O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Último livro do ano: o Cristo de Mirisola

Ronald Polito emprestou-me neste fim de ano e acabei de ler, com bastante gosto, o livro de crônicas de Marcelo Mirisola O Cristo empalado (Rio de Janeiro: Oito e meio, 2013). Quem conhece a ficção desse autor logo o reconhecerá (ou reconheceu) nos textos, na maioria publicados no sítio Congresso em Foco.
Lamento, porém, que o livro tenha problemas de revisão.
Em Mirisola, temos um estilo com fortes frases de efeito: como Nelson Rodrigues, que ele cita, temos a sensação de que prefere perder o amigo a perder a frase e o personagem. Para o escritor, o problema é perder, às vezes, o rumo da reflexão na busca do efeito, risco que se acentua por ele dar a impressão de confessar-se, desabafar sem muita censura, ou, o que exige ainda mais cálculo, de escrever para desagradar: "Nunca podia imaginar que faria um jornalista (tudo bem, um estudante de jornalismo da UFRJ) sair chorando de uma entrevista, me superei." (p. 118). Mais de uma vez ele alude à possibilidade (ou desejo) de ser demitido por causa das crônicas.
Creio que a qualidade desse livro decorre justamente desse exercício de tentar ampliar as fronteiras do admissível, no qual temos a principal vocação política da literatura de Mirisola. O obsceno é um dos instrumentos para fazê-lo, mas somente um deles: nestas crônicas, o escritor quer incomodar também os mandarins da cultura e da política, bem como seus servos:
- Trabalha para o Itaú né, garoto?
- Itaú Cultural.
- Pior. Se fosse caixa de banco, eu respeitava. (p. 110)
Essa vocação política transcende aqui os ocasionais golpes de ressentimento, mais visíveis em suas declarações públicas.
Não espanta, pois, que este escritor tenha apoiado os protestos em 2013 e deseje que o "imponderável saia de controle" (p. 106). Em sua poética, ele corteja esse descontrole.
No livro, temos crônicas sobre cinema, cidades (principalmente Rio de Janeiro e São Paulo), morte, amigos, redes sociais, religião. Na crônica que dá título ao conjunto, Mirisola apresenta a tese de que é a cruz que carrega Cristo nas costas, e não o contrário: se ele tivesse sido empalado, "a Igreja e os seus subprodutos mais sórdidos simplesmente não existiriam" (p. 122). Várias outras passagens têm esse caráter crítico e inusitado:

  • "Quem, senão o diabo e os corretores de imóveis, teria interesse no aumento populacional?" (p. 21)
  • "Até a hipocrisia perdeu status, virou qualquer coisa amparada pela lei Rouanet." (p. 74)
  • "[...] da mesma forma que manipulam a alma dos crédulos e as informações em geral, os banqueiros líricos projetam a taxa selic de juros e decidem quem será o próximo presidente da República, mais ou menos assim." (p. 111) 
  • "O céu de Chico Xavier é uma casa de perucas dos anos 50, é a casa dele e dos xaropes que vão rezar até encher o saco de Deus; não é meu lar, nem nosso lar; não fede nem cheira." (p. 132)
  • "Zeca Pagodinho é o homem a quem Chico Buarque se fez mulher em suas músicas." (p. 179)
  • "O prefeito do Rio, Eduardo Paes, devia ter umas aulas de sociologia e comércio exterior com as putas da Help. [...] A Help é o nosso Louvre, e pede socorro." (p. 186). Sobre o MIS no local da extinta Help: http://www.ebc.com.br/cultura/2013/12/rio-ganha-o-novo-museu-da-imagem-e-do-som-em-2014-e-reabre-a-sala-cecilia-meirelles


De forma semelhante ao que acontece em sua ficção, não vemos um autor que assuma a persona de intelectual; por esse motivo, acho estranha a comparação de Mirisola com Montaigne que Aldir Blanc enuncia e não explica na introdução. Estas crônicas são bem diversas e menos ambiciosas do que os ensaios do autor francês. Trata-se mesmo de outro gênero. Mirisola, na mesma crônica em que cita mais de um trecho de uma aula de Barthes, deixa claro que está fazendo outra coisa: "E com relação a tal da 'capa reativa' de Deleuze, não faço a mínima ideia do que seja, pois sou mais místico do que picareta e odeio masturbação intelectual." (p. 81).
O que mais me interessou, neste livro, foi a percepção social de Mirisola. Sobre São Paulo, por exemplo, escreveu em "Dia feio, seco e gelado de céu azul" que a "diferença social" é incorporada pelo ódio, "e ninguém faz questão de esconder esse sentimento"; no Rio de Janeiro, não seria assim, pois "Os cariocas ainda não descobriram que se odeiam." (p. 37). Alguns já descobriram.
Acho justas suas reflexões sobre as políticas de segurança, que atestam a falência prática do punitivismo: "O fato de aumentar o efetivo de policiais nas ruas ou de construir novos presídios de segurança máxima é tão primário e agressivo quanto à [sic] violência que se pretende combater." (p. 49). Mesmo aí, no entanto, podem aparecer simplismos, como, em "A morte não precisa das cinzas do carnaval", ele resumir a situação da insegurança urbana a "guerra'.
Uma das crônicas que me foi mais surpreendente foi "Criação de negrinhos", que parte de um grampo que revelava como Naji Nahas emprestou dinheiro a Celso Pitta. O especulador o fez com desprezo ao então prefeito de São Paulo, o primeiro negro que foi eleito para administrar aquela cidade. Na qualidade de cidadão, apesar de não gostar do Pitta, Mirisola sentiu-se humilhado com a postura de Nahas e, indignado, escreveu que a indignação é inútil: "O Brasil tropicalizou Montesquieu e o transformou num camelô." (p. 53).
Em outra, "Brechó Brasil", tratou do filme O mistério do samba, que não vi. Concedendo que o filme é comovente, atacou a sua recepção - por mauricinhos - e a legitimidade de Marisa Monte em fazê-lo; ela apenas teria aderido a uma "lenda alheia": "Se Carolina Jabor e Lula Buarque tivessem feito um filme sobre a criadagem de suas belas casas arborizadas em Santa Teresa, o resultado não teria sido menos comovente.' (p. 176). Tratar-se-ia de um exemplo da "luta de classes escondida debaixo do tapete" (p. 179). A menção a José Miguel Wisnik me parece deslocada, porém.
Com "Boilesen ontem, hoje e sempre", numa temática bastante presente neste blogue, Mirisola associa a Operação Bandeirante, ontem, à política cultural determinada pelo marketing dos bancos de hoje. Vejam o que ele diz sobre filme de Walter Salles, que também não vi: "Transformou o assassino revolucionário num clichezinho água com açúcar pra Cidadão Boilesen sacudir a pança acompanhado capeta na Taíi." (p. 89). Por fim, a exclusão é produzida não só por meio da categoria da "alta cultura", como também pelos juros que cobram...
O livro é muito engraçado - não percam a história do que estaria por trás da recusa de Lou Reed em participar da Flip. No entanto, é também pungente, especialmente em "Fábula rodoviária". Nessa crônica, o escritor, depois de satirizar os personagens que esperam o ônibus, compartilha do destino daquelas pessoas.
"Estou quase convencido de que existe vida além do óbvio" (p. 101); convence-nos disso a própria literatura de Mirisola.

sábado, 28 de dezembro de 2013

Retrospectiva 2013 (Desarquivando o Brasil LXXVII)

O ano de 2013 foi tão cheio de fatos novos (como a bela ocupação da Câmara dos Deputados por índios em abril, que lançou o tom dos protestos do ano: http://www.youtube.com/watch?v=GdFlyR8BOjU), mas também de velhas novidades, que me senti tentado a arrolar algumas destas recorrências insistentes e a chamar o conjunto, com abuso da expressão, de retrospectiva.


"O gigante despertou. O povo brasileiro sabe disso. [...] Esse grande gigante está acordado - 100 milhões de pessoas, recursos naturais ilimitados [...]"

A frase ufanista foi dita por vários desde junho de 2013, mas ninguém melhor para revelar seu teor progressista do que o ilibado Richard Nixon, ainda presidente dos EUA, saudando Médici em Washington em 1971 (fonte: Apesar de vocês, de James Green, São Paulo: Companhia das Letras, 2009).


"Os deputados erguem as nádegas
para lhes serem metidas moedas na ranhura.

Os investidores apostam na sementeira
de guardas-republicanos.

Os magistrados justificam o uso
da força com a força do uso.

Os militares apoiam a democracia em
geral e o cão-polícia em particular."
Trechos do poema "A visita do Papa" (1982), de Alberto Pimenta, que foi quem melhor escreveu sobre a invasão do Vaticano no Rio de Janeiro em julho de 2013. Mais sobre o caso: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/07/estado-laico-cartao-peregrino-e-o-papa.html


"Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre."
Segunda estrofe de "Jogos florais" de Cacaso (1944-1987), que foi, pelo que se viu das coletãneas, o melhor e mais atual poeta de protesto em 2013. Sobre a transformação do vinagre em substância ilícita: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/06/desarquivando-o-brasil-lxi-policia.html
Lembrem-se que uma das respostas do Estado brasileiro para os protestos populares foi a condenação por cinco anos (pena máxima, o que é excepcional) de Rafael Braga Vieira, um morador de rua, em razão do porte de Pinho Sol: http://br.noticias.yahoo.com/blogs/3-por-4/quem-%C3%A9-rafael-braga-vieira-134733357.html
É infalível: se o protesto for por mais democracia, a resposta imediata do Estado brasileiro sempre será menos democracia.


