica de esquerda, contrária ao casamento igualitário por considerá-lo burguês ou coisa parecida (conheço até quem seja contra cantar afinado, pois a afinação também seria burguesa...). Já escrevi sobre essa esquerda, tão conveniente para a direita. Agora, apenas cito o livro de Eribon:
Sem dúvida o sentimento de desgosto que me inspiram hoje estes e estas que tentam impor sua definição do que é um casal, do que é uma família, da legitimidade social e jurídica reconhecida a alguns e recusada a outros etc, e que invocam modelos que jamais existiram, salvo na sua imaginação conservadora e autoritária, devem muito de sua intensidade a esse passado em que as formas alternativas estavam destinadas a serem vividas na consciência de si como desviantes e a-normais e, logo, inferiores e vergonhosas. É por isso que desconfio igualmente das imposições de a-normalidade que nos são dirigidas pelos defensores – igualmente normativos, no fundo – de uma não-normalidade erigida em “subversão” prescrita, de tanto que pude constatar, ao longo de minha vida, a que ponto normalidade e a-normalidade eram realidades completamente relativas, relacionais, móveis, imbricadas uma na outra, sempre parciais... [p. 70-71]
A votação do projeto não acabou ainda. Como se sabe, o Reino Unido foi mais rápido e aprovou o matrimõnio igualitário em fevereiro deste ano. Leiam o comentário de que o casamento de Elton John aumentaria em um décimo o PIB: http://www.guardian.co.uk/society/2013/feb/05/gay-marriage-saviour-of-economy?INTCMP=SRCH
No último dia de estadia, 31 de janeiro de 2013, as minhas aulas já haviam acabado e eu havia acabado de despachar as malas. Peguei o RER para dar uma última olhada em Paris e vi no trem um passageiro com cartaz de protesto contra o governo de Hollande. Perguntei do que se tratava, e ele explicou que iria para a manifestação contra o governo que começaria às 14 horas, partindo da estação de Denfert-Rochereau.
"O voto "útil"/ Eis aonde isso leva", era uma das faces do cartaz.
Fui almoçar e acompanhei a manifestação até as 16 horas, quando ela tinha chegado no Boulevard Raspail com a Rue du Bac. Ela foi bem menor do que a do Mariage pour tous.
Nessa manifestação, a frente de esquerda não contou, logicamente, com o PS. Os comunistas lá estavam e alguns cantavam. Foi a única vez que ouvi música cubana, e em espanhol, tocando nas ruas de Paris.
Lá, os manifestantes pararam. Ao lado, podem-se ver os percussionistas e alguns dos cartazes: "O Estado enterra a Universidade", "Resistamos e salvemos nosso futuro".
"Eles disseram amém", está escrito no caixão erguido. Aqui diríamos, inspirados no governador de São Paulo, "quem não reage está morto".
Sobre esse protesto, imagino que esta passagem do livro de Eribon fosse a mais conveniente:
[...] os partidos de esquerda e seus intelectuais de partido e de Estado pensaram e falaram desde então uma linguagem de governantes, e não mais a dos governados, exprimiram-se em nome dos governantes (e com eles), não mais em nome dos governados (e com eles) e, portanto, adotaram sobre o mundo um ponto de vista de governantes, rejeitando com desdém (com uma grande violência discursiva, sentida como tal por aqueles sobre quem ela se exerceu) o ponto de vista dos governados. [p. 130-131]
Não cai como uma luva para certa esquerda brasileira?
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