Avisaram-me de manhã que Millôr Fernandes, que admiro desde pequeno, quando o lia no extinto Jornal do Brasil, havia morrido.
Certa vez, surpreendi-me quando descobri que um conhecido, que vive da crítica literária, não considerava que Millôr fizesse literatura. Penso bem diferente - a literatura estava entre os diversos talentos do desenhista, tradutor, dramaturgo, jornalista e até, às vezes, poeta (muitos de seus hai-kais são apenas inofensivos, mas vejam este poema sobre a morte do tradutor, que Denise Bottmann hoje recordou). O extraordinário é que o reconheçamos nas mais diversas atividades, é que o identifiquemos pelo humor tão peculiar. Espíritos sisudos que vejam no humor algo de menos importante tenderão a diminuir Millôr.
Nesta nota para a blogagem coletiva Desarquivando o Brasil, lembro deste jornalista que criticou a ditadura militar e seguiu crítico a todos os governos, incluindo FHC e Lula, sem falar do imortal José Sarney, cuja obra em prosa ele soube analisar imorredouramente em textos que saíram no quadrado que ele tinha no JB, e que foram republicados no Diário da Nova República.
No jornalismo brasileiro, houve pouco tão audacioso quanto o Pif Paf, revista que foi fechada depois de apenas oito números. Millôr criou a revista um mês depois do golpe militar com cartuns dele, de Fortuna, Claudius, Jaguar, Ziraldo, textos de dele mesmo, Rubem Braga, Sergio Porto... O projeto gráfico, de Eugênio Hirsch.
A revista foi relançada em uma caixa, em edição facsimilar. O último número, na seção "Concurso Miss Alvorada", mostrava duas montagens fotográficas com Lacerda (Miss Carlota Corwina) e e Castelo Branco (Miss Castelinho): na primeira, viam-se duas mulheres, cada uma com o rosto desses dois políticos, lutando no chão; na segunda, de maiô, mais ou menos pacificadas. Corwina queixava-se de que o concurso para Miss Alvorada havia mixado depois que a Castelinho havia tomado o cargo com ajuda dela.
Em Pif Paf, os desenhos mais contrários ao regime eram os de Fortuna, mas foi Claudius que foi preso. Em um dos desenhos, vê-se uma prisão sendo erguida; o guarda com chaves comenta: "A frase repressiva parou. Estamos agora na fase construtiva."; em outro, um sujeito carregando diversos livros avisa que explicará a revolução; larga-os no chão, aponta dois revólveres e diz: "Foi assim."
Momentos tão geniais como esse obviamente impediram a revista de ter anunciantes. O que selou a revista, no entanto, foi o último texto do último número, na contracapa, em letras grandes, escrito por Millôr:
ADVERTÊNCIA!
Quem avisa, amigo é: se o governo continuar deixando que certos jornalistas falem em eleições; se o governo continuar deixando que determinados jornais façam restrições à sua política financeira; se o governo continuar deixando que alguns políticos teimem em manter suas candidaturas; se o governo continuar deixando que algumas pessoas pensem por sua própria cabeça; e, sobretudo, se o governo continuar deixando que circule esta revista, com toda sua irreverência e crítica, dentro em breve estaremos caindo numa democracia.
Era o número de 27 de agosto de 1964. O aviso foi levado a sério e o governo respondeu com um não a todas as possibilidades levantadas. O Pasquim nasceu depois, com a experiência desse enfrentamento com os militares.
O texto, conta Millôr em Trinta anos de mim mesmo, resultava na "maior gargalhada" que ele havia conseguido "provocar neste país", quando dito por Vianinha na peça Liberdade, Liberdade. A mesma gargalhada merece quem ainda afirma que o regime instaurado pelo golpe de 1964 era "democrático" antes do AI 5.
Liberdade, Liberdade, por sinal, foi uma peça que ganhou críticas à direita e à esquerda; entre os crimes contra a liberdade mostrados no palco, estava o processo contra Brodsky na União Soviética - condenado por ser um poeta não permitido pela burocracia daquele país. No verbete "Partido Comunista" em Millôr definitivo: a Bíblia do Caos, lemos que ele "não permite que qualquer dos seus quadros seja criticado em nenhum jornal. A direita não tem como evitar. A direita tem má consciência. A esquerda nem sabe o que é isso."
A ditadura, porém, era de direita; ele, que foi preso, com todos os editores do Pasquim (foi o jeito mais sutil que o governo federal achou para fechar o jornal que, no entanto, sobreviveu), bem pôde escrever, em O Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr, "Numa democracia todos são (presumivelmente) iguais perante a lei. Numa ditadura todos são iguais perante a polícia."
Ele, que havia vivido na ditadura de Getúlio Vargas - tornou-se jornalista aos quatorze anos, em 1938 - pôde testemunhar e comentar as diversas oscilações políticas no Brasil. Em 1960, sua peça Um elefante no caos foi premiada pela Associação Brasileira de Críticos Teatrais, apesar de ter havido críticas em contrário (acho que ela é um interessante fracasso artístico). A peça, escrita em 1955, tanto parece prever a Revolução Cubana quanto a ditadura militar brasileira.