"As obras em curso e o complexo hidroelétrico a ser instalado tornam, desde agora, os Municípios de [........] de particular importância sob os aspectos da Segurança Nacional."
Vocês mesmos podem completar os nomes dos Municípios amazônicos em que projetos energéticos da ditadura militar estão sendo ilegalmente implantados; neste caso, trata-se da Três Lagoas e Castilho, cuja ocupação federal foi decidida nesta reunião do Conselho de Segurança Nacional de 23 de abril de 1970.
Sobre os choques elétricos dados à democracia de hoje pela doutrina energética de segurança nacional: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/09/terra-sem-lei-x-o-iii-encontro-nacional.html


"[...]inúmeros fatos que nos preocupam, como a reunião de grande número de pessoas, nos obriga a que se tomem algumas medidas de precaução e preventivas..."
Reações democráticas das autoridades em junho de 2013, sintetizadas pelo Delegado do DOPS/SP, Tácito Pinheiro Machado, em 25 de junho de 1976.



“Praticamente todas as paredes, além de algumas cadeiras e mesas, foram pichadas em 'spray' vermelho e preto […] Foram roubadas máquinas e documentos diversos […] No próprio dia do atentado, por volta das 10 horas da manhã, dois soldados da Polícia Militar, dizendo terem recebido ordens, compareceram à sucursal. Como não havia sido chamada a polícia, até aquele momento, e eles não quiseram se identificar nem identificar quem dera aquela ordem, foram dispensados. Mais ou menos uma hora depois, uma outra pessoa, dizendo-se da Polícia Federal, procurou a sucursal. Também recusou-se a identificar-se. Não foram respondidas as suas perguntas.”
Vandalismo e policiais não identificados em 2013, aqui exemplificados por invasão ao jornal Em Tempo, em Belo Horizonte, em 28 de julho de 1978 (fonte: Dossiê sobre os atentados terroristas cometidos por grupos para-militares em Belo Horizonte, de setembro de 1978, disponível no Arquivo Público do Estado de São Paulo-APESP).


“Compreendemos igualmente as dezenas de prisões cometidas contra advogados, muitas vezes como mais uma tentativa de amedrontá-los, no claro objetivo de aumentar ainda mais o grau de impunidade com que já contam os torturadores que integram o quadro do regime vigente.”
Prerrogativas dos advogados e defesa de militantes políticos em 2013, segundo carta dos presos políticos no Presídio da Justiça Militar Federal de São Paulo ao presidente do Conselho Federal da OAB, em 25 de outubro de 1975 (disponível no Arquivo Público do Estado de São Paulo-APESP).


Caracterização da pressão comunista e estimativas sobre suas possibilidades e vulnerabilidades.
– Proposta de constituição de CPI para apurar abusos de autoridades de segurança contra direitos humanos.”
Caráter subversivo dos direitos humanos e comissões parlamentares de inquérito que ficam em estado de proposta (olá, ALESP) em 2013, como bem documentado no RPI n. 2, 5 de março de 1975, do II Exército (disponível no Arquivo Público do Estado de São Paulo-APESP). 


"A Escola Superior de Guerra foi o espaço que começou, muito antes da Revolução, a dar cursos para os militares [...]"
Esta é de 2013 mesmo, porém poderia ser dos anos 1960. Em plena época dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, ainda há quem chame o golpe de 1964 de "revolução"; isso foi feito por José Paulo Cavalcanti, naturalmente (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/04/1263260-integrante-da-comissao-da-verdade-sugere-cautela-em-relatorio-final.shtml), mas também por um membro da CNV que se opôs à ditadura, como se pode ver depois dos 19 minutos deste vídeo da  Empresa Brasileira de Comunicações (EBC): http://www.ebc.com.br/cidadania/2013/04/bate-papo-com-rosa-cardoso-vai-discutir-violacoes-de-trabalhadores-e-militares

Calo-me agora, não por falta de fatos e dizeres, mas por excesso de constrangimento em narrá-los. De qualquer forma, desejo a quem lê isto feliz 2014, com menos constrangimentos como esses, e mais ações que resgatem as ruas, reais e virtuais, daqueles que as asfaltam e sitiam para o poder.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Medeia sem feitiço, Cherubini esquartejado, a OSB hoje

A política de desabrigo que a Orquestra Sinfônica Brasileira vem sofrendo colheu frutos: estava há alguns anos sem a ouvir, e não estava preparado para fazê-lo no estado em que ela se apresentou tentando interpretar Medée, de Cherubini (mais conhecida na sua versão italiana, Medea). Trata-se de uma grande ópera, admirada até mesmo por Brahms, porém nada fácil para os intérpretes, inclusive para a orquestra. Lembremos que, em abril, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, tentou desferir-lhe o golpe de misericórdia retirando a verba da OSB, mas voltou atrás diante da má repercussão da decisão.
Não é estranho que orquestras incluam em sua programação óperas quando elas possuem uma parte orquestral importante, como é o caso desta obra de Cherubini. Era uma apresentação em concerto da ópera, isto é, sem encenação. Quando isso ocorre, os cantores geralmente estão com suas partituras e as consultam; quando a ópera é encenada, isso é impossível.
Dia 19 de dezembro de 2013, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, foi apresentado o espetáculo, regido pelo argentino Carlos Vieu. Na verdade, ele deveria ter sido cancelado. A propaganda informava que a grande soprano brasileira, Eliane Coelho, iria cantar o difícil papel (sempre associado a Maria Callas), na versão original, com diálogos falados e não com recitativos, e que seria apresentada uma nova edição crítica, completíssima, inclusive com trechos cortados pelo próprio compositor de uma ária do terceiro ato para a protagonista, "Du trouble affreux" (em italiano, "Del fiero duol"). Ouçam-na em italiano, com Callas, regida por Vittorio Gui (muito superior a Leonard Bernstein nesta música) em 1953: http://www.youtube.com/watch?v=Vc2zQ5vO3nw  Em francês, com Mireille Delunsch: http://www.youtube.com/watch?v=m15eb5LBH9w
Vejam a notícia na BBC: foram pesquisadores das Universidades de Manchester e Stanford conseguiram, neste ano, via raios X, ler o que havia sido apagado dos originais da partitura:  http://www.bbc.co.uk/news/entertainment-arts-22910052
Nada disso ocorreu. Eliane Coelho não cantou, segundo o diretor artístico da OSB, em razão de uma crise alérgica, e não só esta ária foi completamente omitida, como aproximadamente um quarto da ópera desapareceu.
Com uma impressionante falta de profissionalismo da OSB, não havia substituta, e duas sopranos foram convocadas para salvar o espetáculo: Tati Helene e Veruschka Mainhard. O diretor artístico afirmou que Helene cantaria o primeiro e o terceiro atos, e Mainhard, o segundo.
Ao fazer esse anúncio, a OSB tentou enganar o público: Helene nada fez no primeiro ato exceto cantar sua ária. Todas as suas partes faladas desapareceram e o belo dueto com Jasão, que encerra essa parte, foi completamente omitido. De qualquer forma, duvido que o soprano lírico dessa cantora fosse capaz de enfrentar confortavelmente este trecho: http://www.youtube.com/watch?v=UJrHfqwgDlc
De fato, quem quisesse seguir a história pelos restos amputados que foram apresentados, nada entenderia. Toda a entrada de Medée foi omitida; de repente, ouviu-se Creonte mandando-a embora sem que ela se apresentasse e ameaçasse Jasão e  Dircée (Glauce, em itlaiano). Ela simplesmente cantou sua ária, em que acusa Jason de "Ingrat!" (em italiano, "Crudel!"), que, nessa ocasião, virou quase uma ária de loucura, pois fizeram o tenor sair do palco e a soprano ficou falando sozinha.
Quando Tati Helene, com sua bela e doce voz, totalmente inadequada para o papel, e seu fraquíssimo francês (pronunciou, por exemplo, "où", onde, como "ó") deixou o palco e a orquestra, com toda cara-de-pau, começou a atacar o prelúdio do segundo ato, omitindo todo o final do primeiro, ficou claro que a ópera iria ser apresentada aos pedaços. O público iniciou a debandada - o teatro estava mais ou menos vazio no fim da embaraçosa récita.
Quando Mainhard entrou, sua parte falada foi omitida. Nenhuma das duas sopranos que assumiram a Medeia pronunciou uma sílaba dos diálogos falados, o que foi estranho, pois não precisariam aprender a música e poderiam apenas ler o texto. Talvez a língua francesa tivesse sido o problema para elas.
Mainhard começou a solfejar sua súplica a Creonte, nem sempre acertando as notas, as entradas e as palavras. Ela continuou lendo o papel, nem sempre acertando (não vou atacar a soprano; provavelmente era uma leitura à primeira vista e, de qualquer forma, não era um papel para sua voz) até o fim do ato, quando o coro, que a OSB indicou como uma formação anônima (http://issuu.com/psleandro/docs/livreto_bimestral_2013_v), mas era composto por cantores do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, finalmente cantou bem (a entrada dos naipes femininos no primeiro ato foi desencontrada, e outros problemas de conjunto aconteceram ao longo do primeiro ato; aparentemente, faltaram mais ensaios). Por sinal, é muito bonita a escrita para coro dessa ópera.
Fez-se o primeiro intervalo. Decidi ficar para ver o que restaria do terceiro ato. Não muito.. Todas as partes faladas foram omitidas, a famosa ária foi apagada, e a história recomeça do ponto em que a protagonista, que já realizou sua feitiçaria, decide enfim matar os próprios filhos. Nesta partitura, foram cortadas o equivalente do trecho das páginas 148 a 161: http://javanese.imslp.info/files/imglnks/usimg/0/07/IMSLP96399-PMLP49825-cherubini_medee_2_act3.pdf.
Toda a hesitação de Medeia foi apagada, bem como o envio do presente enfeitiçado à noiva de seu marido. Tati Helene, com voz bastante inadequada para a parte, tentou cantá-la, mas, nessa ópera, ela só poderia fazer a Dircée, e talvez a cantasse melhor do que Maíra Lautert, que cantou aspirando as partes de coloratura de sua ária no primeiro ato.
Depois da famosa invocação às fúrias, que, como todo o papel, exige que a cantora lance mão dos extremos, do grave e do agudo, mostrando Helene desprovida do registro grave para cantá-lo, o coro, Jason e a serva, Neris, ficam sós no palco até que Medée reaparece para sua fala final. Então, apareceu Mainhard, muito mais segura em relação ao texto musical, porém não mais adequada para cantar o papel, dramático demais para sua voz.
O que restou? Savio Sperandio, com sua bela e voluminosa voz de baixo, cantou muito bem o papel de Creonte. O tenor, Charles Cruz, cantou com um ótimo francês o papel de Jasão, e lamentei não ter podido ouvir o final do primeiro ato com ele. Kismara Pessati, que já ouvi em Debussy e Gluck, cantou o papel da serva, Neris; sua grande ária no segundo ato, depois de uma introdução orquestral pouco feliz, deveria ter sido seu grande momento, mas o agudo da conclusão em "jusqu'à la mort" não foi confortável.
As intenções do maestro, Vieu, pareciam-me boas, mas não encontravam muito eco na orquestra, ou apenas o eco. Enfim, o feitiço não se fez, e parte de uma plateia, já esvaziada, ficou para aplaudir o esquartejamento de Cherubini.
Nessa mutilação musical, temos o silenciador efeito das feitiçarias das políticas culturais do Rio de Janeiro de hoje.


quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Desarquivando o Brasil LXXVI: Goulart, a lei de Anistia e D. L. Rosenfield


Um professor de filosofia da UFRGS, Denis Lerrer Rosenfield, publicou no último 16 de dezembro mais um texto na linha negacionista em relação à ditadura militar, "A narrativa e os esqueletos", no prestigioso espaço da página A2 de O Estado de S.Paulo. O insigne texto é um maravilhoso exemplo da razão por que certa direita brasileira precisa defender pontos de vista intelectualmente rasteiros: ela tem que ser contrária à pesquisa e ao saber para manter em pé seus pressupostos equivocados.
No caso, trata-se do negacionismo, que precisa ser contrário ao conhecimento histórico para que sejam mantidas suas versões edulcoradas do golpe de 1964 e a ditadura que se seguiu.
A primeira frase é lapidar: "Revolver tumbas e mexer com esqueletos são formas de manipulação de algo putrefato que exibem um tipo de prazer mórbido." É possível que Rosenfield compare, futuramente, a arqueologia com algum tipo de perversão sexual; no presente momento, irritado com a recente exumação dos restos mortais de João Goulart para verificar se ele foi morto por envenenamento, o professor de filosofia bastou-se em condenar não só exumações, mas a reescrita da história: "A História é constituída por fatos que não podem ser reescritos, embora, evidentemente, possam servir de aprendizado para as futuras gerações [...]".
No entanto, muito pelo contrário, a história é exatamente esta reescrita incessante, para a qual a exumação, inclusive de esqueletos, é necessária: trata-se exatamente do trabalho de pesquisa, sem o qual se compromete o que ele chamou de "aprendizado para as futuras gerações". Em um livro que reúne entrevistas que Benjamin Stora deu a Thierry Leclère, La guerre des mémoires: La France face à son passé colonial (Éditions de l'Aube, 2008), o historiador responde desta forma a autores que desejam esconder a violência francesa na Argélia: "[..] o trabalho do historiador consiste precisamente em 'desenterrar os cadáveres'! Senão, não se faz mais história, ou então apenas hagiográfica, incensando um passado maravilhoso. [...] Por que não teríamos, ao mesmo tempo, o direito de comemorar e de 'desenterrar'?".
Rosenfield, atacou, pois, a própria possibilidade de pesquisa histórica, o que, se pode ser conveniente para o poder, não deixa de ser obscurantista para o conhecimento. Em seguida, passou, coerentemente, a uma série de afirmações que podem ser desmentidas pela pesquisa do período, já feitas ou, neste caso, a realizar: "Nada indica, segundo depoimentos de seus próximos, que o ex-presidente tenha sido envenenado."
Nada? Próximos? Muito pelo contrário! Em relação aos próximos, o professor de filosofia descarta ao menos a maior parte da família; vejam, por exemplo, o filho João Vicente:  http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/politica/2013/05/04/interna_politica,437551/joao-goulart-pode-ter-sido-envenenado.shtml (ou o neto, Christopher, com que discuti nesta matéria da EBC: http://www.youtube.com/watch?v=wYV71JH_X_c).
Não esqueçamos, ademais, de que João Vicente preside o Instituto Presidente João Goulart, que apoiou a exumação: "O que se nega um dia se manifesta anos após como vitória." (http://www.institutojoaogoulart.org.br/noticia.php?id=9964). Conta o senador Pedro Simon que pedido de "autópsia", em 1976, foi negado pelo Exército: http://www.institutojoaogoulart.org.br/noticia.php?id=9993&back=1.
As denúncias do ex-agente uruguaio, Mário Neira Barreira, de que Goulart foi envenenado, motivaram, em 2008, a família do ex-presidente a solicitar ao Ministério Público Federal a investigação do caso. Moniz Bandeira escreveu duvidando das afirmações de Barreira e do envenenamento: http://www.cartacapital.com.br/politica/a-memoria-de-jango-esta-sendo-dilapidada-5675.html. No entanto, pelo que já se descobriu da Operação Condor (que talvez seja o "nada" a que se refere o professor de filosofia), e pela importância do caso, a investigação não pode ser evitada; é necessário buscar as provas. Talvez algumas delas possam ser encontradas nos restos mortais do presidente deposto.
Pode ser que João Goulart não tenha sido assassinado; mas Rosenfield não está preocupado em discutir o assunto, e sim em negar a possibilidade de investigação da morte de um ex-presidente da república que morreu em condições suspeitas no exílio. Trata-se, portanto, de uma posição que é contrária à recuperação da verdade e da memória, e que, por esse motivo, mostra-se adversa também à democracia no país.
O texto de Rosenfield é indigno do debate atual sobre a justiça de transição (expressão significativamente silenciada pelo professor de filosofia) e, talvez por isso, tenha sido publicado em posição de destaque. No entanto, comento mais um ponto: a grande preocupação do autor é que as movimentações ligadas à exumação levem a mudanças nesta lei: "Nunca é demais lembrar que a Lei da Anistia foi instrumento central de todo esse processo, tendo como protagonistas a oposição liberal e democrática, encarnada por figuras notáveis como Ulysses Guimarães, Paulo Brossard [...]; os dissidentes da Arena [...]; e os militares democráticos [...]".

Mas não, o MDB não foi protagonista desta Lei de Anistia. Como se sabe, tratou-se de um projeto do governo, encaminhado pelo ex-chefe do SNI e então presidente da república, João Figueiredo, em junho de 1979 ao Congresso Nacional.
Muitos, até eu mesmo, já escrevemos sobre isto, mas, como certa imprensa se incumbe de ignorar e desdizer o que a academia pesquisa (às vezes por meio de professores universitários, o que é mais constrangedor ainda), volto a repetir: o projeto governamental não atendia ao que o partido de oposição queria, tampouco aos movimentos sociais que reivindicavam a anistia.

No tocante ao MDB, reitero que um dos substitutivos apresentados ao projeto governamental, assinado por Ulysses Guimarães, Paulo Brossard (citados por Rosenfield, mas, na prática, apagados pela referência historicamente errônea) e Freitas Nobre. Eles representaram "decisão unânime das Bancadas do Movimento Democrático Brasileiro no Senado e na Câmara dos Deputados".
Ao lado, reproduzo todo este projeto, publicado no primeiro volume de Anistia (Brasília: Congresso Nacional - Comissão Mista sobre Anistia, 1982, 2 volumes).



Entre as grandes diferenças entre o substitutivo e o projeto do governo estava a exclusão dos benefícios da anistia, para aqueles políticos do MDB, "os atos de sevícia ou de tortura, de que tenham ou não resultado morte, praticados contra presos políticos", de acordo com o parágrafo segundo do artigo primeiro.
Essa previsão não poderiam autorizar o que o governo pretendia com aquele projeto, como considerar que os estupros cometidos pelos agentes da repressão fossem considerados "conexos" aos crimes políticos (embora juristas como estes defendam, ainda hoje, que o estupro seja considerado crime político, na contramão do direito internacional e da dignidade humana).

