O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Medeia sem feitiço, Cherubini esquartejado, a OSB hoje

A política de desabrigo que a Orquestra Sinfônica Brasileira vem sofrendo colheu frutos: estava há alguns anos sem a ouvir, e não estava preparado para fazê-lo no estado em que ela se apresentou tentando interpretar Medée, de Cherubini (mais conhecida na sua versão italiana, Medea). Trata-se de uma grande ópera, admirada até mesmo por Brahms, porém nada fácil para os intérpretes, inclusive para a orquestra. Lembremos que, em abril, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, tentou desferir-lhe o golpe de misericórdia retirando a verba da OSB, mas voltou atrás diante da má repercussão da decisão.
Não é estranho que orquestras incluam em sua programação óperas quando elas possuem uma parte orquestral importante, como é o caso desta obra de Cherubini. Era uma apresentação em concerto da ópera, isto é, sem encenação. Quando isso ocorre, os cantores geralmente estão com suas partituras e as consultam; quando a ópera é encenada, isso é impossível.
Dia 19 de dezembro de 2013, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, foi apresentado o espetáculo, regido pelo argentino Carlos Vieu. Na verdade, ele deveria ter sido cancelado. A propaganda informava que a grande soprano brasileira, Eliane Coelho, iria cantar o difícil papel (sempre associado a Maria Callas), na versão original, com diálogos falados e não com recitativos, e que seria apresentada uma nova edição crítica, completíssima, inclusive com trechos cortados pelo próprio compositor de uma ária do terceiro ato para a protagonista, "Du trouble affreux" (em italiano, "Del fiero duol"). Ouçam-na em italiano, com Callas, regida por Vittorio Gui (muito superior a Leonard Bernstein nesta música) em 1953: http://www.youtube.com/watch?v=Vc2zQ5vO3nw  Em francês, com Mireille Delunsch: http://www.youtube.com/watch?v=m15eb5LBH9w
Vejam a notícia na BBC: foram pesquisadores das Universidades de Manchester e Stanford conseguiram, neste ano, via raios X, ler o que havia sido apagado dos originais da partitura:  http://www.bbc.co.uk/news/entertainment-arts-22910052
Nada disso ocorreu. Eliane Coelho não cantou, segundo o diretor artístico da OSB, em razão de uma crise alérgica, e não só esta ária foi completamente omitida, como aproximadamente um quarto da ópera desapareceu.
Com uma impressionante falta de profissionalismo da OSB, não havia substituta, e duas sopranos foram convocadas para salvar o espetáculo: Tati Helene e Veruschka Mainhard. O diretor artístico afirmou que Helene cantaria o primeiro e o terceiro atos, e Mainhard, o segundo.
Ao fazer esse anúncio, a OSB tentou enganar o público: Helene nada fez no primeiro ato exceto cantar sua ária. Todas as suas partes faladas desapareceram e o belo dueto com Jasão, que encerra essa parte, foi completamente omitido. De qualquer forma, duvido que o soprano lírico dessa cantora fosse capaz de enfrentar confortavelmente este trecho: http://www.youtube.com/watch?v=UJrHfqwgDlc
De fato, quem quisesse seguir a história pelos restos amputados que foram apresentados, nada entenderia. Toda a entrada de Medée foi omitida; de repente, ouviu-se Creonte mandando-a embora sem que ela se apresentasse e ameaçasse Jasão e  Dircée (Glauce, em itlaiano). Ela simplesmente cantou sua ária, em que acusa Jason de "Ingrat!" (em italiano, "Crudel!"), que, nessa ocasião, virou quase uma ária de loucura, pois fizeram o tenor sair do palco e a soprano ficou falando sozinha.
