Sem precisar ser nomeada, temos uma larga e prestigiosa Comissão da Inverdade (CI), operando em vários setores, categorias e esferas: públicos e privados, civis e militares, e mistos, principalmente mistos.
Na época da ditadura militar, houve uma proposta, no seio da Operação Bandeirante, de criar uma "clínica de boatos", detalhada no documento acima de setembro de 1969, reunindo "grupos selecionados de INFORMANTES, aos quais serão fornecidos números de telefones que possam receber as comunicações de boatos, durante um amplo expediente de 17 horas por dia, divididas em 5 períodos:- 7 às 10, 10 às 14, 14 às 18, 18 às 21 e das 21 às 24 horas."
Há mais, sobre que escrevei depois. A proposta, que pode ser lida no Arquivo Público do Estado de São Paulo, decorria da ideia de que o controle da informação era vital para a segurança nacional, o que levava não só à propaganda do regime como a campanhas de desinformação (ambas deveriam andar de mãos dadas, por sinal). Ademais, fazia-se presente a tipificação como "propaganda adversa" às denúncias contra o caráter ditatorial do regime e suas múltiplas violações de direitos humanos, como se essas denúncias e violações fossem falsa.
Hoje, nada de parecido, eis que a democracia formal voltou ao país. A desinformação, no entanto, continua a ser um bem nada escasso, desta vez sem uma central a disparar telefonemas de agentes da repressão.
Na grande imprensa, temos, por exemplo, o Estado de S.Paulo, que não logrou perceber que o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos a investigar e responsabilizar os criminosos responsáveis pelos desaparecimentos forçados na Guerrilha do Araguaia. Teria havido apenas uma decisão advertindo o Brasil, a Corte, nessa cândida visão, simplesmente "advertiu o Brasil a investigar a repressão no Araguaia". Repressão é um eufemismo bem achado, por sinal.
Vejam a, partir da página 115 da sentença, de 24 de novembro de 2010, do Caso Gomes Lund e Outros ("Guerrilha do Araguaia") vs. Brasil :
E DISPÕE,
por unanimidade, que:
8. Esta Sentença constitui per se uma forma de reparação.
9. O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 256 e 257 da presente Sentença.
10. O Estado deve realizar todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 261 a 263 da presente Sentencia.
11. O Estado deve oferecer o tratamento médico e psicológico ou psiquiátrico que as vítimas requeiram e, se for o caso, pagar o montante estabelecido, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 267 a 269 da presente Sentença.
12. O Estado deve realizar as publicações ordenadas, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 273 da presente Sentença.
13. O Estado deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos do presente caso, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 277 da presente Sentença.
14. O Estado deve continuar com as ações desenvolvidas em matéria de capacitação e implementar, em um prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 283 da presente Sentença.
15. O Estado deve adotar, em um prazo razoável, as medidas que sejam necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os parâmetros interamericanos, nos termos do estabelecido no parágrafo 287 da presente Sentença. Enquanto cumpre com esta medida, o Estado deve adotar todas aquelas ações que garantam o efetivo julgamento, e se for o caso, a punição em relação aos fatos constitutivos de desaparecimento forçado através dos mecanismos existentes no direito interno.
16. O Estado deve continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa a violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar, garantindo o acesso à mesma nos termos do parágrafo 292 da presente Sentença. [...]
Tais são algumas das obrigações de fazer. E a sentença também declarou que:
As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.
A Folha de S.Paulo pode também ser alistada entre os membros da CI. Notável editorial do dia 19 de março de 2012 atacou membros do Ministério Público Federal, da seção do Pará, os procuradores Ivan Marx e Tiago Modesto, por apresentarem denúncia contra o Coronel Sebastião Curió.
O editorial é interessante por sua oscilação entre a ignorância e algo que me escapa no momento, mas que talvez eu consiga capturar até o fim deste texto.
Em primeiro lugar, noto como o jornal, oficialmente, não preza pela esfera pública: "Com a decisão, portanto, o Supremo encerrou de vez, e para o bem da sociedade, toda a polêmica sobre o alcance da anistia."
Encerrou? De vez? Para o bem da sociedade? Vladimir Aras explicou muito bem as questões jurídicas envolvidas em Esqueletos no porão e Crimes e dores permanentes. Tenho pouco a acrescentar.
Faço notar, porém, que as decisões judiciais, exceto nos regimes autoritários, em que a censura e o carrasco estão a postos para isso, não encerram discussão de nada. Decisão judicial se cumpre, mas se discute todo o tempo, mesmo depois de transitada em julgado. É evidente que os juristas debatem e criticam decisões o tempo todo, sem o que não pode haver nenhuma teoria jurídica significativa. Mas os cidadãos em geral também devem fazê-lo - a aplicação do direito é uma prática que pode repercutir sobre toda a sociedade, e não deve ser monopólio de uma casta de profissionais.
É interessante que o jornal queira colocar mordaça sobre a sociedade em nome de um suposto bem comum. De forma paternalista, pretende calá-la para o que se decidiu que é o bem dele e corresponde, neste caso, a tortura, assassinato e desaparecidos sob e sobre o tapete da democracia. Decerto, se amordaçada, a sociedade não poderia expressar o que prefere e teria que aceitar o que lhe impingissem os jornalistas da esfera privatizada.