E não poderia fundamentar a exclusão dos chamados "terroristas", prevista no parágrafo segundo do artigo primeiro da lei aprovada, que Figueiredo assim justificou na mensagem ao Congresso Nacional: "Não é abrangido quem foi condenado pela Justiça por crime que não é estritamente político: assim o terrorista, pois ele não se volta contra o Governo, o regime, ou mesmo contra o Estado. Sua ação é contra a humanidade, repelida pela comunidade universal, que sanciona, como indispensáveis, leis repressivas de que se valem países da mais alta formação democrática."
A cínica referência à "comunidade universal" só poderia ser feita, realmente, no contexto de "leis repressivas". A invocação do direito internacional dos direitos humanos era oficialmente rechaçada como interferência na soberania nacional...
Destaco ainda a previsão do artigo 15 de que caberia à Polícia Federal investigar os desaparecimentos forçados; ela teria condições institucionais e políticas para investigar os crimes das Forças Armadas? Era provável que não, mas a instituição dessa obrigação do Estado, ausente na lei enfim aprovada, teria sido positiva. Por fim, coube aos familiares o ônus da prova para obter as indenizações a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, mesmo sem investigações de tais crimes do Estado brasileiro.
O substitutivo foi derrotado, bem como diversas emendas, inclusive de membros da ARENA, que melhorariam a proposta oficial; Pedro Simon, em 16 de agosto de 1979, afirmou que "o derrotado não foi o MDB, o vitorioso não foi o partido oficial; nem moralmente vitorioso foi o foi o MDB nem moralmente o derrotado foi o partido oficial, foi o Congresso Nacional." Qual teria sido a "humilhação" do Poder Legislativo?  Esta: "toda a Nação sabe e a Imprensa noticiou que o Relator, que os líderes da da ARENA, no Gabinete do Ministro da Justiça, estudaram emenda por emenda e decidiram lá o que seria votado aqui.  E decidiram lá, Sr. Presidente, lá no Poder Executivo, o que podia ser votado aqui." O Ministro era Petrônio Portela.
Rosenfield insiste que a "esquerda radical" foi derrotada nesse processo; ele está certo nisso. Mas a derrota não foi só dela e de seus projetos, mas também daquela outra esquerda.
Um amigo meu, o jurista Murilo Duarte Costa Corrêa, havia escrito sobre investida anterior de Rosenfield contra a CNV, "Dénies L'horreur, Rosenfield" (http://murilocorrea.blogspot.com.br/2012_03_18_archive.html), de que cito esta passagem:
Ao mesmo tempo, a insistência em imprimir à Comissão da Verdade uma lógica privatista por meio da qual Rosenfield quer nos fazer confundir a necessidade internacionalmente reconhecida de os governos pós-autoritários assumirem sua responsabilidade diante de graves violações de Direitos Humanos com a impolida e odiosa qualidade apolítica de um mero “acerto de contas”, uma “cobrança feita no portão de casa”, despida de qualquer formalidade ou rigidez institucional, assume estrategicamente a tarefa de obliterar o campo de discussão pública que uma Comissão da Verdade tem por ofício reabrir aos cidadãos.
Rosenfield não quer dar a ver que as perguntas sobre o passado só nos vingam da atual impossibilidade de interpretar o passado – porque ter o poder de interpretar o passado significa arriscar apoderarmo-nos do futuro; por isso, elogia a restrição às fontes que podem sugerir as reinterpretações, restituições e reapropriações dos discursos produzidos no período ditatorial. Isso que Rosenfield chama vingança, acerto de contas, revanche, assinala que o comum pode ser, uma vez mais, posto em jogo.

Creio que Murilo acerta bem no alvo quando afirma que Rosenfield queria, no fundo, interditar o debate público, negando, até mesmo, que a questão fosse pública.
Entendo da mesma forma a referência, no parágrafo final do texto publicado no último dia 16, à criação de "mortos vivos", que alegadamente estaria sendo feita com as recentes investigações das mortes de João Goulart e de Juscelino Kubitschek. Na verdade, trata-se de matá-los novamente, impedindo que reapareçam no debate público e suscitem reivindicações de justiça.
Desenterro, agora, notícia do Maria Quitéria: Boletim do Movimento Feminino pela Anistia, ano 1, n. 2, de junho de 1977, que li no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP).
A foto reproduzida mostra o caixão de João Goulart coberto pela faixa da anistia, que havia sido levada pela militante do movimento Milla Calduro. Escreve-se que, nessa ocasião, "Muitos gritos eram em defesa também dos direitos humanos, da anistia."
É honroso para o ex-presidente que sobre este corpo ainda se possam fazer tais reivindicações, mas com uma diferença: hoje, a faixa, diante do fracasso em 1979 dos projetos da oposição, demandaria a revisão da anistia, da lei n. 6683; tal seria a exigência compatível, atualmente, com os direitos humanos.

P.S.: Elio Gaspari não acredita no envenenamento e compara o agente uruguaio com Virgínia Lane: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/144287-a-sindrome-de-virginia-lane.shtml
O que ele diz sobre a morte de Rubens Paiva ("revelação espetacular"), no entanto, não faz muito sentido. Vejam o que Marcelo Rubens Paiva afirma: "Sabemos há mais de quarenta anos que ele não saiu vivo do DOI-Codi do Rio." http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,e-quem-era-o-comandante-questiona-marcelo-rubens-paiva,994415,0.htm

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

VIII Blogagem Coletiva: 45 anos do AI-5 (Desarquivando o Brasil LXXV)



