O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Nota para Leonardo Marona e o antifascismo na poesia brasileira

Somente ontem, depois da nota que fiz sobre "comunista FDP", li o romance novo do mesmo autor, Leonardo Marona, "Não vale morrer", que saiu pela Macondo em 2021. O título, curiosamente, lembra "Não adianta morrer", o segundo romance de Francisco Maciel, obra de título drummondiano que também se passa no Rio de Janeiro, porém de muito maior envergadura.

Escrevo esta nota porque alguns dos poemas de "comunista FDP" aparecem no romance de Marona como obra do personagem principal, Leon. Nele, com vários personagens à clef, os poemas aparecem em geral apenas como comentário ou ilustração da narrativa.

Talvez o romance sirva mais para ajudar na leitura dos poemas do que o oposto. Dito isso, a primeira parte (as 180 primeiras páginas) é interessante, no caminho de um improvável Murger no Rio do século XXI, tempos de ideologia do empreendedorismo.

Cito o romance de Marona, que não cai nesta armadilha: "Olho para os escritores e, com raríssimas exceções, vejo gente interessada em vencer. Nada muito diferente de quando se olha para um cirurgião plástico ou empreendedor."

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Leonardo Marona e o antifascismo na poesia brasileira



Um livro antifascista que evoca, em certos momentos, o Carlos Drummond de Andrade de Andrade anterior a "Claro enigma". Eis "comunista FDP", último livro de Leonardo Marona (garupa e kza1, 2021), que me parece confirmar e aprofundar características que as obras anteriores apresentavam.

Italo Diblasi, na orelha de "Uma baronesa às quatro da madrugada", obra que Marona publicou em 2018, afirma que esse autor seria o "único herói possível" na "guerra" como "estado permanente e semiconsciente". 

A consciência do conflito, de fato, é importante naquele livro; mas haveria mesmo um herói? Talvez, mas em uma tonalidade menor. Adelaide Ivánova, no posfácio do livro de 2018, ao destacar que Marina não conversa sobre, mas conversa COM Maura Lopes Cançado nesse livro, parece-me realmente tratar de um dado fundamental desta poética.

Em "comunista FDP", trata-se de conversar e marchar no sentido de uma comunidade; o poema que dedica a Ivánova, "o júbilo da marcha", sintetiza esta ambição:


amor eu não sei dizer,

mas faço, perdido faço.

e marcho sem as botas,

e marcho, porque vejo:

ali tremem mãos e pés,

na direção do comum.


Neste livro mais recente, novamente Marona quer conversar, seja com seus pares na poesia brasileira contemporânea, seja com nomes como Pasolini, seja com... todos, oferecendo o poema como um abraço depois da derrota ("wagner tiso no dia da eleição" abre o conjunto com esse espírito) e um convite para reunir forças para a possível vitória futura. O livro é dedicado a Lula.

A circunstância histórica é bem demarcada no livro: um momento de pandemia e ascensão da extrema-direita, em que os fascistas estão contentes, que deve ser aproveitado para procurar e reunir opositores a esses extremistas. Na poesia brasileira, Drummond é um dos autores que melhor falou de horas como esta, e Marona parece ter lembrado deste autor em versos como estes:


cada um de nós andará sozinho

com cada um de nós no bolso.

inventamos novos códigos,

talvez o fascismo ainda tenha

algo incrível a nos ensinar. ("pastoral")


Drummond foi comunista, rompeu com o PCB numa história lamentável desse partido. O curioso título de "comunista FDP", no entanto, parece apontar antes para o insulto que os fascistas de hoje empregam para quem lhes faça oposição, mesmo que sejam dessa espécie mais rara de liberais, os não fascistas, e para (alertou-me um jovem livreiro na Travessa da rua do Ouvidor) o partido liberal alemão (Freie Demokratische Partei), de centro-direita, o que aumenta a ironia.

O livro frequenta a ternura ("porque um abraço agora vale uma volta ao mundo", fim de "fruta luminosa") e a bomba ("você carrega livros impossíveis dentro da cabeça/ e uma granada sem pino no centro da sua máscara", de "à espera de um milagre"), unindo nesses dois polos as dimensões individual e coletiva. 

O poema "trinta e sete" é exemplar desses movimentos, considerando tanto a morte pessoal quanto a da humanidade e vinculando a memória da mãe falecida à de povos originários:


estaria ainda roendo

as unhas enquanto

o câncer não lhe

roía as entranhas?


estaria vibrando

em silêncio bruto

com os mapuche,

os índios urbanos

à linha do equador?



Há muitos indígenas urbanos no Brasil também. Mas a referência chilena (viva o Chile, por sinal, com sua constituinte e o presidente eleito Gabriel Boric) condiz com o espírito deste livro, que se encerra com este abraço animado por um cosmopolitismo do Sul:


explodir feito o barril antidiplomático

que permite definir sermos pobres

latino-americanos indígenas operários. ("barrilete cósmico")


Alguém poderia lembrar aqui do coração de Drummond explodindo. Creio, porém, que se trata de outra coisa: Marona fixa aí a imagem de sua própria poética (com um caráter quase sacrificial, talvez o que Diblasi chama de heroico neste autor), que ele encontra também no assassinato de Pasolini:


mas há mil controvérsias,

só o que temos é um corpo

espancado, ensanguentado 

e um coração que explodiu. ("padre pasolini")





sábado, 18 de dezembro de 2021

Jukebox, de Manuel de Freitas, publicado no Brasil

Foi publicado mais um livro no Brasil do poeta português Manuel de Freitas, Jukebox, desta vez pela Corsário-Satã. O autor me pediu uma orelha, que transcrevo abaixo.



Um dos maiores poetas vivos da língua portuguesa tem mais um livro publicado no Brasil. Este seria um motivo suficiente para recomendar Jukebox, porém há outros. Um deles é o tema: os poemas tratam de música ou de músicos de estilos tão diversos quanto Amália Rodrigues, Lou Reed, Jordi Savall e Dolores Duran. Não é comum poetas ouvirem com tanta acuidade.
Na poesia portuguesa, Arte da música, de Jorge de Sena, talvez possa ser visto como um precedente. Estes poemas de Manuel de Freitas, no entanto, distinguem-se por serem tolhidos de qualquer didatismo e se formarem a partir de uma dialética entre esquecimento e memória, típica deste autor, enunciada no poema dedicado à dupla Milva/Piazzolla: “Muitos anos depois,/ encontrei o disco e assustou-me/ a perfeição, a certeza/ de ter ganhado tudo aquilo que perdi.”
O disco é um registro da música; nele, algo se perde da execução. O poema sobre o disco corresponde a novo registro, a representar aquela perda e acrescentar-lhe outra. Este é o seu ganho, uma consciência aguda da despossessão: “perceber que a luz esmorece/ e que não há ninguém na sala, no abandonado castelo/ onde o corpo foi apenas uma hipótese de ruína.” (“1992, Von Magnet”).
O poema, ou a luz que esmorece para dar a ver que nada havia.
A geografia íntima de certa vida noturna de Lisboa, presente em outras obras de Manuel de Freitas, também ressoa neste espaço: “só ressuscitei,/ muitas tequilas depois, num bar exíguo/ que confundi com o amor”, diz em “Ron Athey”, que se revela, no final, outro poema sobre a morte.
No entanto, Jukebox ecoa um senso de júbilo; afinal, “Nada deveria ser tão triste,/ até porque nada deveria ser.” (“1988, Chet Baker”).


sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Teresa, novo livro de Diego Callazans

Diego Callazans, depois do romance Urinol, lançou a novela Teresa. 2021 foi um ano produtivo para o escritor. Também neste caso, tive a honra de escrever a orelha, que transcrevo abaixo.



A arquejante Teresa, de Castro Alves; a de Manuel Bandeira, capaz de inspirar a criação do mundo; a Tereza Batista, de Jorge Amado; a mais recente, e ironicamente santificada, de Micheliny Verunschk; são muitas na literatura brasileira. A essa galeria, Diego Callazans vem trazer a protagonista deste livro. Desde 2013, o autor publicou duas reuniões de poesia, um volume de contos e um romance, além de vários textos em revistas e portais. Surge agora esta Teresa, sua primeira novela. A jovem sai do interior de Santa Catarina e muda-se para a capital; essa dualidade torna-se o princípio gerador da história. A protagonista divide-se entre a imagem e o trabalho de prostituta, para o qual adota o nome Laura; o personagem do político divide-se entre a imagem respeitável e suas práticas de gângster. O conflito entre as imagens sociais e o mundo às sombras prossegue na revelação gradativa da verdade sobre seus pais: primeiro, sobre a mãe, depois sobre o pai, que havia se suicidado.

