O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 31 de março de 2012

Desarquivando o Brasil XXIX: Desaparecidos: os homens e os direitos


Para ocultar o assassinato de Wilson Silva, militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), em uma informação do Ministério do Exército, de 1974, foi escrito que "há subversivos cujos desaparecimentos são imputados aos Órgãos de Segurança". Tal negacionismo fazia parte da estratégia da repressão política.
Em 1974, a ditadura militar preocupava-se com a crescente campanha no exterior sobre a tortura, as execuções extrajudiciais e os desaparecimentos forçados cometidos pela repressão político. Afinal, essas práticas continuavam e geravam novos constrangimentos internacionais para o Brasil.
De um longo relatório do II Exército, de 5 de maio de 1975, destaco esta página, na qual podemos ler uma passagem que achincalha a Campanha dos Desaparecidos na própria figura desses mortos:

Todos sabem, mesmo os "inocentes" familiares e principalmente os "idiotas úteis" que se esses terroristas não se encontrassem desaparecidos, estariam nas penitenciárias respondendo por seus crimes de traição à PÁTRIA e ao POVO brasileiro, pois em sua grande maioria já forma condenados pela JUSTIÇA, e alguns até banidos do país.
Assim, antes de serem considerados "desaparecidos", o certo é contarem como foragidos, revéis, evadidos, banidos, etc, pois na verdade são "PROCURADOS PELA JUSTIÇA".

Há algo de correto no arrazoado castrense: de fato, no caso dos desaparecidos, não se fez justiça. Não, porém, porque houvessem se evadido (esses foram poucos, e apareceram depois), mas porque, mesmo dentro do campo autoritário da legislação de exceção no Brasil, mesmo para os decretos-lei de segurança nacional, os atos institucionais, os atos complementares, as execuções extrajudiciais e a tortura eram proibidas, e seu uso como pena era ilícito no ordenamento jurídico vigente.
Não é por acaso que, nos documentos oficiais, mesmo os secretos, tais realidades tinham que ser ocultadas: os militares sabiam que agiam criminosamente.

Em outra página do relatório, vemos que o possível retorno à política de Jânio Quadros, ainda cassado, é classificado como "pressão comunista". Na mesma categoria, temos:
- Proposta de constituição de CPI para apurar abusos de autoridades de segurança contra os direitos humanos.
- Aparecimento na imprensa de pedidos de localização de elementos subversivos, pretensamente "extraviados".

A reivindicação de direitos humanos, nesses documentos, é geralmente atribuída a comunistas. Creio que, em um país em geral avesso a esses direitos, essa estratégia de estigmatizar os comunistas pudesse, realmente, angariar antipatia a curto prazo. Não só os desaparecidos, mas também esta categoria jurídica, os direitos humanos, incluía-se entre os "extraviados" do regime.
No entanto, a um prazo mais longo, a estratégia de deixar com a esquerda a bandeira dos direitos humanos não fez bem para a direita, em termos de batalha ideológica: ela poderia falar em nome da dignidade fazendo um dueto com o pau-de-arara? O discurso não seria sustentável, resultaria em uma gangrena ideológica.
De qualquer forma, a dose de hipocrisia necessária para que pudesse empunhar aquela bandeira logo tornaria o pendão pesado demais para ser carregado.
Para a esquerda, isso foi benéfico, pois levou à (re)descoberta da importância dos direitos fundamentais e a sínteses como a de Carlos Nelson Coutinho sobre socialismo e democracia.
Os documentos estão no acervo DEOPS/SP do Arquivo Público do Estado de São Paulo.

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