Sugiro que vejam aqui a chamada para a VIII Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR, do dia 10 a 13 de dezembro de 2013, da qual transcrevo o início:
http://desarquivandobr.wordpress.com/2013/12/05/convocacao-para-a-viii-blogagem-coletiva-desarquivandobr/
Na ocasião dos 45 anos do Ato Institucional nº 5, e poucos meses antes dos 50 anos do golpe de 1964, novamente blogueiros e ativistas estão unindo forças para realizar a VIII blogagem coletiva #DesarquivandoBR. Trata-se de uma demanda urgente do país pela justiça de transição, pela memória e pela verdade. Os tímidos resultados, até agora, da Comissão Nacional da Verdade, quase um ano e sete meses após sua instituição, reforçam nossa convicção de que o engajamento da sociedade organizada é essencial.
O AI-5, chamado na época de “antilei”, formalizou o endurecimento da ditadura e forneceu o novo ambiente institucional para que ocorressem, no ano seguinte, a revisão autoritária da Constituição de 1967 e a edição do decreto-lei n. 898, que agravou a punição dos crimes contra a segurança nacional, reintroduzindo oficialmente a pena de morte no direito brasileiro.
Aproveito o momento e faço uma pequena nota sobre essa norma. Depois do golpe de 1964, os militares não sabiam bem o que fazer em termos jurídicos. A tomada do poder e a derrubada de João Goulart feriram, é claro, a Constituição então vigente, a de 1946, que havia sido democraticamente aprovada por uma assembleia constituinte. Francisco Campos, o jurista responsável pela Constituição autoritária do Estado Novo, é que lhes sugeriu o mecanismo do Ato Institucional. Conto um pouco desta história aqui: http://www.redalyc.org/pdf/934/93400621.pdf.
Tratava-se de um tipo de norma jurídica que fugia às limitações constitucionais e que servia para suspender e abolir os direitos fundamentais, diretamente nascida do Poder Executivo, sem consulta alguma ao Congresso. Sua fonte de legitimidade eram tão-somente os fuzis deitados sobre a mesa da presidência da república.
Além de castrar o Legislativo, o instrumento do Ato Institucional deixou o Judiciário de mãos atadas. O primeiro ato institucional, não numerado (não se previa que haveria uma série), ameaçou os juízes (e afastou alguns deles), suspendendo as garantias de vitaliciedade e estabilidade por seis meses. Além disso, limitou o controle judicial dos atos praticados com base nessa norma "ao exame de formalidades extrínsecas, vedada a apreciação dos fatos que o motivaram, bem como de sua conveniência ou oportunidade".
O exame de conveniência e oportunidade, no tocante a atos administrativos discricionários, é normalmente vedado ao Judiciário. Esse primeiro Ato Institucional, de 9 de abril de 1964, cobriu desse manto administrativo todas as investigações sumárias (não sou eu que assim classifico, é o próprio Ato Institucional que as chama de sumárias - a arbitrariedade era, de fato, a regra) que foram feitas para expurgar as Forças Armadas e os poderes públicos da presença da esquerda.
Pior do que isso, ficava excluída de apreciação judicial a cassação de mandatos e a suspensão de direitos políticos por 10 anos praticadas, sem necessidade de investigação alguma, pelo Executivo federal.
O AI-5, cujo texto pode ser lido no sítio da presidência da república, radicalizou essas previsões autoritárias. Ele excluía da apreciação judicial todos os atos praticados com base nele e nos seus atos complementares (outra norma do direito de exceção da ditadura militar, presente desde o primeiro ato institucional, com o fim de o "regulamentar" e "operacionalizar").
Essa cobertura genérica de imunidade contra o Judiciário, porém, não era nova: estava presente desde o AI-2, que a criou para si e para o Ato de 1964. Mais importante foi o fim do habeas-corpus para crimes políticos e contra a segurança nacional, o que foi um duro golpe contra o que restava das liberdades.
A suspensão de direitos políticos implicava também restrições aos direitos civis, também sem que o Judiciário pudesse controlá-las::
Art 5º - A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa, simultaneamente, em:
I - cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;
II - suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;
III - proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política;
IV - aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança:
a) liberdade vigiada;
b) proibição de freqüentar determinados lugares;
c) domicílio determinado,
§ 1º - o ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados.
§ 2º - As medidas de segurança de que trata o item IV deste artigo serão aplicadas pelo Ministro de Estado da Justiça, defesa a apreciação de seu ato pelo Poder Judiciário.
Art 6º - Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, mamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.
§ 1º - O Presidente da República poderá mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas neste artigo, assim como empregado de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço.
§ 2º - O disposto neste artigo e seu § 1º aplica-se, também, nos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.
Art 7º - O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o respectivo prazo.
A previsão do estado de sítio jamais foi aplicada: o governo não precisava dela, tendo o AI-5 nas mãos, que permitia, além de colocar o Congresso em recesso, intervir nos Estados e Municípios.
O AI-5 tornou-se fundamento jurídico para diversas normas de exceção, para a censura e suspensão de direitos: outros atos institucionais (do sexto ao décimo-quarto), atos complementares e também os decretos-lei. Um ato complementar de suma importância foi o 38, também de 13 de dezembro, que pôs em recesso o Congresso Nacional. Lembremos que o pretexto para a edição do AI-5 foi o discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves pedindo um boicote ao militarismo, e a recusa do Congresso em permitir que ele fosse processado por isso - mero pretexto, pois o Ato foi planejado ao longo do ano, em um contexto geopolítico de recrudescimento da Guerra Fria (somente a vinculação a esse contexto merece, por sinal, livros e teses).
Durante o recesso do Legislativo, foram editadas normas como o Decreto-lei n. 459, de 10 de fevereiro de 1969, que instituiu a Comissão Geral de Inquérito Policial Militar, com o fim de investigar os "subversivos" e indicar ao Presidente da República mais pessoas que deveriam se sujeitar às penalidades do AI-5:
Art. 1º. Fica instituída a Comissão Geral de Inquérito Policial Militar com a incumbência de promover investigação sôbre atos subversivos ou contra-revolucionários e apurar atos e as devidas responsabilidades de todos aquêles que, no País, tenham desenvolvido ou ainda estejam desenvolvendo atividades capituláveis nas Leis que definem os crimes militares contra a Segurança Nacional e a Ordem Política e Social.
Art. 2º. A Comissão Geral de Inquérito Policial Militar, vinculada à Presidência da República, será constituída de um General-de-Divisão, que a presidirá, de um Capitão-de-Mar-e-Guerra, de um Coronel do Exército e de um Coronel-Aviador nomeados pelo Presidente da República.
Parágrafo único. Por indicação do Presidente da Comissão Geral, será designado, por ato do Presidente da República, um Procurador da Justiça Militar para encargos de assessoramento.
[...]
Art. 6º. O Presidente da Comissão Geral de Inquérito encaminhará os relatórios de inquéritos concluídos ao Presidente da República, que poderá desde logo aplicar aos indiciados as punições previstas no Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, sem prejuízo das sanções penais a que estiverem sujeitos.
Mais importante ainda foi o Decreto-lei n. 898, de 29 de setembro de 1969, que se tornou a nova "lei" de segurança nacional. As penas foram todas agravadas em relação à legislação anterior e, com fundamento no AI-14, de 5 de setembro de 1969, foram introduzidas as penas de morte e de prisão perpétua.
O Congresso somente foi reaberto com o Ato Complementar n. 32, de 15 de outubro de 1969, o que significa que o Poder Executivo legislou sozinho, arbitrariamente, durante dez meses. Sua reabertura deu-se para dizer sim à escolha militar do General Médici como o ditador que ocuparia a presidência, tendo em vista a doença de Costa e Silva e o golpe dado pelo triunvirato militar contra o vice-presidente Pedro Aleixo (que, além do "defeito" de ser civil, havia sido contrário ao AI-5), formalizado com o Ato Institucional n. 16, de 14 de outubro de 1969, que declarou vagos os cargos de presidente e vice-presidente da república e consagrou no poder, até as eleições indiretas que apontariam Médici, os três ministros militares.
Quando foi revogado o AI-5, que não tinha prazo para cessar? Só com a Emenda Constitucional n. 11, de 13 de outubro de 1978, que previa, no seu artigo terceiro, que "São revogados os Atos institucionais e complementares, no que contrariarem a Constituição Federal, ressalvados os efeitos dos atos praticados com base neles, os quais estão excluídos de apreciação judicial."
É interessante a ideia de que ele era uma "antilei". Modesto da Silveira, um dos principais advogados de presos políticos durante a ditadura militar, contou que, em 1969, o argentino Sebastián Soler, como representante da Comissão Internacional de Juristas, veio ao Brasil assistir ao julgamento da presidente do Correio da Manhã (um jornal que foi destruído pela ditadura militar), Niomar Moniz Sodré Bittencourt, com outros jornalistas, Oswaldo Peralva e Nelson de Faria Batista. Era 20 de novembro de 1969. A auditoria militar montou um teatro de "devido processo legal" para Soler. Os advogados contaram-lhe que os réus eram agredidos dentro das auditorias, e os advogados, ameaçados. Heleno Fragoso, para confirmar o autoritarismo do regime, deu-lhe o AI-5, que ainda não havia completado um ano, para ler. Modesto da Silveira conta que ele exclamou que aquilo era um 'lixo legislatório" e uma "antilei".
A história pode ser lida no livro publicado em 2010 pela PUC Rio e pela Vozes, organizado por Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins, Os advogados e a Ditadura de 1964.
Sobre a questão da "antilei": formalmente, não se tratava mesmo de lei, pois não vinha nem passava pelo Poder Legislativo; "ato", com efeito, e "institucional", é uma designação mais conveniente - pela sua generalidade, poderia designar qualquer ato normativo, até portarias, ou mesmo não normativo, vindo do poder público. A generalidade do nome permite desviar a atenção da ilegitimidade da origem.
Mas não é essa a questão que me interessa. Nos próprios consideranda do AI-5, temos esta passagem bastante lúcida, que já comentei algumas vezes: "atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la;". As regras jurídicas do regime, mesmo as de exceção, permitindo, mesmo em nível reduzido, o contraditório, a defesa, e reconhecendo a personalidade jurídica dos "subversivos", podiam ser usadas contra ele mesmo.
Daí que as formas do direito, que têm realmente esse caráter reflexivo (uma vez que uma de suas principais funções é a de regular conflitos sociais), não eram as mais adequadas para serem instrumentalizadas em nome da doutrina de segurança nacional. Esta doutrina, nesse sentido antijurídica, precisava da criação de zonas de não-direito, ou de infradireito (no sentido de Foucault), como foram, por exemplo, os DOI-CODI, para que aqueles direitos e sujeitos fossem aniquilados ao sabor do arbítrio das autoridades.
Como o AI-5 foi usado para esse fim? Ele não legalizou a tortura e os desaparecimentos forçados - isso não foi realizado pela ditadura militar. Mais sutil em sua barbárie, ela preferiu eliminar ou cercear as vias de ação contra as ilegalidades do regime. Não por acaso, após esse Ato, tantos advogados (como Sobral Pinto) foram presos e juízes, afastados (desde o Supremo Tribunal Federal, como já escrevi, apesar das lembranças falsas de juristas conservadores, que imaginam um regime militar em que a Justiça era independente).
O AI-5 não tornava legais condutas como a tortura, mas dificultava ou impedia que as ilegalidades fossem combatidas. Nesse sentido, tivemos uma forma de produção legal da ilegalidade, em mais um exemplo de cultura cínica diante das leis: temos os direitos, só não podemos efetivá-los ou protegê-los...
Era notadamente o caso do Decreto-lei n. 898, editado nesse período de recesso forçado do Congresso Nacional, que ampliou o prazo de prisão, de forma a prejudicar  o controle judicial. Cito artigo de Oto Luis Sponholz e Antonio Acir Breda, "Aspectos processuais da reforma da lei de segurança nacional" (publicado pela Revista de Informação Legislativa em 1978 e disponível nesta ligação: http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/181168/000366197.pdf?sequence=3):


Ademais, essa comunicação nem sempre era feita, ou era realizada fora do prazo. Nesse período em que o preso ficava incomunicável (mesmo em relação a assistência de advogado, embora o Estatuto da Advocacia então vigente previsse que o advogado teria acesso ao cliente em regime de incomunicabilidade) era, em regra, submetido a tortura. Não era permitida, mas seu controle era dificultado não só pela legislação, mas pelas instituições: era a Justiça Militar, esse oximoro, que teria a competência de processar esses crimes contra os presos políticos, e ela fazia-se de surda diante das denúncias, no papel de garante da impunidade, como bem documentou o projeto Brasil Nunca Mais; indico nesta ligação o volume sobre as leis repressivas: http://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/nunca/06.pdf.
Não por acaso, torturava-se também nas auditorias militares, e alguns torturadores eram também auditores. Em propiciar esses espaços de infradireitos repressivos, o AI-5 foi uma das faces públicas, formalizadas, da hipocrisia jurídica do regime, e acabou por apontar, a contrapelo, vias de resistência para a oposição: a legalista e a de luta pelos direitos humanos.

Além dos blogues indicados em nota anterior, incorporaram-se à Blogagem Coletiva:

P.S. E mais estes:



quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O Conselho Participativo de São Paulo: os eleitos e a democracia participativa

Escrevi, em outra nota deste blogue (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/12/eleicao-para-o-conselho-participativo.html) sobre a eleição, no último dia 8 de dezembro, para o Conselho Participativo do Município de São Paulo. Os resultados já saíram. Os candidatos que mencionei, Luiz Gonzaga da Silva (com 424 votos, 0,07% do total) e Ricardo Fraga Oliveira (o mais votado em Vila Mariana: 257 votos, 0,04%) foram eleitos. A lista completa pode ser vista nesta ligação: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/comunicacao/noticias/relatoriofinaleleitos.pdf
Os candidatos mais votados foram Ednalva Novais da Silva (Nalva) com 3514 votos (0,59% do total), de Perdizes (onde todos os dez candidatos foram eleitos, e o último com 10 votos), Elzo Gama da Silva (Elzo da Moradia), de Brasilândia, 3475 (0,58%); de Pirituba, Joais Gomes da Silva (Joais da Moradia)  3440 (0,57%) e Renata de Lima, 3236 (0,54%). Isso é muito interessante, pois todos eles são ligados a Associação dos Trabalhadores Sem Teto da Zona Oeste e Noroeste, que fez, neste ano, manifestações contra o governo estadual, do PSDB, e contra o municipal, do PT. Vejam esta reportagem de Cristiane Agostine para o Valor: "Conselho Municipal - os líderes sem-teto são os mais votados em SP"; os candidatos afirmam que esses movimentos não têm nenhum vereador em São Paulo; de fato, a democracia representativa é mais generosa com as construtoras... 
A comparação entre a eleição na Câmara e a do Conselho confirma, portanto, a importância dos mecanismos de democracia participativa.