De forma parecida com o que ocorre em Urinol, o amor entre mulheres é um elemento importante na história. O leitor dos outros livros de prosa de ficção de Diego Callazans reconhecerá outras características dessa escrita, como o uso do narrador em terceira pessoa curiosamente distanciado, que se interessa em informar friamente o destino dos personagens após a trama.

No entanto, neste livro a resolução do jogo de duplos no campo familiar e privado se encontra com o desvelamento que ocorre no plano público. Nesse sentido, Teresa reflete certos processos políticos da atualidade e é uma mulher (e um livro) bem de nosso tempo.


terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Desarquivando o Brasil CLXXX: Apresentação da adaptação teatral de K. Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski



Em 14 de dezembro de 2021, às 19 horas, no canal do YouTube do Narrativas da Ditadura Brasileira, será transmitida a apresentação da adaptação teatral do primeiro romance de Bernardo Kucinski, um dos grandes marcos no campo da literatura e memória da ditadura militar no Brasil, com debate com o grupo Militantes em Cena.

Kucinski estará presente, bem como o diretor Jitman Vibranoski e os atores do espetáculo, que encenarão a primeira parte da peça. 

Trata-se de uma atividade do grupo de pesquisa Poéticas e políticas da memória na literatura brasileira contemporânea, coordenado pelas professoras Rejane Pivetta e Luciana Coronel, e de que sou um dos integrantes.


Ligação para a transmissão:

https://www.youtube.com/watch?v=oOwRQCMQqzs


Nota: O debate ocorre em outra ligação: https://www.youtube.com/watch?v=wN7n985P_nw

Ligação para o perfil do grupo teatral no facebook: https://www.facebook.com/militantesemcena/

Desarquivando o Brasil CLXXIX: Jornada Internacional Direitos humanos e resistência à ditadura militar na OEA

Esta Jornada começará hoje e tratará de um tema que foi pouco investigado pelas comissões da verdade no Brasil: as denúncias contra o Estado brasileiro apresentadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos durante a ditadura militar. 

Transcrevo a mensagem que me foi enviada pela historiadora Janaína de Almeida Teles:


Jornada Internacional Direitos humanos e resistência à ditadura militar na OEA




Entre 14 e 16 de dezembro, às 18 horas, acontecerá a Jornada Internacional sobre Direitos humanos e resistência à ditadura militar na OEA, organizada pelo Núcleo de Estudos História do Tempo Presente.

Os eventos serão transmitidos ao vivo pelo canal do YouTube História UEMG Passos.

Será imperdível.

Confira a programação e participe deste debate tão importante.

*Com emissão de certificado*


Link do canal: 

https://youtube.com/channel/UCcqFY6HK9SSiVcrrlhbq0Mw



quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Desarquivando o Brasil CLXXVIII: Audiência para transformar o antigo DOI-Codi de São Paulo em lugar de memória

Recebi este convite de Adriano Diogo, que, entre várias funções públicas, presidiu a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", e também da jornalista Niara de Oliveira.

O DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) de São Paulo, descendente direto da abertamente clandestina Operação Bandeirante ("BandeiranteS" é a rodovia ou o canal de tevê, não a Operação), uma operação ilegal de repressão pública que surgiu ironicamente (ou não, quem sabe) durante a gestão do patriarca do direito administrativo brasileiro, Hely Lopes Meirelles, na Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo.

Trata-se de um local onde foram cometidas várias graves violações de direitos humanos e que abriga hoje uma delegacia. O jornalista Vladimir Herzog e o operário Manoel Fiel Filho, por exemplo, foram torturados e assassinados lá. A partir de 2012, a Comissão da Verdade "Rubens Paiva realizou audiências públicas e outras iniciativas para discutir o tombamento do imóvel: https://www.youtube.com/watch?v=HSKFmEu7kCw&t=1s

Em janeiro de 2014, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Turístico (Condephaat) do Estado de São Paulo aprovou o tombamento do imóvel, segundo o desejo dos movimentos de memória e justiça. No entanto, até hoje ele não teve sua destinação alterada para lugar de memória. Em 2015, no seu relatório final, a Comissão "Rubens Paiva" já havia incluído esta recomendação no capítulo sobre lugares de memória:

14) Que seja promovida uma discussão pública, dos órgãos estaduais de cultura e educação em conjunto com a Secretaria de Segurança Pública para a definição do uso do prédio do DOI-CODI, em até doze (12) meses a partir da publicação deste relatório. 

O governo do Estado ignorou essa recomendação (bem como as outras), razão pela qual esta audiência se fez necessária. Lembro que, em 2016, a Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo (da qual Adriano Diogo também era membro) também abordou o tema:

58. Esta Comissão da Memória e Verdade, que não tem competência para julgar e punir aqueles que cometeram crimes na Oban e no DOI-Codi, recomenda a adoção de medidas de memória em relação ao local. Recomenda-se que o 36ª Distrito Policial seja transferido para outro imóvel possibilitando a conversão do edifício do DOI-Codi, já tombado pelo Condephaat, em equipamento de memória, oportunamente num centro cultural dedicado à memória e à divulgação da memória das violações aos direitos humanos praticadas no durante a ditadura.

A audiência foi marcada para este 9 de setembro. Este é o convite:



Dia 9 de setembro, às 14:00 horas, vamos apoiar a iniciativa do Juiz José Eduardo Rocha Cordeiro em transformar  o antigo Doi-Codi em um Centro de Memória, para homenagear os lutadores  que  tombaram para que pudéssemos ter nossos direitos de volta.

Com todos os cuidados, por causa do COVID-19,  quem puder, compareça, na Rua Tutóia, esquina com a Rua Tomás Carvalhal, na Vila Mariana. 

Será no dia 9 de setembro, às 14:00 horas.

Neste dia, o Juiz José Eduardo Rocha Cordeiro fará uma audiência pública no local.

Estamos juntos em mais esta luta. 

Vamos transformar o local em um Centro de Memória.



quarta-feira, 8 de setembro de 2021

O marco temporal, ou o golpismo como método e o genocídio indígena como fim

Em programa que saiu em abril de 2015, eu falava com a Rádio da Universidade de Salamanca sobre a "tese" do "marco temporal", que tinha (e continua a ter, pois o problema não acabou) como finalidade legitimar o extermínio e as remoções forçadas da ditadura militar, que, com o número estimado de 8.350 mortos e desaparecidos para apenas 10 etnias pesquisadas pela Comissão Nacional da Verdade, foi evidentemente um regime genocida. Os criminosos que governavam o país matavam e expulsavam geralmente em nome de projetos desenvolvimentistas, como rodovias e usinas hidrelétricas.
Falei em português; o tema começa a partir dos sete minutos da transmissão. Tentei explicar a declaração, publicada no portal do Índio É Nós, contra o marco temporal. Ela é bem simples: a ideia do "marco" é de perverter a Constituição de 1988. A Constituição, nos artigos 231 e 232, reconheceu os direitos indígenas às suas terras como originários, isto é, anteriores à própria Constituição e decorrentes do caráter tradicional de sua posse. Os setores anti-indígenas querem sabotar esse capítulo da Constituição ("Dos índios") pretendendo que, pelo contrário, ela teria limitado os direitos daqueles povos apenas às terras que ocupavam no exato momento da promulgação da Constituição, ou seja, 5 de outubro de 1988!
Parece óbvio que uma cláusula restritiva dessa natureza (que seria, de toda forma, escandalosa e contrária à dignidade daqueles povos) deveria ser explícita. A questão jurídica é completamente disparatada e não têm base alguma. Fundamentam-na interesses políticos e a leniência judicial com as traduções jurídicas dos discursos de ódio contra os indígenas.
Relembro aqui a declaração, de 12 de abril de 2015, pois continua atual:


 
1. O Estado brasileiro, por meio do relatório da Comissão Nacional da Verdade, em dezembro de 2014, reconheceu ter cometido graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas. Somente de dez etnias, a Comissão Nacional da Verdade apurou o número de 8350 mortos. Além de terem sido vítimas de genocídio, esses povos foram removidos violentamente de suas terras.

2. Por essa razão, o Estado brasileiro aprovou, como recomendação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, reparar esses povos por meio da demarcação, desintrusão e recuperação ambiental de suas terras, medidas mínimas e imprescindíveis de justiça restaurativa.

3. Essas medidas de reparação não são compatíveis com uma interpretação restritiva dos direitos humanos e da Constituição da República que faça crer que os constituintes desejavam, nos artigos 231 e 232, legitimar o criminoso status quo da remoção forçada dos povos indígenas.

4. A remoção forçada foi, de acordo com o próprio Estado brasileiro, o produto do genocídio e de outras ações violentas da ditadura: envenenamento, fuzilamento e bombardeios de tribos pelas Forças Armadas, criação de campos de concentração para índios. Usar esses fatos contra os povos indígenas significaria culpabilizar as vítimas e beneficiar os assassinos com sua própria iniquidade, violando preceitos básicos de justiça e de dignidade.