Quando Tati Helene, com sua bela e doce voz, totalmente inadequada para o papel, e seu fraquíssimo francês (pronunciou, por exemplo, "où", onde, como "ó") deixou o palco e a orquestra, com toda cara-de-pau, começou a atacar o prelúdio do segundo ato, omitindo todo o final do primeiro, ficou claro que a ópera iria ser apresentada aos pedaços. O público iniciou a debandada - o teatro estava mais ou menos vazio no fim da embaraçosa récita.
Quando Mainhard entrou, sua parte falada foi omitida. Nenhuma das duas sopranos que assumiram a Medeia pronunciou uma sílaba dos diálogos falados, o que foi estranho, pois não precisariam aprender a música e poderiam apenas ler o texto. Talvez a língua francesa tivesse sido o problema para elas.
Mainhard começou a solfejar sua súplica a Creonte, nem sempre acertando as notas, as entradas e as palavras. Ela continuou lendo o papel, nem sempre acertando (não vou atacar a soprano; provavelmente era uma leitura à primeira vista e, de qualquer forma, não era um papel para sua voz) até o fim do ato, quando o coro, que a OSB indicou como uma formação anônima (http://issuu.com/psleandro/docs/livreto_bimestral_2013_v), mas era composto por cantores do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, finalmente cantou bem (a entrada dos naipes femininos no primeiro ato foi desencontrada, e outros problemas de conjunto aconteceram ao longo do primeiro ato; aparentemente, faltaram mais ensaios). Por sinal, é muito bonita a escrita para coro dessa ópera.
Fez-se o primeiro intervalo. Decidi ficar para ver o que restaria do terceiro ato. Não muito.. Todas as partes faladas foram omitidas, a famosa ária foi apagada, e a história recomeça do ponto em que a protagonista, que já realizou sua feitiçaria, decide enfim matar os próprios filhos. Nesta partitura, foram cortadas o equivalente do trecho das páginas 148 a 161: http://javanese.imslp.info/files/imglnks/usimg/0/07/IMSLP96399-PMLP49825-cherubini_medee_2_act3.pdf.
Toda a hesitação de Medeia foi apagada, bem como o envio do presente enfeitiçado à noiva de seu marido. Tati Helene, com voz bastante inadequada para a parte, tentou cantá-la, mas, nessa ópera, ela só poderia fazer a Dircée, e talvez a cantasse melhor do que Maíra Lautert, que cantou aspirando as partes de coloratura de sua ária no primeiro ato.
Depois da famosa invocação às fúrias, que, como todo o papel, exige que a cantora lance mão dos extremos, do grave e do agudo, mostrando Helene desprovida do registro grave para cantá-lo, o coro, Jason e a serva, Neris, ficam sós no palco até que Medée reaparece para sua fala final. Então, apareceu Mainhard, muito mais segura em relação ao texto musical, porém não mais adequada para cantar o papel, dramático demais para sua voz.
O que restou? Savio Sperandio, com sua bela e voluminosa voz de baixo, cantou muito bem o papel de Creonte. O tenor, Charles Cruz, cantou com um ótimo francês o papel de Jasão, e lamentei não ter podido ouvir o final do primeiro ato com ele. Kismara Pessati, que já ouvi em Debussy e Gluck, cantou o papel da serva, Neris; sua grande ária no segundo ato, depois de uma introdução orquestral pouco feliz, deveria ter sido seu grande momento, mas o agudo da conclusão em "jusqu'à la mort" não foi confortável.
As intenções do maestro, Vieu, pareciam-me boas, mas não encontravam muito eco na orquestra, ou apenas o eco. Enfim, o feitiço não se fez, e parte de uma plateia, já esvaziada, ficou para aplaudir o esquartejamento de Cherubini.
Nessa mutilação musical, temos o silenciador efeito das feitiçarias das políticas culturais do Rio de Janeiro de hoje.