Como foi, porém, a participação eleitoral? Apesar de mais de um quarto de votos brancos e nulos, houve quase seiscentos mil votos de 120 mil eleitores (cada um podia votar em cinco candidatos), o que mostra pequeno engajamento da população, mesmo considerando que se trata da primeira eleição do Conselho Participativo. Contudo, as discrepâncias são grandes se observamos os resultados em cada região.

A participação foi bastante heterogênea. Em Barra Funda, os únicos três candidatos foram eleitos com meros 18, 11 e 9 votos. Em Socorro, os cinco candidatos foram eleitos, mas o que teve menor votação foi escolhido por 131 eleitores. Em Jaguara, também com apenas três candidatos, todos foram eleitos com pouco mais de 100 votos. Os 8 candidatos de Vila Andrade foram eleitos, e o último entrou com 74 votos. Guaianases  teve pouca disputa: os 16 candidatos foram eleitos: o primeiro, com 1352 votos (0,23%), o que foi expressivo; o último, porém, com 10 votos.
Em certas áreas da periferia, como Brasilândia, a participação e a disputa foram muito maiores dos 75 candidatos, 26 lograram vaga no Conselho. Em Cidade Tiradentes, 21 eleitos em 77 candidatos. Jardim Ângela teve 27 eleitos em 88. Comparando com uma área de elite, o Morumbi, com 5 eleitos de 13 candidatos, a disputa não foi pequena.

Em revanche, no Jardim Paulista, todos os quatro foram eleitos, o último com 46 votos.

Situação semelhante ocorreu em Cambuci, com a eleição de seus dois únicos candidatos.
No Brás, nem todos foram eleitos, mas nove votos foram suficientes para conseguir vaga no Conselho.

Algo mais radical aconteceu na República: além de todos terem sido eleitos, uma candidata conseguiu ir para o Conselho com apenas um voto, possivelmente dela mesma - o que mostra o pouco entusiasmo pela democracia participativa nessa região central da cidade. Em Santa Cecília, também no Centro, outra região em que todos se elegeram, bastaram 4 votos para o último.
É, com efeito, uma situação totalmente diversa da disputa que ocorreu em Sacomã, onde o último conselheiro foi escolhido por 485 votos, e com um desempate por idade.
A eleição de representantes de movimentos populares e a participação das periferias são dois sinais auspiciosos para a cidade de São Paulo, apesar do pequeno número de eleitores. Tudo dependerá, porém, da prática do Conselho: será interessante verificar o quanto ela poderá deixar desatualizadas as análises do fraco associativismo popular e da baixa participação política na sociedade brasileira, seguindo a tendência das manifestações de junho de 2013.

As ditaduras na Argentina, no Brasil e no Chile segundo Jerry Dávila

Esta nota foi escrita para integrar a VIII Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR, em curso até 13 de dezembro, dia dos 45 anos do AI-5.

Jerry Dávila escreveu um livro valioso sobre o racismo no Brasil, publicado aqui pela Unesp: Diploma de brancura: política social e racial no Brasil 1917-1945. Por isso, me interessei quando vi que ele lançou, neste ano, Dictatorship in South America (Willey-Blackwell).  No entanto, é um livro que acrescenta pouco a quem estuda o assunto. Trata-se de uma obra de divulgação que provavelmente será bastante útil ao público dos EUA.
Apesar do título, o livro trata apenas de três países, cada um com dois capítulos: Brasil, Argentina, Chile. Enquanto o primeiro dedicado a cada país concentra-se nos antecedentes do golpe, o segundo chega à democratização. O Brasil abre a primeira série, pois sua ditadura militar precede as últimas ditaduras dos outros países, e a Argentina abre a segunda, também pelo fato de o colapso do regime autoritário lá ter acontecido antes.
O livro tem méritos como a avaliação da política externa do EUA, contrária à democracia no continente, e dos efeitos nefastos contra os direitos humanos produzidos pela Escola de Chicago. É curiosa a verificação dos traços comuns entre essa Escola e Che Guevara, inclusive no tocante aos preconceitos de gênero.
Dávila dá o destaque devido ao Ato Institucional n. 5, tema da VIII Blogagem Coletiva:
O AI-5 fechou o Congresso, deu ao regime autoridade sobre os governos estaduais e municipais e eliminou o habeas-corpus, permitindo à polícia e às Forças Armadas prender civis sem acusação. Depois do AI-5, o regime decretou uma Lei de Segurança Nacional mais dura. A nova lei ampliou a lista de crimes sujeitos a tribunais militares, aumentou as sentenças e introduziu a pena de morte para muitos delitos. Sujeitou a mídia à censura e proibiu reuniões políticas, greves e manifestações. Atos não violentos como criticar publicamente o regime ou falar favoravelmente de um grupo banido de oposição poderiam levar à prisão. (p. 39)

Ele está bem certo em dizer "decretou uma Lei" porque, como a anterior, a legislação de segurança nacional foi aprovada por decreto-lei.
Há alguns problemas, no entanto. Em relação ao Brasil, os números são dolorosamente desatualizados: fala-se apenas do reconhecimento oficial de 356 mortos pelo regime. Somente considerando os índios Waimiri-Kaiowá, o número é provavelmente cinco vezes maior. Ademais, podem-se apontar outras impropriedades:
  • O autor desconhece que as mulheres, no Brasil, já tinham reconhecimento constitucional do direito de voto em 1934, não apenas em 1946, e até já o tinham exercido antes da Constituição de 1934.
  • O primeiro Ato Institucional não foi numerado - não havia um plano de que ele fosse o primeiro de uma série, mais um fator que mostra que o "sentido" da ditadura foi sendo feito ao longo do processo e foi objeto de disputas, também entre os militares.
  • A ALN não deveria ser caracterizada como o "braço armado" do PCB; pena que ele não leu a biografia de Marighella escrita por Mário Magalhães (acho que não o fez, pelo que vemos da lista de fontes em português).
  • Manoel Fiel Filho, neste livro, não tem nome nem afiliação política (é referido simplesmente como "metalworker detained"), bem ao contrário de Herzog.
  • Dávila vê um sinal do sucesso de Geisel em retomar sua autoridade contra a linha dura no fracasso do atentado ao Riocentro em 1981, que, porém, ocorreu na presidência de Figueiredo.
  • A Constituição de 1988 não definiu o "código do trabalho"; a CLT é de 1943.

Mais adiante, no capítulo 5, "Argentina: The Terrorist State", lemos que a Junta adotava uma teoria segundo a qual
[...] o Comunismo Internacional, liderado pela União Soviética, estava usando novos e radicais meios para derrubar as sociedades livres e impor o marxismo. Segundo essa teoria, revolucionários armados não eram a única - ou mesmo a principal - ameaça. A ameaça real era cultural ou, mais precisamente, contracultural. A ameaça incluía músicos de rock e seus fãs, jovens com cabelo comprido (a cultura jovem em geral), bem como profissionais como jornalistas e psiquiatras, que ostensivamente ameaçavam os pilares da sociedade ocidental. Qualquer um que lutasse pela justiça social - os direitos das mulheres, minorias, trabalhadores sem terra etc. - era um subversivo. (p. 116)

Essa teoria possui um nome, embora não apresentado pelo autor, e de forma alguma se restringe à Argentina (conquanto a hostilidade à psicanálise seja algo bem próprio da ditadura desse país): a doutrina de segurança nacional. A falta da análise dessa teoria é uma fraqueza do livro. Outro problema é o esquecimento da OEA, estranho ao tratar de países da América Latina.
No final, Dávila resolve tratar da justiça de transição no século XXI e erra ao homogeneizar os países: "Cada país se livrou gradualmente dos vestígios do regime militar. [...] Ao mesmo tempo, os países examinaram mais atentamente as Forças Armadas pelas ações passadas, como Nestor Kirchner fez ao revogar as leis Obediencia Debida e Punto Final. O congresso brasileiro estabeleceu uma comissão da verdade que começou seus trabalhos em 2012." (p. 184).
É embaraçoso até citar na mesma linha a Argentina e o Brasil nesse assunto. Apenas duas das diferenças:  a Argentina criou sua comissão décadas antes, já no governo Alfonsín. E não, o Brasil não revogou sua lei da anistia...
Entre os erros de ortografia do livro, mais frequentes nas palavras em espanhol e em português, há um curioso: "Diretas Já" virou "Direitas Já". Uma vez que o movimento fracassou e, da eleição indireta que se seguiu, Sarney acabou sendo o resultado, talvez este erro tivesse sido mais apropriado: "Direitas ainda"...