Como sabemos, a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a lei de anistia não encerrou a questão nem mesmo judicialmente, eis que foi seguida da decisão que citei da Corte Interamericana de Direitos Humanos, curiosamente objeto de silêncio no peculiar editorial.
Silenciando a condenação que o Estado brasileiro sofreu, o editorial pretende que a ideia "engenhosa" dos membros do MPF de que o desparecimento forçado é um crime permanente e, portanto, não fora coberto pela lei de anistia nem pela prescrição, é um "raciocínio tortuoso".
O que o jornal expressa, num tom de quem ralha com os procuradores (o paternalismo autoritário é um estilo, não só uma política), é manifestamente falso: a ideia não é um raciocínio torto do Ministério Público. Ela é dita com todas as letras na decisão da Corte Interamericana, que é convenientemente obliterada pelo editorial.
No parágrafo 256 da decisão, que discute o problema em vários pontos, lemos isto:
b) determinar os autores materiais e intelectuais do desaparecimento forçado das vítimas e da execução extrajudicial. Ademais, por se tratar de violações graves de direitos humanos, e considerando a natureza dos fatos e o caráter continuado ou permanente do desaparecimento forçado, o Estado não poderá aplicar a Lei de Anistia em benefício dos autores, bem como nenhuma outra disposição análoga, prescrição, irretroatividade da lei penal, coisa julgada, ne bis in idem ou qualquer excludente similar de responsabilidade para eximir-se dessa obrigação, nos termos dos parágrafos 171 a 179 desta Sentença [...] [grifo meu]
Com essas omissões jurídicas e com a estranha concepção da esfera pública com mordaça, o jornal simplesmente distorce o que está em jogo para atacar o Ministério Público Federal. Ignoro o que os editorialistas da Folha entenderam do julgamento do Supremo Tribunal Federal na ADPF n. 153. Não obstante o arrazoado pouco razoável do jornal, os procuradores estão certos em afirmar que essa corte não apreciou devidamente a questão que hoje é trazida. Escrevi, em um trabalho que apresentei na Espanha, que houve um momento em que se discutiu a questão:
Ayres Britto, que foi o outro Ministro, com Lewandowski, que votou pela procedência (parcial) da ação, teve a oportunidade de fazer um aparte sobre os casos de crime continuado (o que inclui os desaparecimentos forçados), que não estão prescritos, ao Ministro Peluso. Este Ministro, no entanto, manteve sua posição contrária a tais noções básicas de Direito Penal.
Tratou-se apenas de um aparte, embora se tratasse, realmente, de um ponto essencial.
A CI não é composta apenas pela imprensa. Também são membros honorários da Comissão da Inverdade certos militares da reserva - que se manifestam com um notável esquecimento de si mesmos e das Forças Armadas brasileiras. O general Luiz Eduardo Rocha Paiva afirmou que ninguém pode dizer que Herzog foi torturado e assassinado.
No entanto, decisão do juiz Márcio José de Moraes, em 1978, condenou a União pela morte do jornalista. Sobre o assunto, anotei isto:
Tal era a cultura duplamente cínica em relação ao direito: não apenas criar uma legislação de exceção que feria garantias constitucionais e do direito internacional, mas também violar sistematicamente essa própria legislação de exceção.
As ações da polícia política no Brasil, pois, violavam sistematicamente a própria legislação da ditadura militar - razão pela qual o apoio institucional da Justiça Militar era tão fundamental para os "porões da ditadura", expressão que julgo inadequada, eis que a ideia de porão não sugere que nela estão inclusos os próprios palácios do poder.
Aqui, estamos no terreno do negacionismo puro e simples, sobre que já escrevi.
Vejo que esqueci de dizer, nesse ponto do trabalho citado, que o apoio dos veículos de comunicação à ditadura também foi fundamental, e exigiu a implantação de uma cultura jornalística cínica em relação à esfera pública. Talvez eu esteja agora a captar o que antes me fugira.
P.S.: O professor Vladimir Safatle, colunista de Folha de S.Paulo, escreve neste dia de 21 de março, refletindo sobre o editorial do dia anterior, que "É compreensível que o editorialista queira lutar para que o Brasil não vire prisioneiro de seu passado, alegando que tais fatos são 'página virada'." Não é o caso desse professor.
Excelente artigo, Pádua Fernandes. Essas páginas ainda não foram viradas, e como virá-las se não pudemos nem ler ainda.
ResponderExcluirObrigado. Parece até que não querem que as leiamos...
ResponderExcluirMas e os crimes da esquerda? E os assaltos, as bombas e os justiçamentos em nome de ditaduras mil vezes pior? Se for para revogar a lei da Anistia, seja a revogação ampla e irrestrita.
ResponderExcluirLPC.
Muito bom o seu artigo!
ResponderExcluirUm abraço,
Alberto.
Obrigado. Infelizmente, terei que continuá-lo.
ExcluirPois é: http://www4.uninove.br/ojs/index.php/prisma/article/viewFile/2318/1752
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