Espíquer - Atenção! Atenção! Com a decretação da Lei Marcial, às treze horas e dezoito minutos de hoje, todos os elementos terroristas do país estão sujeitos à pena de morte. Todas as pessoas pogonóforas, isto é, com barba na cara, que não pertencerem ao Partido Terrorista, devem raspá-la imediatamente para evitar equívocos fatais. Dois cidadãos pacíficos, porém barbados, já foram mortos por engano.
Outra advertência, que antecipava a que escreveu no Pif Paf. Os opositores são considerados terroristas, e o regime mata também por engano - afinal, o engano é sua própria natureza política. Em 1971, a peça foi proibida pela censura. Ele escreveu, em nota de 1978 conservada na atual reedição pela L&PM: "Os dons de previsão do autor, ao que parece, deram para que criticasse até as mazelas de um regime que ainda não existia. Ou serão sempre as mesmas?"
A pergunta ainda poderia ser feita, em razão de continuidades de um autoritarismo social renitente. No quadrado do JB em oito de abril de 1985 (republicado no primeiro volume do Diário da Nova República), ao lado de um desenho que combina um autorretrato com formas geométricas, escreveu apenas esta indagação: "Como eu nunca vivi numa democracia, de repente me pergunto: 'Deus do céu, e se democracia for isso mesmo que está aí?'"
Sarney era o que estava aí, e continua aqui, tendo sobrevivido a seu mais ilustre crítico literário. O terceiro volume do Diário da Nova República republicou toda a série sobre o Brejal dos Guajas (a equivocada novela de José Sarney), que também pode ser lida nesta ligação. Em um dos momentos, ele mostra que Sarney erra até mesmo o número de eleições que tinham ocorrido, e ressalta: "Ribamar está falando da outra ditadura, 1930/45, anterior à dele, 1964/85." Ora, esta democracia também é dele, que voltou a ser Presidente do Senado Federal e continua a dar as cartas no Ministério de Minas e Energia, agora pela interposta pessoa de Edison Lobão.
Voltemos à ditadura militar, aproveitando que as figuras são as mesmas. O Pasquim tanto fazia críticas frontais quanto indiretas. Em janeiro de 1973, Millôr desenhou um "Vestibular Pasquim", com questões sobre diversos assuntos. Eis a pergunta sobre literatura: "Apesar de cego de um olho e português ele percebeu que se não salvasse o manuscrito dos ............ o pessoal nunca ia saber que ele tinha escrito aqueles versos sensacionais: 'A disciplina militar prestante/ não se aprende, senhor, na fantasia,/ mas vendo, tratando, e pelejando'." Isso foi republicado no volume II de O Pasquim: Antologia. Uma das questões trata Machado de Assis como se o grande escritor mulato tivesse sido racista (o desenho mostra-o expulsando uma criança negra), absurdo que nos faz lembrar de certas limitações intelectuais e políticas de Millôr.
No volume I da antologia, temos o curioso texto de julho de 1971, "Negros homossexuais mutilados X judias lésbicas sexagenárias", vemos o crítico à ditadura militar perdido em relação às reivindicações de minorias e às questões de gênero. Seu humor tornou-se canhestro, era óbvio que ele não estava confortável diante desses problemas: "[...] com o aparecimento insofismavelmente charmoso dos inúmeros poderes do mundo atual O Poder Negro, Estudantil, Feminino, Homossexual, Ecológico, Artístico, Musical, Desportivo e Infantil, onde é que sobrou espaço pra gente arriscar, seguro, um palpite triplo? Quem se acha tão sábio que tenha coragem de casar dois cruzeiros nessa perspectiva histórica? Quem sabe onde está a zebra do páreo?" Nessa loteria, Millôr não soube tão bem como jogar, talvez por encará-la como simples jogo.
Fábulas fabulosas é um livro muito divertido, com momentos profundos, porém o meu preferido é Todo homem é minha caça, de 1981. No posfácio, ele escreve que, embora fosse uma coletânea de "textos escritos através dos anos", "como quase todos os meus livros", ele tinha uma "organicidade", um "sentido geral" que ele sempre buscava. No caso, o cinismo diante do homem, que ele define nesse livro, após as conceituações de Platão ("Um bípede implume") e Dostoievsky ('Um bípede ingrato"), como "Um bípede inviável". Alguns dos textos referem-se à ditadura.
O Guru do Méier comete um erro de grande magnitude no texto "A estrela sobe", que antevê uma queda iminente do astro que era Lula (mas como foi engraçado ele, décadas depois, desenhar Lula, já Presidente da República, dizendo que não podia deixar a corrupção nas mãos dos impolutos). Outros são certeiros. Termino esta nota com a charada que ele deixou sobre Francisco Campos, o Chico Ciência:
Ultima ratio regum - No mundo ocidental (pelo menos) não se faz Justiça sem latim. Uma impossibilidade. A frase citada quer dizer "o último argumento dos reis", isto é, o canhão ou a força. Que são, também, os derradeiros argumentos da Justiça.
Por falar nisso: ganha uma lata de pessegada quem disser o nome do jurista que, em 1964, repetiu primeiro (pela milésima vez na história!): "Uma revolução justifica a si mesma".
Belo texto, Pádua. Lembrei aqui, na leitura, que no pós-ditadura o Millôr fez parte da redação da revista "Bundas",de efêmera duração, que tinha aquele belo slogan: "Quem mostra a bunda em Caras não mostra a cara em Bundas".
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