Aproveito e listo os outros blogues que já responderam à chamada da VIII Blogagem Coletiva (http://desarquivandobr.wordpress.com/2013/12/05/convocacao-para-a-viii-blogagem-coletiva-desarquivandobr/), reproduzida no Pimenta com limão, de Niara de Oliveira (http://pimentacomlimao.wordpress.com/2013/12/09/8a-blogagem-coletiva-desarquivandobr/):


Lembro também de matéria de Global Voices, escrita por Paula Góes, sobre a Blogagem: http://pt.globalvoicesonline.org/2013/12/10/blogagem-coletiva-desarquivandobr-marca-aniversario-do-ai-5/






segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Desarquivando o Brasil LXXIV: Eventos da semana dos 45 anos do AI-5

Temos uma semana com vários eventos relativos à justiça de transição.
Haverá a VIII Blogagem Coletiva #DesarquivandoBr, desta vez com o tema dos 45 anos do Ato Institucional n. 5. Ela se estenderá dos dias 10 a 13 de dezembro; neste último dia, aniversário do AI-5, haverá um tuitaço à noite. Para participar e/ou acompanhar, sugiro a leitura da chamada, bem como os textos das blogagens anteriores, neste sítio: http://desarquivandobr.wordpress.com/2013/12/05/convocacao-para-a-viii-blogagem-coletiva-desarquivandobr/

Mencionarei somente os eventos presenciais de São Paulo, a que tenho esperança de comparecer. De hoje (não pude participar) até o dia 11, ocorrerá o "Ato público pela punição dos torturadores e assassinos". Nesses dias, serão ouvidas as testemunhas de acusação no caso do sequestro continuado de Edgar de Aquino Duarte. Os réus são o coronel reformado Brilhante Ustra e os delegados Carlos Alberto Augusto e Alcides Singillo. Como se trata de crime continuado, eis que os restos mortais - ou a própria vítima, viva - não foram encontrados até hoje, o juiz da 9a. Vara Criminal, Hélio Egydio Nogueira, considerou, acertadamente, que não se aplica a Lei de Anistia: http://www.sul21.com.br/jornal/todas-as-noticias/politica/justica-federal-nega-pedido-de-absolvicao-sumaria-de-ustra-e-da-continuidade-a-acao-penal/
Edgar de Aquino Duarte foi um dos delatados por Cabo Anselmo; sobre o seu caso, podem-se ler  http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=277&m=3 e http://cemdp.sdh.gov.br/modules/desaparecidos/acervo/ficha/cid/211.


Também com o tema dos 45 anos, será concedido o 17o. Prêmio Santo Dias, outra vítima da repressão política, na ALESP, em evento da Comissão de Direitos da Pessoa Humana e da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva". O evento articulará a repressão de ontem, com homenagem à imprensa que resistiu à ditadura, com a de hoje, com o "manifesto dos cineastas e artistas pela desmilitarização e reforma da segurança".
Ainda no tocante a essa Comissão da Verdade, ocorreu hoje, e outra audiência acontecerá amanhã, às 9 horas, sobre os casos de Ieda Santos Delgado e Issami Nakamura Okano. No dia 13, às 14 horas, a audiência será dedicada ao caso de Luiz Eduardo Merlino; no portal da Comissão, pode-se acompanhar a agenda: http://www.comissaodaverdade.org.br/index.php


No sábado, dia 14, o Memorial da Resistência abrirá nova exposição: "Os advogados da resistência: o direito em tempos de exceção". Ainda não sei quais dos poucos advogados de presos políticos estarão presentes, embora imagine que Rosa Cardoso, que é hoje membro da Comissão Nacional da Verdade, e teve como cliente, entre outros, Dilma Rousseff, deva estar lá. O sítio do Memorial é este: http://www.memorialdaresistenciasp.org.br/





sábado, 7 de dezembro de 2013

Eleição para o Conselho Participativo Municipal em São Paulo


Amanhã, dia 8 de dezembro, no Município de São Paulo, haverá eleição para o Conselho Participativo Municipal. Os eleitores deste Município, por meio desta ligação, saberão onde votar e terão acesso à lista de candidatos:


Lembro que o voto é facultativo, e o mandato do Conselho tem duração de dois anos. O cargo de conselheiro não é remunerado.  Cada eleitor pode votar em até cinco candidatos de qualquer região da cidade. Não sou eleitor em São Paulo, não participarei da eleição. 
Os Conselhos são regidos pela lei nº 15.764, de 27 de maio de 2013: http://www3.prefeitura.sp.gov.br/cadlem/secretarias/negocios_juridicos/cadlem/integra.asp?alt=28052013L%20157640000
Segundo o artigo 28, eles integram a Secretaria Municipal de Relações Governamentais. Terão as seguintes competências:

Art. 34. O Conselho Participativo Municipal será organizado em cada subprefeitura e será formado por representantes eleitos, residentes no distrito, em número nunca inferior a 5 em cada distrito. 
Art. 35. Os Conselhos Participativos Municipais tem as seguintes atribuições:
I – colaborar com a Coordenação de Articulação Política e Social no nível com sua função de articulação com os diferentes segmentos da sociedade civil organizada;
II – desenvolver ação integrada e complementar às áreas temáticas de conselhos, fóruns e outras formas de organização e representação da sociedade civil e de controle social do poder público, sem interferência ou sobreposição às funções destes mecanismos; 
III – zelar para que os direitos da população e os interesses públicos sejam atendidos nos serviços, programas e projetos públicos da região e comunicar oficialmente aos órgãos competentes em caso de deficiências neste atendimento; 
IV – monitorar no âmbito de seu território a execução orçamentária, a evolução dos Indicadores de Desempenho dos Serviços Públicos, a execução do Plano de Metas e outras ferramentas de controle social com base territorial; 
V – colaborar no planejamento, mobilização, execução, sistematização e acompanhamento de Audiências Públicas e outras iniciativas de participação popular do Executivo; 
VI – manter comunicação com os conselhos gestores de equipamentos públicos municipais do território do distrito e subprefeitura visando a articular ações e contribuir com as coordenações.
§ 1º O Poder Executivo regulamentará o funcionamento destes Conselhos. 
§ 2º Os Conselhos de que trata o “caput” subsistirão até que os Conselhos de Representantes de que tratam os arts. 54 e 55 da Lei Orgânica possam validamente existir e estarem em funcionamento.
Como se vê no parágrafo segundo do artigo 35, eles existirão até que os Conselhos de Representantes venham à luz, o que certamente não será logo, pois eles, segundo a Lei Orgânica deterão importantes competência no campo orçamentário, tema que é muito sensível para os políticos:  http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/educacao/cme/LOM.pdf
Art. 54 - A cada área administrativa do Município, a ser definida em lei, corresponderá um Conselho de Representantes, cujos membros serão eleitos na forma estabelecida na referida legislação.  
Art. 55 - Aos Conselhos de Representantes compete, além do estabelecido em lei, as seguintes atribuições: 
I - participar, em nível local, do processo de Planejamento Municipal e em especial da elaboração das propostas de diretrizes orçamentárias e do orçamento municipal bem como do Plano Diretor e das respectivas revisões;  
II - participar, em nível local, da fiscalização da execução do orçamento e dos demais atos da administração municipal;  
III - encaminhar representações ao Executivo e à Câmara Municipal, a respeito de questões relacionadas com o interesse da população local. 
Para a eleição de amanhã, chegaram-me os nomes de dois candidatos que tiveram problemas judiciais em razão de seu engajamento pela cidade, e que me parecem dignos de voto.
Pelo distrito da Vila Mariana, Ricardo (O outro lado do muro), de nº 52.053. Trata-se de Ricardo Fraga Oliveira, que foi censurado judicialmente por protestar contra a verticalização do bairro: http://artigo19.org/centro/casos/detail/11 
Ele foi proibido de se manifestar contra a construção de um megaempreendimento em Vila Mariana da Mofarrej Empreendimentos Imobiliários, o que mostra como, em nosso sistema político, as liberdades civis têm muita dificuldade em serem efetivas.
Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, pela Sé, candidata-se com o número 82050, e é uma das principais lideranças dos movimentos de moradia. Outro exemplo, e mais grave, da dificuldade de as liberdades serem efetivas no Brasil, ele foi alvo da criminalização dos movimentos sociais em São Paulo. Denunciado por homicídio que aconteceu em 2002 em um dos acampamentos do Movimento de Moradia no Centro de São Paulo (MMC), ele só foi absolvido pelo júri em 2011. O próprio Ministério Público acabou por pedir sua absolvição, diante da precariedade da denúncia: http://vaz.blog.br/blog/?p=940 
Estes dois casos mostram como a luta por direitos sociais desencadeia a repressão contra as liberdades civis, mostrando, embora de maneira negativa, a profunda interdependência entre os direitos humanos. Na tentativa (felizmente frustrada pelo Judiciário) de Kassab, ex-prefeito de São Paulo, de cassar o voto da população na eleição para o Conselho Municipal de Habitação em 2011, tivemos exemplo semelhante: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/12/desbloqueando-cidade-v-eleicao-adiada.html
Espero que, nesta eleição e na futura prática dos Conselhos, esta articulação entre liberdades e direitos sociais possa revelar sua força para transformação da cidade.