5. A demarcação das terras indígenas é uma dívida histórica do Estado brasileiro e uma exigência no campo dos direitos humanos que a Constituição cidadã determinou que fosse cumprida até 1993. Exigir que os índios e as comunidades tradicionais em geral devessem estar presentes em 1988 nas terras ainda não demarcadas significaria legalizar o legado do genocídio cometido contra os povos indígenas, além de violar gravemente as normas nacionais e internacionais de justiça de transição e de diversidade cultural.

Em 12 de abril de 2015, assinaram-na: Associação Juízes para a Democracia, Índio é Nós, 
Movimento de Apoio aos Povos Indígenas (MAPI), Uma Gota No Oceano, Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição (IDEJUST), Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), Tortura Nunca Mais/SP, União de Mulheres de São Paulo, Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Instituto Socioambiental (ISA), Associação Bem Te Vi Diversidade, Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), Grupo Nacional dos Membros do Ministério Público (GNMP), Movimento do Ministério Público Democrático (MPD).

A partir dessa mobilização, pediu-se um parecer a José Afonso da Silva, o grande constitucionalista, que demonstra cabalmente a inconstitucionalidade do chamado "marco temporal", explicando por que as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol (onde está o tal "marco") são específicas e não atingem outras terras; o texto está disponível on-linehttp://www.indio-eh-nos.eco.br/wp-content/uploads/2014/03/parecer-jose-afonso-da-silva-marco-temporal-2015.pdf. O movimento indígena distribuiu-o a todos os Ministros do Supremo Tribunal Federal.
O parecer foi publicado posteriormente em livro organizado por Manuela Carneiro da Cunha e Samuel Barbosa, Direitos dos povos indígenas em disputa (lançado pela Editora da Unesp em 2018 a partir de seminário realizado na Faculdade de Direito da USP), já em segunda edição. O artigo que publiquei na obra dedica-se à questão no Direito Internacional. Não há controvérsia alguma neste ponto: trata-se de um grave ilícito internacional. Penso que adotar o "marco temporal" seria o mesmo que elevar o crime de lesa-humanidade à categoria de lei fundamental do país.
Pouco se avançou, no fundo, em termos de justiça de transição no Brasil, e muito menos quando se trata dos povos indígenas, os mais atingidos, em termos numéricos, pelo autoritarismo. Uma das provas disso é justamente o "marco temporal". A relação desse problema com a ditadura militar, fortemente racista e anti-indígena (ela via os povos originários como simples obstáculos aos desenvolvimento e/ou ameaças às fronteiras, e por isso deveriam ser afastados ou dizimados) é direta: os que defendem o "marco temporal" querem completar a obra etnocida e genocida daqueles tempos para tomar as terras dos povos indígenas em favor dos interesses do mercado, com diversas consequências nefastas que incluem devastação ambiental (as terras mais preservadas no Brasil são as habitadas por esses povos e pelas comunidades tradicionais), a desertificação e a falta d'água. 
Genocídio e deserto correspondem ao verdadeiro nome do que os racistas chamam de "integração do indígena à sociedade".
Trata-se, pois, de esforços de desfazer a ordem constitucional da transição democrática, isto é, desfazer essa transição. A extensão inconstitucional dos efeitos da lei de anistia aos assassinos e torturadores da ditadura, que o Supremo Tribunal Federal cometeu em abril de 2010, como escrevi algumas vezes, é um exemplo (a Constituição foi explícita, no artigo 9º do Ato das Disposições Constituições Transitórias, em prever a anistia apenas para as vítimas), e explica por que as comissões da verdade foram tão incômodas.
Se a impunidade dos agentes da repressão era um dos motivos de ataque à Constituição cidadã (afinal, torturas, execuções extrajudiciais e desaparecimentos forçados permanecem no repertório de ação das forças de segurança no Brasil), os direitos sociais, outro ponto de ruptura com a ditadura, foram atacados principalmente após o golpe de 2016, quando a direita tomou o poder e conseguiu mantê-lo com as "eleições" manipuladas de 2018. Não era à toa que os nostálgicos da ditadura engrossaram e informaram as manifestações golpistas desde seu início em 2015.
Outro ponto sensível era a garantia das terras indígenas (TI), cobiçadas pelos setores dedicados ao crime ambiental e à grilagem das terras públicas (as TI integram o patrimônio federal), curiosamente muito ouvidos pelos três Poderes, e com muito espaço em meios de comunicação. A questão era tão importante para as Forças Armadas que, como escrevi em artigo sobre documentos sigilosos do Conselho de Segurança Nacional (deixo aqui a ligação para o texto), elas tentaram impedir a aprovação do capítulo sobre os povos indígenas durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte.
Os militares foram derrotados naquele momento. As ameaças aos direitos indígenas não cessaram, porém. A presidenta Dilma Rousseff usou a Advocacia Geral da União (AGU) para conferir "institucionalidade" à tese anti-indígena do marco temporal por meio da Portaria AGU n. 303, de 16 de julho de 2012. Depois, Michel Temer resolveu reforçá-la com o Parecer n. 001/2017/GAB/CGU/AGU, em 2017, um parecer de efeito vinculante para a Administração federal. Temer também militarizou a Funai, em mais um elemento de retorno aos tempos da ditadura.
Era possível piorar. Os eleitores de Bolsonaro, na farsa que foram as eleições de 2018, não têm desculpa alguma: o candidato foi explícito em afirmar que descumpriria a Constituição em relação aos povos indígenas (pois prometeu não demarcar as terras desses povos) e debochou dos quilombolas em evento na Hebraica do Rio de Janeiro. As falas de discriminação racial, cobertas pela "imunidade parlamentar", bem como os recorrentes elogios à tortura, foram alguns de seus trunfos eleitoreiros. Não por acaso, trata-se de crimes que se constituíram em política de Estado na ditadura militar.
A tese do marco temporal, portanto, constitui mais um capítulo desse golpismo gradual contra a Constituição da transição democrática, desta vez direcionado aos povos indígenas (e aos quilombolas, que também afetará). Seu efeito seria o de ANULAR demarcações já realizadas, além de impedir novas. Isso não poderá ser feito sem sangue, pois eles resistirão a essa nova "legitimação" do genocídio.
Neste dia, 8 de setembro de 2021, continua o julgamento, no Supremo Tribunal Federal, do Recurso Extraordinário 1.017.365, processo em que o Estado de Santa Catarina busca expulsar o povo Xokleng de suas terras. Em fevereiro de 2019, a Corte reconheceu a repercussão geral do caso. O Centro Indigenista Missionário (Cimi) publicou uma boa matéria sobre a questão. 

Hoje, o golpismo como método de governo ficou mais explícito nas falas e ações do ocupante da presidência da república e de seus apoiadores. Relembro que Jair Bolsonaro desejou, ano passado, fechar o Supremo Tribunal Federal; comentei esse furo da Revista Piauí em outro momento. O Sete de Setembro de 2021 foi dedicado por esse ocupante à prática de mais crimes de responsabilidade, com ameaças aos outros Poderes e incitação de seus seguidores contra a ordem democrática, com ampla divulgação internacional
Esse golpismo (próprio da direita brasileira e tolerado até este momento pelas instituições, que estão em campo político enfim semelhante e manterão Bolsonaro enquanto ele for útil) atinge a população em geral, não só indígenas. Talvez como resultado das calamidades múltiplas causadas pelo retorno da direita e dos militares, as passeatas e protestos contra a tentativa de ditadura militar reloaded  têm incluído as reivindicações dos povos originários. Como a pandemia comprovou, agora o genocídio não se dirige mais somente a eles... Talvez tenha se expandido a compreensão de que as lutas desses povos correspondem a uma questão vital para a democracia. Aqui em São Paulo presenciei diversas vezes neste ano este acontecimento.
Houve no Brasil uma série de atos do movimento indígena em 30 de junho de 2021 em razão do julgamento no Supremo Tribunal Federal de ação sobre a tese pró-genocidas do "marco temporal".
O Tribunal falhou com a sociedade brasileira mais uma vez e adiou o julgamento, que deveria ter ocorrido em 2019. Em São Paulo, o ato começou às 14 horas diante da Justiça Federal, na avenida Paulista:


De lá, os participantes do protesto seguiram, pela calçada, para o Vão do Masp. "Floresta de pé, fascismo no chão" é um bom programa de vida.


Este cartaz diz respeito a uma iniciativa legislativa para "legalização" do marco temporal. Comento-a mais abaixo.