8 comentários:

  1. Estimados,
    Realmente o escrito reflete a realidade.
    Somos obrigados a nos curvar diante dos fatos narrados, mas, por outro lado, temos que levar em consideração o fato de que artistas colocaram suas caras à tapa para poder realizar um espetáculo ao invés de ter que cancelá-lo.
    As menções sobre a má pronúncia da língua Francesa, é verdadeira, e durante o intervalo eu comentei com amigos exatamente sobre como é complicado para um cantor de ópera se tornar famoso, pois para tanto necessita dominar vários idiomas, até porque a "musicalidade" dos fonemas em cada língua faz parte da sonoridade daquilo que está sendo cantado.
    Prefiro ter na memória a beleza da música de Cherubini, e poder inclusive mencionar que a abertura da ópera é tão bela que mais parece um movimento de uma imponente sinfonia.
    A mutilação da ópera foi dolorosa e ao mesmo tempo confundiu por demais aqueles que não conhecem a história, o que é lamentável, inclusive o painel com as traduções demorou muito a ser baixado, aumentando o desconforto.
    Agora, eu atribuo louvável e honrosa a atuação do maestro argentino Carlos Vieu que conseguiu um verdadeiro milagre, tendo inclusive cantado de soprano para poder ajudar a Medea Mainhard, que, coitada, visivelmente estava cantando com uma leitura inicial do papel.
    O coro teve seus momentos de altos e baixos, mas não comprometeu.
    A orquestra, tenho por mim, respeitou o esforço do maestro e correspondeu dentro do seu limite à dinâmica que este vigorosamente tentava impor à ópera.
    Referente ao tenor uruguaio, podemos dizer que tem um timbre bonito, e uma boa projeção da voz, mas, falta-lhe a respiração mais compassada para não lhe faltar ar nos agudos sucessivos.
    Enfim, espero que o meu amigo Denilson Almeida, que estava ao meu lado, possa ter apreciado algo novo, tanto para mim, quanto para ele, dentre todos os incidentes que se sucederam antes e durante a apresentação.

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    1. Prezado Graicer,
      obrigado pelo comentário e por lembrar do problema da tradução. De fato, quem precisava dela para entender o que estava ocorrendo (tarefa muito difícil de qualquer forma, tendo em vista os inúmeros cortes), ficou em boa parte do espetáculo a ver navios, e sem argonautas.
      Abraços, Pádua.

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  2. Ótimo texto. Estive presente e vivenciei a mutilação da excelente música de Cherubini. Deveriam ter cancelado.
    Gostaria de pedir um favor: seria possível fornecer o link para a partitura do 1º e do 2º atos? Grato. Luis Moschini

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    1. Prezado Luis Moschini,
      obrigado; basta baixar as partituras aqui: http://imslp.org/wiki/M%C3%A9d%C3%A9e_(Cherubini,_Luigi)
      Abraços, Pádua

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  3. Pádua, uma história trágica...
    E sobre o comentário acima, da necessidade de dominar vários idiomas, isso não me parece ser necessário: todo cantor aprende a cantar decorando sons, sem precisar entender palavra a palavra o que está sendo cantado.
    Mesmo para as partes faladas, com ensaio, funcionam bem.
    O problema aí, me parece, foi o apontado por você: a falta do plano B.
    Pouquíssimo profissional.

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    1. Pois é, Renata. E a orquestra também estava precisando de ensaio. O engraçado que vi esse concerto anunciado meses antes, e resolvi assistir por causa da obra, do soprano e do tenor que estava anunciado, o Martim Mühle, que cantou muito bem o Siegmund em São Paulo. Não sei por que ele foi substituído.

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  4. Concordo plenamente com a critica. Em qualquer montagem de opera ou concerto é fundamental a existência de doppione. Nada justifica o fato de um cantor subir ao palco despreparado com a desculpa de que só teve 12 horas para aprender o papel. Se aceitou cantar, deve estar consciente da critica que receberá. Nada justifica o fato não se saber as partes, não aceitassem tal coisa, isso nao é profissional. A produção que encontrasse uma cantora pronta em outro lugar. Um cantor que aceita um trabalho deve conhecer o papel e ter domínio da pronúncia do idioma, se um cantor não tem no repertorio tal papel não adianta aprender encima da hora, isso não é profissional.

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