P.S.: Já saíram os resultados: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/12/o-conselho-participativo-de-sao-paulo.html

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A propósito de Falstaff, dois finais, o de Verdi e o de Wagner

O Teatro São Pedro que, por méritos próprios de sua programação, e em virtude dos defeitos do outro teatro lírico existente na cidade, se tornou o palco mais interessante para ópera em São Paulo, está montando a última ópera de Verdi, Falstaff : http://www.theatrosaopedro.org.br/falstaff/
Neste ano, tivemos o bicentenário de nascimento dos dois maiores compositores de ópera do século XIX nas regiões que se tornaram a Itália e a Alemanha: Giuseppe Verdi (1813-1900) e Richard Wagner (1813-1883). A efeméride não me afetou: em casa, é sempre nascimento deles, nunca deixei de escutá-los. São dois gênios do romantismo. Hoje, é bastante ridículo, mas ainda há quem odeie um e ame outro, em geral devido a preconceitos nacionalistas.
Tratava-se de época em que a ópera tinha um papel importante para a identidade cultural, e a obra de ambos foi veículo para o nacionalismo. Verdi, especialmente na sua obra inicial, comprometido com os ideias de unificação da Itália; de sua terceira ópera e primeiro grande sucesso, Nabucco, saiu esta peça, uma espécie de ária a quatro vozes (a escrita para o coro é muito simples), de melodia muito belliniana, que continua a socorrer os italianos em momentos difíceis. (Re)vejam o maestro Riccardo Muti protestando contra os cortes nas políticas culturais, depois dos aplausos ao "Va pensiero"; a peça é repetida, e o público canta com o coro: http://www.youtube.com/watch?v=EzgfZzD0yzc
Verdi, nesse momento, refletiu nos lamentos dos judeus por sua pátria perdida os anseios nacionalistas italianos; ele o fez também com os antigos romanos (como em Atilla: "Avrai tu l'universo, resti l'Italia a me"). Como tinha, porém, um espírito cosmopolita, logo se desvencilhou, tematicamente, desse nacionalismo e transformou em ópera peças de Schiller, Hugo, Shakespeare e outros autores.
Shakespeare, por sinal, forneceu a matéria para o libreto de suas duas óperas finais, Otello e Falstaff, com libreto de Arrigo Boito (o compositor de Nerone e Mefistofele), e uma outra, bem anterior, Macbeth, com sua genial cena de sonambulismo: http://www.youtube.com/watch?v=7x7lQWXmalc.
Wagner, pelo contrário, depois que entrou na via da reinvenção dos mitos germânicos, não a deixou mais, e dedicou-se, também teoricamente, à apologia da arte alemã ("die heilige deutsche Kunst": http://www.youtube.com/watch?v=u61XvPYyaE0), o que acabou se misturando àquele caldo nacionalista (lembremos da Escola Histórica do Direito), imperialista, racista e reacionário que gerou um dos regimes políticos mais criminosos do século XX. Por sinal, o antissemitismo de Wagner nunca lhe permitiria fazer o que Verdi fez em Nabucco: usar o drama dos judeus para encenar um anseio de seu próprio povo.
No entanto, o talento venceu os preconceitos do compositor: já em sua época, alguns dos melhores intérpretes de suas difíceis obras (às vezes, há gerações em que não há ninguém capaz de realmente fazer justiça a certos papéis, como Siegfried, Wotan, Brünnhilde) eram judeus, como o maestro Hermann Levi, que estreou Parsifal, e a soprano Lili Lehmann. Hoje, um exemplo é Daniel Barenboim, que regeu Wagner em Israel - um tabu.
Voltando ao Falstaff: a ópera é cheia de melodias, mas elas vão se sucedendo rapidamente e, em geral, ou se tornam árias curtas que não paralisam a ação ("Quando ero paggio": http://www.youtube.com/watch?v=vkbUO1ySbJk), ou se tornam monólogos sem estrutura previsível (o monólogo da honra: http://www.youtube.com/watch?v=yvOznlXoook), o que é um sinal, neste caso, de fecundidade musical do compositor que, conscientemente, se despedia do gênero.
É em razão dessa fecundidade, por sinal, que certos admiradores de sua obra pregressa não gostam muito das óperas finais: Otello e Falstaff, ambas inspiradas em Shakespeare. Uma vez, eu saía de uma exibição em vídeo do Andrea Chenier, uma ópera de um autor menor, Giordano, que serve principalmente de veículo para tenores. A exibição ocorreu no Teatro Glauce Rocha, e um senhor, no elevador, comentou que essa ópera pelo menos tinha umas árias bonitas, ao contrário do Otello, que seria chato... Um lembrete de que parte do público de ópera não gosta de música, e sim de certos efeitos vocais.
Além disso, é errado dizer que Otello e Falstaff não têm árias; elas ainda estão lá, mas não, em geral, como uma forma chiusa, como peça autônoma, e sim integram-se a um discurso musical contínuo. Por exemplo, uma das árias mais impressionantes de Verdi, "È sogno? o realtà?" (que vi no São Pedro muito bem interpretada por Rodrigo Esteves), aparece no contexto do longo dueto entre Falstaff e Ford (disfarçado de senhor Fontana). Pode-se ver o dueto cômico aqui: http://www.youtube.com/watch?v=ZzkZfuHNfsc.
O amor de Verdi pelo diálogo e pela voz de barítono unem-se brilhantemente nessa genial cena de Falstaff. Ford suspeita, em razão da inconfidência dos servidores de Falstaff, de que o outro esteja cortejando sua esposa, Alice. E passa-se por outro, Fontana, dizendo-se apaixonado por Alice, e oferece dinheiro a Falstaff para que este seduza a mulher de Ford. Qual o pretexto disso? Depois de ter cedido a um primeiro homem, ele, Fontana, teria mais chances com a esposa até então fiel... A situação já é engraçada, e tudo se complica quando Falstaff logo aceita o saco de moedas e revela que já tem um encontro marcado com Alice, aproveitando que o Ford fica fora de casa das 2 às 3! O falso Fontana fica pasmo e pergunta sobre o Ford, que é descrito de maneira bem injuriosa por Falstaff, que, em seguida, pede licença e sai um momento para preparar-se para o encontro amoroso. Deixado a sós, Ford canta uma esplêndida ária de ciúmes, tão engraçada quanto eram trágicas a de Otello (como este monólogo, em troca do qual se pode alegremente jogar fora toda a obra de Giordano: http://www.youtube.com/watch?v=Uaen8W7Ejzg).
No São Pedro, com o trabalho excelente do maestro Emiliano Patarra  e do diretor cênico, Stefano Vizioli, as oportunidades cômicas foram bem aproveitadas e, como todos os cantores eram capazes de cantar a música (com exceção de Luciano Botelho, para quem os agudos de Fenton eram um desafio - os "lábios assassinos" quase viraram "notas assassinas"...) e atuar (especialmente Jason Budd no papel título; Licio Bruno, com quem ele se alterna, já mostrou no Municipal de São Paulo que também domina o personagem), foi uma noite divertida.
O final da ópera é impressionante: formalmente, é uma fuga, o que não é a coisa mais fácil de executar (nem de escrever). Os versos de Arrigo Boito dão a moral da peça: "Tutto nel mondo è burla./ L'uom è nato burlone" - assim começa o final, cujo texto é cantado por todos os personagens. Assim a fuga termina: "Tutti gabbati! Irride/ 'un l'altro ogni mortal./ Ma ride ben chi ride/ la risata final.", algo como: "Todos enganados! Zombam/ um dos outros todos os mortais./ Mas ri bem quem ri/ a risada final": http://www.youtube.com/watch?v=49oAEKQsdgc
Com esta risada que justifica a vida, Verdi se despediu da ópera.
Outro universo é o de Wagner: na última ópera, Parsifal (podemos perfeitamente classificá-la assim, embora o compositor a tenha chamado de Bühnenweihfestspiel, algo como "peça festiva de consagração"), reafirma-se o universo dos mitos germânicos reinventados pelo compositor-libretista, e se torna mais explícita a pretensão de que essa arte fosse uma religião... A mundanidade de Verdi está léguas distante disto.
A música é genial, porém, o que mesmo Nietzsche, já rompido com o ex-amigo, reconheceu, e a intervenção final do coro, com "Höchsten Heiles Wunder!/ Erlösung dem Erlöser!" (algo como "Supremo milagre da salvação!/ Foi salvo o salvador!") é de chorar: http://www.youtube.com/watch?v=nhxGXQsF_wI
Wagner despede-se com esse gesto de transcendência, presente em tantas de suas obras. Mas o que significa este final? Uma obra essencialmente racista, como quer Gutman (http://www.nybooks.com/articles/archives/2001/may/31/wagner-politics/)? Provavelmente significará o que os diretores cênicos quiserem. François Girard, diretor do genial filme 32 curta-metragens sobre Glenn Gould (no Brasil, virou 32 variações) retirou um pouco do cunho misógino da ópera, na última montagem do Metropolitan Opera House (muito bem cantada), fazendo a única personagem feminina participar da cerimônia do Graal, embora ela acabe por morrer (Wagner a mata misticamente): http://www.youtube.com/watch?v=r5rsU8bX9QI
Alguns preferirão esta montagem de Calixo Bieito, diretor famoso pelo uso de nudez e sexo nas montagens de ópera, e que encena um strip-tease do tenor: http://www.youtube.com/watch?v=__9WWsX9f1k 
Acho que ele ainda não montou Falstaff. Se o fizer, provavelmente dará muita atenção ao namoro entre Nanetta e Fenton.
Na última sexta-feira, foi publicada breve matéria na Folha de S.Paulo sobre Falstaff com pelo menos um curioso equívoco: traduziu-se erradamente o final da ópera, que remete a um provérbio: ri melhor quem ri por último. Acho comovente esse gesto de Verdi de encenar sua carreira cênica com um dito popular: por meio de uma forma sofisticada, a fuga, ele encontra uma forma de retornar ao povo, de onde ele veio - e onde, creio, permanece.