Nesses atos específicos do movimento indígena, quando olhamos para o sistema político, quem aparece é a esquerda, mas não toda, tendo em vista as parcelas anti-indígenas presentes também nesse campo. Abaixo, está a presidenta da Unidade Popular (UP) em São Paulo, Vivian Mendes, que participou, com outros militantes, do protesto. É interessante ver que o partido mais recente do país já incorporou essa pauta.



O julgamento da questão foi retomado em agosto de 2021. De novo foi adiado. Na manifestação "Fora, Bolsonaro" de 24 de julho em São Paulo, que englobou diversos atores (e também partidos, inclusive um dos responsáveis pela tentativa de institucionalização do marco temporal no Executivo) novamente fotografei cartazes contra a tese anti-indígena; este, da Marcha Mundial das Mulheres:


Findo o recesso da Corte, o julgamento continua a arrastar-se. Em paralelo, no Congresso Nacional, corre um projeto de lei inconstitucional e contrário ao Direito Internacional que deseja "legalizar" o marco temporal, o PL 490/2007. A advogada e deputada federal Joênia Wapichana (REDE/RR), a primeira e única mulher indígena congressista, comenta neste vídeo como a Comissão de Constituição e Justiça (soi-disant) da Câmara dos Deputados aprovou em junho de 2021 esse projeto. Ele continua em tramitação apesar de sua evidente incompatibilidade com a dignidade humana e com o manifesto de 9 de junho que o movimento indígena entregou ao presidente da Câmara, "Exigimos o fim da agenda anti-indígena do Congresso!". O documento, ignorado pelo Congresso, pode ser lido no sítio da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e lista especificamente:
1. Retirada definitiva do Projeto de Lei 490/2007 da pauta de votação da CCJ e arquivamento do mesmo;
2. Arquivamento do PL 2633/2020, conhecido como o PL da Grilagem, da pauta de votação do Congresso Nacional
3. Arquivamento do PL 984/2019, que pretende cortar o Parque Nacional do Iguaçu e outras Unidades de Conservação com estradas.
4. Arquivamento PDL 177/2021 que autorizaria o Presidente da República a abandonar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)
5. Arquivamento PL 191/2020 que autoriza a exploração das terras indígenas por grandes projetos de infraestrutura e mineração;
Os povos indígenas continuam mobilizados em Brasília para acompanhar o julgamento do Supremo Tribunal Federal. A Câmara, no entanto, ameaça prosseguir com a votação do projeto mesmo que o STF cumpra seu papel (e não simplesmente adie indefinidamente a votação, como fez com a ADPF da lei de anistia, até hoje pendente de recursos), o que configura outra dimensão do golpismo contra a Constituição de 1988 e a transição democrática, que, lembramos, tentou dar fim a um regime político genocida. 
A injustiça de transição, no entanto, é o que se logrou institucionalizar, à revelia do constitucionalismo, com a promoção dos três Poderes e o aplauso daqueles que não entenderam (ou lucram com) a atualidade do legado criminoso da ditadura.

domingo, 29 de agosto de 2021

Desarquivando o Brasil CLXXVII: Pedro Tierra no Narrativas da Ditadura Brasileira

O Canal Narrativas da Ditadura terá novo encontro no dia 30 de agosto, com o escritor e ex-preso político Pedro Tierra. Muito se escreveu sobre ele, sua atuação com os povos indígenas e o movimento camponês. Deve-se lembrar, porém, que ele era um dos autores cujos recitais de poesia atraíam a atenção do SNI (Serviço Nacional de Informações):


Os poemas da Missa dos Quilombos, escritos com Dom Pedro Casaldáliga e musicados por Milton Nascimento, já haviam despertado a vigilância do SNI:



Antes disso, tinha ocorrido a prisão. Por causa dela, nasceram os Poemas do povo da noite, escritos no cárcere e publicados em livro em 1979 pelo Editorial Livramento, depois de terem ganhado menção honrosa no Casa delas Américas. O livro apresenta várias referências a tortura e a presos e mortos políticos e representam um exemplo de literatura de testemunho.

O próprio nome literário nasceu no cárcere, com a finalidade de escapar da censura. Uma das formas de fazer os poemas saírem da prisão era atribuí-los, nas cartas (que eram censuradas) ao fictício poeta Pedro Tierra, como ele revelou na época:



Os documentos que encontrei e reproduzi acima estão no Fundo do SNI, no acervo do Arquivo Nacional.

Segue abaixo a divulgação do evento:



Pedro Tierra, escritor e ex-preso político da ditadura militar brasileira, participará de uma conversa com Weverson Dadalto (professor do Ifes e doutorando no PPGL/Ufes) e Nelson Martinelli Filho (professor do Ifes e do PPGL/Ufes). O autor abordará as relações entre produção literária e cárcere político a partir de suas obras, como Poemas do povo da noite (1977) e Pesadelo: narrativas dos anos de chumbo (2019), entre outras. O evento ocorrerá no dia 30/08, às 19h, e será transmitido pelo canal do PPGL/Ufes no Youtube e pela página do Facebook “Narrativas da ditadura brasileira”. Haverá certificado para participantes.



P.S.: As ligações para vê-lo:

https://www.youtube.com/watch?v=hGFSZBzV7NE

https://pt-br.facebook.com/pg/narrativasdaditadurabrasileira/posts/?ref=page_internal

sexta-feira, 16 de julho de 2021

O absurdo e ordinário no romance Urinol, de Diego Callazans

Diego Callazans tinha-me pedido uma orelha para seu primeiro romance, Urinol. Eu gostei bastante do livro, que tem a estranheza da prosa, já bem própria, desse autor, e a presença de personagens LGBTQIA+, uma constante em sua ficção, que inclui não apenas Contos estranhos, publicado em 2019, como a novela Teresa, que está em campanha de financiamento coletivo.

A obra nasceu de um programa de residência literária do Sesc em Santa Catarina. Vejam este pequeno vídeo no sítio da instituição com recomendações literárias de Callazans, que incluem Orlando, de Virginia Woolf. Em Urinol, há uma mulher transexual e há magia, mas esses elementos não se cruzam como no romance da escritora inglesa. A história do livro é bem brasileira: tivemos no país recentemente uma escalada de assassinatos transfóbicos: recente relatório da ANTRA (a Associação Nacional de Travestis e Transexuais) estimou 89 casos de pessoas trans assassinadas no primeiro semestre de 2021. 

Essa violência aparece em Urinol, porém mais não digo.

Copio da imagem da capa no twitter do autor, que indica a ligação para a compra:


Creio que vejo pelos felinos sobre o livro. Uma gata é personagem, por sinal.

Apesar de eu ter atendido ao tamanho solicitado, o editor resolveu cortar e reescrever o texto por conta própria. Acho que não ficou bom; reconheço que talvez antes também não estivesse. No entanto, como o autor gostei do que eu havia escrito, e o textinho sempre pode servir para divulgação do romance, segue a orelha que escrevi:


Em 2019, Diego Callazans, após alguns volumes de poesia, publicou seu primeiro livro de prosa de ficção, Contos estranhos. O efeito de distanciamento causado pelo narrador, que contava imperturbável e formalmente fatos grotescos e cruéis, indicava uma personalidade singular na literatura brasileira, sem correspondente entre os contemporâneos.
O mesmo efeito aparece em Urinol, seu primeiro romance, cujo título evoca tanto o banheiro do primeiro capítulo quanto o célebre readymade de Duchamp, “Fonte”. A história se passa em Aracaju e combina a paixão entre uma mulher transexual e um lutador cis; um artista andrógino que chega à maneira do Teorema de Pasolini (como um Deus), por quem se apaixonam um pai de família e a gata Pandora; a mãe de família e seu amante devorado; um happening que se torna carnificina; a jovem lésbica (em parte inspirada em Jacqueline du Pré) que lida com entidades cósmicas e o violoncelo; um incêndio transfóbico; e a arte, motivo de aulas e crimes.
“A arte redime a espécie”, lê-se na inscrição do banheiro. O que é, portanto, o urinol, uma obra de arte, um objeto útil, ou a redenção? O romance inspira-se no gesto de Duchamp de alterar a percepção do público e brincar com contextos e fronteiras. A ambiguidade dos personagens, desde o seu gênero, estrutura a história até o súbito final, tão surpreendente quanto lógico – caracterização que se pode estender ao conjunto da prosa de Callazans: uma arquitetada combinação do comum com o absurdo (única possibilidade de redimir-se).

