O Poeta Pound Ouvindo Soul na Praia de Ipanema
Atirei
O pau no gato
Mas o gato não morreu
Dona Chica admirou-se
Do berrô ] 2x
Que o gato deu,
Miau!
"Não restam dúvidas de que a música deve ser vetada. Sem direito a recurso. Trata-se de um incentivo à guerrilha urbana. Parece que não basta mais andar com o manualzinho do Debray. Nem com as bulas dos coquetéis molotov. Agora eles querem cantar sua fúria livremente pelas ruas, por meio de metáforas trabalhadíssimas (É coisa de poeta? Não, poesia é mais simples. Mais natural. Nada dessa sofisticação artificial e pretensiosa.) Mas as aparências não enganam, exceto se não forem aparentes. A letra silencia justamente o que não diz. A palavra cala por meio de seu não. Mas é inútil ocultar. O lado verdadeiro é o avesso da verdade. Não podemos nos enganar: arte é apenas uma interpretação rasteira. Lendo melhor, vemos que ela é política. Ler melhor é questão política."
"Reconhecemos na letra ora em análise uma paródia à política do governo em relação às florestas e, mais especificamente, à Amazônia. Esta nova subversão, verde, comunismo disfarçado de ciência, a ecologia, é potencialmente muito mais perigosa do que as antigas formas vermelhas. Como se houvesse problema em derrubar algumas árvores (atirei o pau!) e caçar alguns animais, o gato, que é a onça, animal feroz e traiçoeiro já nas lendas ingênuas dos índios, figuras folclóricas do nosso passado subdesenvolvido. O jeitinho verde de subverter se insurge contra os próprios motores do nosso desenvolvimento, como a gloriosa e inenarrável Transamazônica! Esta maravilha do mundo moderno, este prodígio da engenharia humana, mais uma conquista da técnica e da ciência brasileira, ao lado dos futuros satélites e usinas nucleares, virá tão somente a confirmar o Brasil como lume de todos os povos e não pode ser vilipendiada por línguas falazes sem que se esteja afrontando a segurança nacional..."
- Você também foi contra? Até você, que tem todos os discos dele?
- Tenho o barulho subversivo só para entender as estratégias da Guerra Revolucionária.
- Eu pensava em não censurar nada, não vi nada de errado com...
- Este é o risco: não haver nada de errado.
- Continuo não vendo nada.
- Esses compositores são muito sofisticados, conforme apontei. Pegue uma enciclopédia. Pegue aquela que foi censurada mês passado, mandei ela ficar no departamento, pois é muito boa. Consulte. E veja a que eles recorrem para esconder suas más intenções. Enquanto usamos a cultura para mostrar e educar, os artistas a empregam para obscurecer e duvidar. Cuidado com o que lê. Você pode ser apanhado.
“Pound foi um poeta fascista norte-americano que morreu louco. Soul é um ritmo idem. A letra fala da resistência à influência da cultura americana, que não morre, apesar dos ataques que sofre dos músicos nacionais. O pau é o pau-brasil. Temo que a letra vá acirrar os conflitos da Guerra Fria. Também é possível que a letra esteja se posicionando numa posição pró-soviética. É melhor consultar o Itamaraty, que tão bem tem servido nosso Estado, sobre a questão.”
"Como se sabe, pound é a moeda inglesa. O fato de estar ouvindo soul, que é alma em inglês, significa que o compositor acha que o novo regime é sustentado por agentes estrangeiros, ou, então, infâmia maior, indica uma crítica mordaz à política soberana de endividamento externo. A canção só poderá ser liberada se o título for vertido para o vernáculo."
- Poeta desde o título? É coisa de desocupado. Vou riscar tudo. Na prisão esse pessoal nem lava o chão direito.
"Obviamente esta música tem conotações obscenas de perversão consubstanciada na inversão sexual verificada no louvor do órgão sexual masculino. O compositor, desde a última obra aqui liberada (com voto contrário meu), "Ciranda, cirandinha", em que pouco veladamente incitava os jovens para a prática do sexo grupal e do amor livre, o que é uma mentira, se houvesse liberdade é óbvio que não haveria amor, ele vem denegrindo a sagrada instituição, e com que aplausos da intelectualidade, sempre vendida aos interesses alienígenas, da família. Nenhuma obra mais desse músico merece ser liberada. Que os jovens não ouçam mais mensagens libidinosas que possam conduzi-los à prática de atos licenciosos. Ainda mais aqueles que ofendem a lei de Deus e da natureza. Dessarte, a liberação deve ficar condicionada à troca da palavra Dona por Senhora, que, pelo contrário, inspira castidade."
- Tá na cara. Se é Ipanema, é maconha. Se mudar o título para Higienópolis, tudo bem.
- Tem comunista com letra P?
- Como assim?
- Muita aliteração: Poeta Pound ouvindo soul na Praia de iPanema... Depois, a música fala de pau...
- Claro, o Prestes! Tem tudo a ver como ele, essa coisa de pau é bem de militar.
- A exceção do P é "ouvindo soul".
- Código óbvio para soucialismo. E a Dona Chica só pode ser Cuba.
"A letra insinua que há prisioneiros políticos neste país, os gatos, animais traiçoeiros, e que eles sofrem maltratos. Berrô, quem é? Uma aberração? Por que 2 x? É uma identidade secreta. Se o compositor for interrogado, talvez se veja forçado a revelar o verdadeiro nome de Berrô."
"... e o miau final é uma corruptela óbvia de Mao!"
Não, não se levantem! Minhas estrelas não exigem continência de vocês, civis; isto é, nem sempre. Vim ver o trabalho deste setor, um dos mais leais e capazes de nosso Estado. Estão trabalhando contra quem? Esse aí? Conheço seus sambinhas. Minha filha é gamada nele, só de lembrar tenho vontade de arrebentar com o sujeito. Pois é, para esse artista metido a bacana e esperto, vocês têm que trabalhar todos juntos mesmo, para evitar os fatais enganos já cometidos e que causaram certos expurgos no setor. O que é isso aí? Não, não quero ler o que vocês escreveram não. Parecer não tem nada de arte. Quero a obra. Lê só o primeiro verso da música para mim. Interessante. Atirou... E mata, no final? Mata mesmo? Então liberem; é música de macho!
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
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