 

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Contra o fascismo, as poéticas da memória: a Ilhíada, de Alberto Pimenta


 

Após os oitenta anos, Alberto Pimenta continua a se reinventar a cada livro novo. Ilhíada (Lisboa: Edições do Saguão, 2021) difere de todos as outras obras de Pimenta pela estrutura e pela forma como cruza memória e política.
Estive no Porto apenas em 2007. Conheci, naquela ocasião, o grande Manuel António Pina. Não soube, porém, da existência das ilhas, que me foram apresentadas agora por Alberto Pimenta, a tripla distância: a do Oceano, pois estou no Brasil; do passado (o livro traz memórias de infância e de juventude do autor) e a do texto.
O texto, distância efetiva, consiste também na única proximidade possível. Ele cria novas vizinhanças. Pimenta cria a inesperada e bem sucedida vizinhança das ilhas do Porto com Tróia. O trocadilho do título é mais do que divertido, ele estabelece o sentido do poema, desde sua estrutura. Hugo Pinto Santos, para O Público, e Teresa Carvalho, em o Jornal i, destacaram que o livro se divide em 24 unidades, o mesmo número de livros de A Ilíada, esclarecendo, claro, que não se trata de emular Homero. Pimenta há décadas refere-se à literatura clássica, seja como poeta, seja como ensaísta.
Há alguns pontos de contato: Teresa Carvalho escreve que o personagem de Rodrigo, que foge da polícia e recebe um tiro no tornozelo, não deixa de lembrar, em registro bem diferente, o destino de Aquiles. Para mim, no entanto, o principal paralelo é o de que estas ilhas também estavam sitiadas, e este poema longo de Pimenta (o livro tem 184 páginas) corresponde à memória desse sítio, desta singular forma de guerra, que é a do fascismo contra sua própria população, com alusões à Segunda Guerra Mundial. Aqui, até mesmo o câncer ("cancro") é descrito em linguagem de guerra (na seção com o mesmo número do Arcano da Morte do Tarô, o décimo terceiro).
Por sinal, na discussão que abre o livro ("Átrio"), o autor esclarece o seu lado: "as ilhas em que se habita, como são as da cidade do Porto, não são um tema bizarro, senhor Professor; são como os honestos troianos, acossados por hordas de pretensiosos gregos". Talvez a forma do diálogo já sirva para lembrar a literatura clássica, com uma ironia que é toda de Pimenta, bem como as alusões que se seguem. A primeira seção da "Ilhíada: versão integral" (subtítulo que vem do autor da Obra quase incompleta), intitula-se "musa, dá-me só uma"; a última trata da "Ilha da Travessa das Musas"; no final, ela é posta a descansar.
No poema, em vez de heróis, temos, em um registro antimonumentalizante, pessoas comuns: pescadores, prostitutas, vendedores, padeiros, pequenos golpistas, formando um panorama social cuja riqueza é sugerida pela variedade impressionante dos registros da poética de Pimenta. Destaco a felicidade das transições entre as passagens prosaicas e as líricas; todas elas cabem muito bem na variedade do verso deste autor.
Trata-se, como dizia, da memória de uma "guerra" do Estado fascista contra a população local, com episódios de remoções forçadas, torturas, execuções (extra)judiciais. No Fascismo, polícia e justiça confundem-se. A Pide lá está ("não é pide, mas pode", escreve na décima primeira seção), a censura também ("já lhe passaram pelas mãos imensas/ edições clandestinas", na vigésima parte), e o povo daquelas ilhas é tratado como inimigo interno (faço uma nota: no Brasil, o paralelo atual seria a polícia militar, que também trata a população, especialmente a periférica, dessa forma), o que diz respeito ao momento da Guerra Fria em que se passam as histórias do poema.
Já na primeira seção, um Cipriano, que gostava de falar com as crianças, é subitamente preso pela "polícia de defesa", que o acusa de "sedução de menores", e não retorna jamais.

[...] e todos foram a repetir: – quando 
alguém vai preso, quando é que sai? o Tiago perguntou 
ao pai: – por que é que queres saber isso? perguntou por 
sua vez o pai. –  levaram alguém preso agora ali em baixo! 
– sei lá.... e que é que te importa? vai mais é jogar tu e o 
com a tua pistola d'água, vai! [...]

Os adultos preferem não tratar do assunto. Depois vemos uma florista presa e as especulações no primeiro AD L....:

seria por estar a
incomodar
ou
por vender
sem licença,
ou
por ser comunista,
hipótese apurada
pelos mestres das devassas...
ou por tudo isso?
era sabido que
da cela de castigo
mal se saía,
ou saía-se mal.

Um exemplo de sair-se mal, da seção da ilha "que havia nos Lóios":

o Beto perguntou ao pai se sabia que ele,
o Feliciano, tinha um olho de vidro; o pai
ficou calado. e o Beto contou como pôde o que
ele tinha dito: – foi há muitos anos, foi num
interrogatório da polícia, o nome então era pide
;
o Beto não sabia o que era, e o Feliciano explicou
que era uma polícia à paisana, apanhava melhor
quem não estava a dizer o que devia; [...]
Os mais velhos, de novo, preferem não falar do assunto. A sombra da censura é longa.
A respeito das licenças, a décima seção, sobre a ilha do Pé Descalço, contém uma das histórias mais terríveis: o engraxador Eliseu tem seus instrumentos de trabalho confiscados por um policial, por falta de autorização (segundo as categorias de O discurso sobre o filho-da-puta, trata-se de um exemplo daquele especializado em não deixar fazer). Eliseu, para pagar a multa, precisou vender os próprios sapatos e ficou descalço: a caixa confiscada, porém, nunca aparecia no posto. Fica doente, pois descalço; no hospital, deixam-no cair; é transferido e perdido na burocracia do sistema de saúde; enfim conseguem achar a certidão de óbito.
O caráter arbitrário das prisões, na verdade sequestros em que está presente a possibilidade do desaparecimento forçado, corresponde, no plano do indivíduo, às remoções forçadas que as coletividades dessas ilhas sofrem. Na nona seção: "desmantelada a ilha, aí estava o lugar/ que há muito tempo era ambicionado:/ o espaço ideal para os carros oficiais." O estigma que lhes é lançado serve a justificar tais operações: "e pense como quiser que falo da cidade/ ou só das ilhas, todos julgam que isto/ são antros à beira da miséria, doença,/ e crime, e não é bem assim", lemos na vigésima parte. Ou, na vigésima terceira, "há buracos escavados na/ rocha, é muitas vezes o refúgio dos que/ não têm casa, ou a humedecida palha de/ estábulos sem gado, sem falar de sótãos,/ e caves abaixo do nível do chão". Tais são as condições do desabrigo, que não deve ser divulgado, sob pena de prisão:
às vezes a mãe decidia aliviar, 
dizia: – olha que algemado 
não tem nada que ver com gema, 
de que tu tanto gostas 
nas conchinhas que a madrinha traz!
Nesse contexto, a tevê é chamada de "Tudo Vê" e integra o sistema com sua função de impor as versões da polícia. Esta ocorre na décima nona seção do poema:
[...] à frente, lá ia a Renata, e
empunhava como A Liberdade condutora do
Povo
na pintura de Delacroix, a bandeira;
mas não foi ela que empurrou o polícia com
o pau da bandeira, como alegou a Tudo Vê,
cumprindo o dever: não viu, viu o que devia;
pois foi o polícia que viu-a tropeçar, e ir só
com a mão livre ao chão, ergueu a biqueira
da bota e deu-lhe com ela na barriga [...]

A repressão à manifestação, a recusa ao atendimento médico e a morte causada pelo Estado fascista em sua dupla face do poder policial e do poder médico são coroadas pela requisição das joias da defunta. 
Hugo Pinto Santos e Teresa Carvalho destacam os interlúdios entre as seções, intitulados inicialmente AD LITTERAM e AD LIBITUM, e depois apenas AD L.......... (creio que os dois sentidos estão presentes). Todas essas partes intermediárias, menos a última, terminam com a palavra "fim" (neste, a palavra vem separada, mas Ilhíada ainda oferece um "quolibet" para repouso da musa).
Trata-se de um poema longo. A divisão em histórias, confere, no entanto, certa autonomia às partes. Na vigésima seção, que já citei, temos os "vinte anos começados" do eu lírico e uma história impressionante pela maneira como Pimenta combina amor, miséria, referências da arte ocidental (Bocage, Leonardo da Vinci, Petrarca, A Dama das Camélias...), doença e morte. Não sei se é o ponto mais alto do livro que, de qualquer forma, sustenta-se em seu conjunto. A vigésima segunda distingue-se das outras por ser mais leve e engraçada: na ilha de Cedofeita, o menino Tiago quer saber do que é feito o nevoeiro: pai, mãe e professora ignoram-no, mas o padre não tem dúvidas de que Deus fez todas as coisas! O menino conjectura se não poderia ser "obra do mal"... No fim, Tiago está na posição divina de descansar e ver "que era bom".
O nevoeiro pode ser na Ilíada uma imagem da morte, ou até um recurso dos deuses para intervir disfarçados (Apolo disfarça-se assim). Podemos pensar nele como uma imagem que indica como as pessoas não estão a ver bem (o que é o caso de todos aqueles personagens menos do menino, que percebe a ambiguidade do fenômeno). No entanto, como se trata de um poeta português, lembramos antes do "Nevoeiro" de Fernando Pessoa, um poema da crise do país ("Tudo é incerto e derradeiro./ Tudo é disperso, nada é inteiro./ Ó Portugal, hoje és nevoeiro...") e a contribuição do cristianismo para o enevoado obscurantismo satirizado no poema de Pimenta.
É claro que Ilhíada nada tem de sebastianismo místico, ao contrário de Mensagem. No entanto, talvez não seja abusivo lembrar que "Nevoeiro" relaciona-se com a decepção de Pessoa em relação à situação política de Portugal, recém-desabado no fascismo de Salazar. Para Pimenta, décadas depois, o regime é principalmente matéria da memória; para o outro poeta, na primeira metade da década de 1930, trata-se da atualidade que inspira o desencanto do livro e do país.
Muito haveria a falar sobre este poema, porém não me visitaram as Musas. Termino, pois, com este trecho da parte final desta obra que faz lembrar, a todo momento, que elas eram filhas da Mnemósine:

as musas não falam, como poderiam dar
o que dão em tantas e tão diversas línguas;
não falam, põem a falar, mas fogem à fala
que não foi obra delas; passar sim passam,
como eu comecei por sentir, mas só elas o
sabem fazer, pondo a falar quem as sentiu.

Sem a memória. não temos a poesia e a história (e nenhum outro dos domínios das Musas), como os gregos bem sabiam, mas tampouco uma política antifascista, que não pode ser feita com o esquecimento ou o apagamento dos crimes do passado. É disto que Pimenta nos recorda sempre, em lição sempre atual: os fascismos de hoje, no Brasil e alhures, necessitam da falsificação do passado para oprimir no presente.


domingo, 27 de junho de 2021

Desarquivando o Brasil CLXXVI: Ditadura e repressão à população LGBTQIA+ no Narrativas da ditadura brasileira


Se tudo correr bem, falarei com a historiadora Rita Colaço no canal Narrativas da ditadura brasileira em 28 de junho de 2021, segunda-feira, às 19 horas. Colaço, como se sabe, é uma referência no tema e mantém o blogue Memórias e História das Homossexualidades. É uma das fundadoras do Museu Bajubá. O professor João Pedro de Carvalho fará a mediação. 
O evento poderá ser acompanhado também pela página do facebook. Para receber certificado, o público deverá inscrever-se nesta ligação.
Ela falará sobre "A ditadura, as homossexualidades e o Eichmann que nos habita", tratando da repressão no passado e na atualidade. Eu vou falar das homossexualidades nas comissões da verdade brasileiras. A esse propósito, cabe uma palavras sobre os trechos de quatro documentos da época da ditadura militar que estão no cartaz do evento. 
Eu os escolhi para enfatizar (pois esse foi assunto de polêmica na época de funcionamento da Comissão Nacional da Verdade) que a repressão às homossexualidades era tratada pelos órgãos de vigilância e informações como politicamente subversiva e, portanto, alvo de repressão. Trata-se de uma pauta que deve ser incluída nos debates sobre justiça de transição.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Desarquivando Brasil CLXXV: A primeira condenação criminal de um agente da ditadura militar brasileira

Em 21 de junho de 2021, o policial civil aposentado Carlos Alberto Augusto, mais conhecido como "Carlinhos Metralha", foi o primeiro agente da repressão da ditadura militar condenado penalmente no Brasil. Ele havia integrado a lista elaborada pela Comissão Nacional da Verdade de 277 autores de graves violações de direitos humanos. Na página 884 do tomo 2 do volume I do Relatório, encontramos um resumo dos crimes atribuídos a seu nome:

174) Carlos Alberto Augusto
(1944-) Delegado de polícia. Serviu no Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS/SP), sendo conhecido como “Carteira Preta” e “Carlinhos Metralha”. Integrou a equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Teve participação em casos de detenção ilegal, tortura e execução. Convocado para prestar depoimento à CNV, não foi localizado. Vítimas relacionadas: Carlos Marighella (1969); Eduardo Collen Leite (1970); Antônio Pinheiro Salles e Devanir José de Carvalho (1971); Soledad Barrett Viedma, Pauline Reichstul, Jarbas Pereira Marques, José Manoel da Silva, Eudaldo Gomes, Evaldo Luiz Ferreira de Souza e Edgard de Aquino Duarte (1973).

No início de 2015, ele, com seu capacete militar (que ele usava, dizia, em homenagem ao Exército, embora não o integrasse), foi estrela na avenida Paulista das manifestações golpistas que a grande imprensa insuflou. Mário Magalhães, na época, escreveu: "Quem permite um símbolo de tortura e extermínio ao lado admite a barbárie". Creio que admitisse e provavelmente até tenha votado nela...
Na foto da matéria de Magalhães, o atual condenado segura um cartaz absurdo: a CNV já tinha acabado e ele se evadiu de falar à Comissão, apesar da expectativa sobre o que diria. Em 2013, a "Frente de Esculacho Popular" realizara um ato em frente a sua casa em Itatiba.
No entanto, ele tinha aparecido em audiência pública da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", a mando de Brilhante Ustra, com seguranças, no dia em que Marcelo Godoy falaria sobre seu livro A Casa da Vovó, sobre o DOI-Codi de São Paulo. 
Era 12 de dezembro de 2014, o relatório da Comissão Nacional já tinha sido entregue; a do Estado de São Paulo continuava funcionando. A audiência foi filmada. Com bastante desfaçatez, declarou que quis depor para a CNV... Ele tentou intimidar Amelinha Teles, mas não conseguiu, e Adriano Diogo, o presidente da Comissão começou a fazer-lhe perguntas sobre mortos políticos, que ele evitou responder.
Godoy lhe diz isto:

O SR. MARCELO GODOY – O senhor participou do massacre da Chácara São Bento, o senhor sabe muito bem o que foi feito na Chácara São Bento. 
Os senhores prenderam seis militantes da VPR [Vanguarda Popular Revolucionária] e assassinaram esses seis militantes lá, o senhor participou disso, o senhor sabe muito bem. 
Na boca do senhor o significado de guerra, significa apenas uma desculpa para assassinato e tortura, o senhor me desculpe, doutor.
Aliás, conhecido publicamente como “Carteira Preta”, eu já entrevistei o senhor no DEIC, em outros departamentos, porque o senhor, até pouco tempo atrás, não sei se ainda está na ativa da Polícia Civil de São Paulo, mas, o discurso que o senhor está começando a fazer é um discurso que é possível encontrar em todos os textos do Exército e de autores do Exército, que são publicados pela BibliEx.
Que eu vou dar um exemplo, Agnaldo Augusto Del Nero, que foi do Centro de Informações do Exército, o seu discurso, começando com 1935, é o mesmo discurso do Projeto Orvil, que foi feito pelo general Leônidas Pires Gonçalves, o discurso do senhor, é um discurso conhecido.
O que não se conhece, é o senhor chegar, é o senhor contar o que de fato o senhor fez, isso que não se conhece. (Palmas.)
O senhor tinha que contar o que o senhor fez, o senhor deveria falar que o senhor pegou o Anselmo, o senhor pegou o Anselmo e levou o Anselmo até Recife, e mataram uma mulher que estava grávida do Anselmo [Soledad Barrett Viedma].  

Depois, o deputado estadual Adriano Diogo indagou:

O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Como é que foi morto o Edgard Aquino Duarte? O senhor pode esclarecer? Aproveita essa oportunidade, é importante. 
[...]
O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – Só queria saber, o senhor conheceu o Edgard Aquino Duarte?
O SR. CARLOS ALBERTO AUGUSTO – Não o conheci e estou sendo acusado por isso, não o conheci.
O SR. PRESIDENTE – ADRIANO DIOGO – PT – O senhor nunca viu ele no corredor do DOPS? 
O SR. CARLOS ALBERTO AUGUSTO – Nunca vi. 

Nada viu, nada soube, mas reclamou do apelido que lhe deram os presos políticos por entrar na carceragem com metralhadora. Alegou também nunca ter feito isso, e que gostara de trabalhar no DOPS porque a polícia civil era "legalista"...
Perto do fim da audiência, na qual Carlinhos Metralha nada revelou, Godoy fez esta reflexão:

O SR. MARCELO GODOY – Esse é o tipo de dificuldade que a gente encontra, toda vez que você vai tentar conversar com as pessoas que trabalharam nos órgãos de repressão no período, DOPS, no DOI, etc.
Algumas dessas pessoas continuam até hoje, como mesmo discurso que tinham no passado. Essas pessoas, elas continuam, vamos dizer assim, sequestrando intencionalmente a memória, a verdade.

O policial apareceu para levar o livro de Godoy para Ustra. Poucos meses depois, na véspera do lançamento do relatório da Comissão "Rubens Paiva", que ocorreu em 13 de março de 2015, ele telefonou para saber se haveria livro impresso. Infelizmente não (até hoje a Alesp não se interessou em imprimi-lo), ele ficaria todo disponível on-line (ainda está). O policial não compareceu ao evento.
Ele ainda estava em atividade e por isso foi aberta sindicância na Polícia Civil para apurar as denúncias da época da ditadura. Acompanhei, como advogado, César Augusto Teles (que era da imprensa do PCdoB e foi preso e torturado por isso) para depor. A denúncia do processo criminal já tinha sido proposta. César depôs no processo criminal também. Infelizmente, ele morreu em dezembro de 2015; teria gostado de ver esta condenação.
A denúncia criminal do caso de Edgar de Aquino Duarte era de 2012. Segundo o Ministério Público Federal, o policial participara do sequestro e da prisão ilegal, bem como do desaparecimento forçado da vítima:



Ustra e Alcides Singillo também foram denunciados, porém morreram em 2015 e 2019, respectivamente. Ustra havia sido declarado judicialmente torturador em um processo cível movido pela família Teles, em um caso pioneiro e ainda único no país.
Como se tratava de processo cível, a lei de anistia não tinha relação alguma com a questão. Mas, na verdade, ela tampouco deveria gerar efeitos no processo penal (caso da condenação deste 21 de junho), tendo em vista a proibição de leis de autoanistia pelo Direito Internacional, a restrição constitucional dos efeitos da anistia (que foram estendidos apenas às vítimas, e não aos agentes da repressão), e pela própria redação da lei, que fala de "crimes conexos" aos políticos (como, por exemplo, uso de documentos falsos pelos membros das organizações de esquerda), e não dos crimes de lesa-humanidade da ditadura.
Ademais, ocorreu no caso um crime permanente (o corpo jamais apareceu), não caberia falar de prescrição, tampouco estaria coberto pela lei de anistia (mesmo para quem admitisse que ela fosse aplicável aos agentes da repressão). 
Essas questões, por sinal, até hoje não forma julgadas em definitivo pelo Supremo Tribunal Federal; pende ainda recurso da ADPF 153, relativa à lei de anistia, e não foi julgada a ADPF 320, que trata da sentença da Corte Interamericana no caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia). 
Nas alegações finais, o Procurador da República Andrey Borges de Mendonça citou, entre outros materiais, o parecer do então Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, em 2014 na ADPF 320:

Sequestros cujas vítimas não tenham sido localizadas, vivas ou não, consideram-se crimes de natureza permanente (precedentes do Supremo Tribunal Federal nas Extradições 974, 1.150 e 1.278). Essa condição afasta a incidência das regras penais de prescrição (Código Penal, art. 111, inciso III) e da Lei de Anistia, cujo âmbito temporal de validade compreendia apenas o período entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 (art. 1º).
Instrumentos internacionais, a doutrina e a jurisprudência de tribunais de direitos humanos e cortes constitucionais de numerosos países reconhecem que delitos perpetrados por agentes estatais com grave violação a direitos fundamentais constituem crimes de lesa-humanidade, não sujeitos à extinção de punibilidade por prescrição.
Essas categorias jurídicas são plenamente compatíveis com o Direito nacional e devem permitir a persecução penal de crimes dessa natureza perpetrados no período do regime autoritário brasileiro pós 1964.

A condenação de junho de 2021 tem sólido fundamento jurídico; se antes não ocorreu em casos semelhantes, o obstáculo é de natureza política. Dessa forma, um eixo da justiça de transição, o da investigação e condenação dos agentes de graves violações de direitos humanos, começa a ser realizado mais de três décadas depois do fim da ditadura. 
Quem era a vítima? Edgar de Aquino Duarte era marinheiro e tinha participado da revolta dos marinheiros de março de 1964. Com o golpe, foi atingido pelo primeiro Ato Institucional e exilou-se. Apesar de ter sido absolvido pela Justiça Militar, ele foi "preso" (ocorreu, na verdade, um crime de sequestro) depois de voltar ao Brasil. A notícia do Ministério Publico Federal ("MPF obtém sentença histórica contra ex-agente da repressão por crime político na ditadura") explica que, quando foi sequestrado, em 1971, "trabalhava como corretor da Bolsa de Valores de São Paulo e já não tinha nenhum vínculo com grupos de oposição à ditadura.". 
No entanto, ele abrigava o infiltrado Cabo Anselmo, que o delatou. Cito o perfil preparado pela Comissão "Rubens Paiva":

É controversa a data na qual Anselmo começou a colaborar com os órgãos de segurança, pois há indícios de que seu trabalho como agente infiltrado nas organizações de esquerda tenha se iniciado antes de sua suposta prisão. Os depoimentos de Anselmo encontrados no DOPS/SP, um deles datado de 4 de junho de 1971, e já mencionados em outros casos, não deixam dúvidas sobre os alvos de sua perseguição: os dirigentes da VPR e das demais organizações que mantinham contato com ela. Anselmo teria sobrevivido simulando não ter sido preso, tornando-se uma “isca” para atrair contatos.
Edgar permaneceu preso na cela 4 do “fundão” (conjunto de celas individuais, isoladas) no DOPS/SP, durante três meses. Em agosto de 1971, esteve no DOI-CODI/RJ, quando conversou com os presos Manoel Henrique Ferreira e Alex Polari de Alverga. Em outubro e novembro de 1971, esteve no DOI-CODI/SP, onde também foi visto por Manoel Henrique Ferreira. Em julho de 1972, esteve no Regimento de Cavalaria localizado no Setor Militar Urbano de Brasília por oito ou nove meses, retornando ao DOPS/SP, onde foi visto entre 19 de março e junho de 1973. 
Durante todo esse período, conviveu com diversos presos políticos, contando sua vida de prisão e torturas. Edgar dizia ter tido uma entrevista com um oficial do Exército que lhe dissera
que seu caso estava à disposição do CIE. Visto pela última vez em junho de 1973, no DOPS/SP, estava barbudo, cabeludo e muito debilitado fisicamente. Os carcereiros retiraram-no da cela no “fundão” do DOPS/SP e o levaram para um corredor e diziam que ele deveria tomar sol porque, em breve, seria libertado. Mas isso era uma farsa, Edgar comentou rapidamente com outros presos: “Eles vão me matar e dizem que eu vou ser libertado”. 

O juiz federal Silvio César Arouck Gemaque, na sentença, fez esta importante e correta observação: "verifico que o fato foi praticado em um contexto de graves violações aos direitos humanos, denotando a conduta do acusado uma acentuada reprovabilidade social". 
A impunidade no Brasil é quase um segundo solo, sobre o qual alguns pisam, e outros afundam e desaparecem. Apesar de o réu ser primário, o fato de o crime ter sido cometido em uma época de exceção evidentemente justificava agravar a pena.
Além do reconhecimento do regime de exceção como agravante, devo elogiar que o juiz tenha aplicado o direito aplicável, o que, infelizmente, não é nada comum no Brasil quando se trata de direito internacional (esse foi o assunto de minha tese de doutorado, por sinal)... Ele aplicou o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, "no caso Gomes Lund e outros, bem como no caso Herzog, determinou a punição dos crimes, sua caracterização como crimes contra os direitos humanos e a imprescritibilidade dos mesmos".
Trata-se de dois casos em que o Estado brasileiro foi condenado em razão da impunidade dos crimes da ditadura militar (essa impunidade é um dos fatores que levou Bolsonaro ao poder, creio). No tocante ao controle de convencionalidade. citou o internacionalista Valério Mazzuoli, em contraste com o provincianismo constitucional que costuma presidir a cultura jurídica brasileira. 
Outro ponto importante é a recusa da "teoria dos dois demônios", um arrazoado que tenta criar uma falsa simetria entre a ditadura e seus opositores. O juiz Arouk Gemaque é bem claro a respeito:

É certo que o período histórico em questão (guerra fria), e a situação política radicalizada no Brasil da época, envolvia a prática de excessos tanto de um lado como de outro, no entanto, em hipótese alguma, é admissível que forças estatais de repressão, mesmo em regimes como os vivenciados naquela época, tivessem autorização para a prática de atos à margem da lei em relação a EDGAR, permanecendo preso por pelo dois anos, incomunicável, submetido a toda a sorte de violências, torturas e tratamentos degradantes.

Como a pena foi de dois anos e onze meses de reclusão, em regime inicial semi-aberto, e o réu não perdeu o cargo, o Ministério Público recorrerá. É muito provável que o réu também o faça. Vamos ver quanto tempo demorará esta primeira condenação criminal de agente da ditadura, pois certamente a lei de anistia será invocada em recurso e, enquanto alguns sequestram pessoas e, depois, a verdade, outros sequestram a justiça e, assim, verdade e corpos continuam ausentes .

sexta-feira, 18 de junho de 2021

"Faltam vacinas?"





Faltam vacinas?
Prorroguem o prazo
para que tomem as vencidas.

Falta comida?
Prorroguem o prazo,
comam produtos vencidos.

Falta oxigênio,
mas nós vencemos
à força de queimadas e diários oficiais
a atmosfera.

Semelhante cura semelhante.
Os famintos
e os asfixiados
também não passam
de vencidos.

Convém no entanto
disfarçar a vitória:
quando os corpos caírem,
prorrogaremos
seu prazo de validade.

Evitaremos escândalo
com a falta de estatísticas
para contar as quedas,
e os caídos comprovarão
que governar é abrir abismos

e suspender por exaustão
até a lei da gravidade.

domingo, 30 de maio de 2021

Esfera pública com os pés: O meu 29 de Maio e o #ForaBolsonaro em São Paulo

No trabalho de pesquisa, pode ser difícil escolher e identificar quais são as fontes pertinentes. Porém não basta encontrá-las: é necessário lê-las criticamente e perguntar, por exemplo, qual era o olhar e a finalidade de quem as produziu.

Eu geralmente pesquiso fontes policiais e de órgãos de informação; sei que devo interpretar os documentos levando em conta o ânimo simultaneamente criminalizante, em relação não apenas aos oposicionistas, mas à maioria da sociedade civil, e ""abolicionista"" em relação aos crimes do Estado. Quando esses documentos trazem provas ou reconhecimento da prática destes crimes, é impactante. Boa parte dos processos na Comissão de Anistia, por exemplo, encontra provas nesse tipo de arquivo.

Quando usamos fontes jornalísticas, temos que saber qual é o perfil do jornal, o que determina que notícias serão dadas e como isso ocorrerá, com que tom político. É necessário saber também o que será ignorado pelo periódico. Pode ser que ele sejam parecidos com os arquivos policiais e dos serviços de informação: criminalizantes em relação à sociedade civil, compassivos com os crimes do Estado ou do capital.

Lembrando da época da ditadura militar, os mesmos fatos não eram contados, ou não o eram da mesma forma, por periódicos tão diferentes como a Folha de S.Paulo e o Brasil Mulher, ou O Globo e o Lampião.


Para 29 de maio de 2021, foram convocados atos contra o governo de Jair Bolsonaro em mais de cem cidades do país e em algumas no exterior. Em São Paulo, vi cartazes como estes. Era de imaginar que a cobertura jornalística desse esforço suprapartidário merecesse coberturas que variassem muito, segundo o veículo e suas preferências políticas.

Uma forma de se referir aos atos que congregaram dezenas de milhares de pessoas durante a pandemia foi escondê-los em um canto da capa e criticá-los por causar aglomeração, solução de O Estado de S.Paulo, em contraste com a destacada cobertura e o entusiasmado estímulo às manifestações de 2016, que visavam derrubar o governo do PT. O jornal O Globo realizou algo parecido, mas com o detalhe irônico de usar Gilberto Gil na capa, como notou Erahsto Felício. O jornal impresso Folha de S.Paulo fez bem o oposto e deu destaque aos atos.

Em relação à televisão, vi críticas ao absenteísmo da Globo News em relação ao atos, bem como à fraca cobertura da CNN. A tevê ligada à Igreja Universal resolveu omitir o caráter político das manifestações de 29 de maio, com o efeito óbvio de salvaguardar Jair Bolsonaro para aqueles que não têm muito acesso à informação, ou somente o tem por meio desse tipo de filtro religioso. 

Em cidades menores, boa parte do jornalismo não teve pudor em ignorar até as manifestações oposicionistas locais... 

Diante disso, o jornalismo teve que refugiar-se em veículos como o Brasil de Fato, a Mídia Ninja e outros de menor tamanho, porém de maior respeito à ética jornalística. Nesses momentos, para recorrer às fontes jornalísticas, é necessário buscar tais veículos, bem como os da imprensa estrangeira. O Giro Latino indicou alguns da América Latina.

Apesar da pandemia, e também por causa dela, resolvi comparecer ao ato em São Paulo (desde 2019 eu não participava de nenhum protesto de rua). Nesta nota, quero dar o ponto de vista de uma pessoa comum que simplesmente decidiu aparecer no evento, sem ter participado da preparação ou da organização. Também fazemos esfera pública com os pés.

Fiquei menos de três horas, deixei o ato na Consolação, não cheguei até a Praça Roosevelt. Por causa da pandemia, escolhi não andar nas áreas de maior aglomeração. Não vi, portanto, muita coisa. Escrevo esta breve nota só para contar o que eu vi, com as minhas fracas fotos amadoras.

Eu contraí o covid-19 em julho de 2020. Espero não ficar doente novamente. Tenho ficado em isolamento, mas decidi rompê-lo no sábado por ter ficado incomodado com a impressão que a extrema-direita quer passar de que agora "as ruas" são dela. Resolvi me arriscar, levando em conta que era necessário dar uma demonstração de força com a presença no espaço público, e que meu marido já está vacinado. 

Creio que muita gente compareceu neste mesmo espírito, o de que o pior "vírus" é o atual ocupante da presidência. Fotografei cartazes da nova epidemiologia política.


A imprensa colaboracionista resolveu criticar a esquerda por ter provocado aglomeração, mas não vi uma só pessoa sem máscara, ao contrário do que sempre acontece nos atos de comemoração do genocídio promovidos pela extrema-direita. Não há como pretender, sem muita desonestidade e/ou disfunção cognitiva, que são eticamente comparáveis esses atos com o do 29 de maio.

Era a esquerda que o organizou e ela estava presente; vi bandeiras do PT, do PSOL, da UP, e de outros que já vi diversas vezes em atos políticos desta natureza: movimentos como o Levante Popular da Juventude, a UJC, o MTST, bem como da CUT, além de faixas e camisetas da Democracia Corinthiana. Bandeiras LGBTQIA+ também, às vezes servindo como manto. Creio que foi a primeira vez que vi faixa da jovem Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, fundada em 2018:





As pautas expostas nos cartazes envolviam a lembrança dos mortos pelo negacionismo bolsonarista, a vacina, o auxílio emergencial e, principalmente, a saída do atual ocupante da presidência. Apareciam também reivindicações de outros temas atingidos pelo governo, como o ambientalismo e os direitos das mulheres.




Havia essas pessoas, esses atores e tais pautas. Era muita gente? As fotos realizadas com drones revelam que éramos uma multidão. A Mídia Ninja divulgou-as. Entendo que, por essa razão, os bolsonaristas tenham se calado diante dos atos  (os mais desorientados tentaram espalhar a mentira de que não havia quase ninguém), bem como os apoiadores do golpe de 2016 (nem todos bolsonaristas, é claro). O Esquerda Diário publicou matéria sobre as falsificações veiculadas por apoiadores do atual governo para minimizar o 29 de Maio.

Mostro abaixo imagens capturadas dos pequenos vídeos que fiz:


A arte fez-se presente: um boneco inflável brindava-nos com a imagem atualizada da morte no Brasil, e nesta bela imagem de Gilmar (Machado Barbosa), presente também no twitter do artista, víamos o vírus com seu aliado: 


Foi curioso notar a presença de bandeiras do Brasil, como se alguns tivessem decidido recuperá-la após ter sido conspurcada pelos golpistas de 2016 e pela extrema-direita bolsonarista. Houve os que a vestiram com dizeres contrários ao atual ocupante da presidência da república.



As acusações de genocida repetiam-se, tendo em vista que ela é uma consequência da estratégia de "imunidade de rebanho" invocada pelo ocupante da presidência. Um dos cartazes que fotografei fazia a conta dos que faltam cair segundo as políticas adotadas pelo governo, um milhão.



No final, fica  pergunta: quantas mortes faltam para o impeachment? Será realmente um milhão de pessoas? A esquerda já apresentou vários pedidos de impedimento. Segundo o Placar do Impeachment, somente o PT, o Psol, o PCdoB e a REDE têm total adesão ao impedimento. No entanto, a esquerda é minoria no Congresso e na presidência da Câmara dos Deputados, o responsável por colocar esses pedidos na pauta de votação, há um aliado do governo. 

Falta ver se em algum momento a direita partidária e seus patrocinadores e divulgadores terão medo dos que sobreviverem.