O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Poesia e tremor: Leonardo Gandolfi e a respiração como terremoto

O poeta português Miguel Cardoso, em Os engenhos necessários (Lisboa: & etc, 2014), entre outras passagens inquietantes, escreveu:
O que queria
o que queria mesmo
era meter agulhas na boca
riscar o disco rígido do riso
e com calma
rebentar escalas de richter
no meio das planícies

Também questão de sismografia íntima é Escala Richter (Rio de Janeiro: 7 letras, 2015), terceiro livro de poesia do poeta, professor e ensaísta brasileiro Leonardo Gandolfi. É até mesmo de esperar que poetas contemporâneos de países e continentes diferentes, mas afetados por crises com mais de uma semelhança (políticas de "austeridade", ascensão da direita, ataque aos serviços públicos, a catástrofe como princípio de governo) encontrem essa metáfora geológica para o que os aflige. No Brasil, pode-se lembrar, recentemente, de Fabio Weintraub, no seu último livro, Treme ainda (São Paulo: Editora 34, 2015), assim como Eduardo Jorge e sua casa a tremer em A casa elástica (Minisséries) (São Paulo: Lumme Editor, 2015): abalos simultaneamente individuais e coletivos.
Nos personagens - desajustados, desamparados, à espera de mais uma improvável chance - da poesia de Fabio Weintraub, temos antes a dimensão social desse tremor. Não em Gandolfi, em que a escala é predominantemente familiar e íntima, em atmosfera bastante diferente também de Eduardo Jorge, que atravessa no livro diferentes culturas e aeroportos e faz da casa, inesperadamente, um princípio da errância.
Em Gandolfi, a tensão entre "alta" cultura e cultura popular, e a dificuldade de comunicação, duas linhas tão presentes em A morte de Tony Bennett (São Paulo: Lumme Editor, 2010), são retomadas com intensidade em Escala Richter. A epígrafe, de Leonard Cohen, "There is a crack in everything", é seguida pela primeira parte, apropriadamente chamada de "Insert coin". A moeda que é inserida na fenda, ou, talvez, na falha que existe em tudo, sofre diversos giros ao ser lançada nesta seção.
Giros do passado familiar ("Seu pai trabalhava na Casa da Moeda/ [...]/ Ele mostra a data na moeda e diz/ abre a mão, segura, é da sua idade.", p. 12), distância de classe ("Ele vai pedir uns R$30,00./ Deixa pedir, a gente finge que não ouviu.", p. 16), a tensão com a cultura de massas ("[...] Você olha a data e os rostos/ cunhados de Didi Dedé Mussum Zacarias./ Se isso fosse mesmo sério, alguém perguntaria/ cara ou coroa?", p. 17), dificuldade de relacionamento ("e por ora transferi meus pertences/ [...]/ para a bolsa de Isolda, exceção feita / à moeda da sorte. [...]", p. 21).
Essa moeda do passado familiar e da cultura de massas (tratada com humor: Roberto Carlos está tão falecido quanto Manuel Bandeira neste livro) vai terminando seu giro com versos descritivamente cada vez mais curtos; vê-se (mas não a amada Isolda, que já saiu sem parecer atinar com as preocupações do narrador) o túmulo do "Mestre Athayde 1762-1830" na igreja em Mariana com uma "fenda na madeira por onde passariam dois dedos" (p. 26):
Cara no chão, a moeda com as efígies de Didi Dedé
Mussum Zacarias e a data de 1981 corre
lentamente pela madeira carcomida, campa 94
igreja de São Francisco Mariana, corre
e gira em círculos progressivamente menores
Didi Dedé Mussum Zacarias, campa 94
madeira carcomida, a moeda gira
progressivamente em círculos
menores em cujo centro
último e vertical está
a fresta por onde
Athayde ainda
respira.

Não sabemos se a moeda, ao finalmente cair, vai sufocar o que resta do fôlego do artista, ou se, em espécie de telefone do passado, ela logrará alguma espécie de comunicação quando passar pela fresta. Durante o livro, essa resolução nunca acontece, ficamos em suspenso. Nesse sentido, a fenda na madeira também é uma falha, uma fratura geológica, e o tremor não termina. Em poema da seção "Kansas", descreve-se a descida através das camadas da terra; "ferro e níquel" em estado líquido "[...] do km 3003/ até o 5240 [...]"; "Daí em diante dizem/ o melhor é ir devagar." (p. 42). Trata-se, abertamente, de uma poética.
A tensão entre cultura de massas e "alta" cultura (vejam a troca de Cecília Meireles pelos Trapalhões na página 15) perpassa as outras seções do livro: o Homero via Samuel Butler em "Piquenique", o filme "O mágico de Oz" em "Kansas" (publicado autonomamente pela mesma editora de Escala Richter na coleção Megamíni), o "Peter Pan" em "O crocodilo", o Drummond em "A canção de amor de J. Pinto Fernandes" (em que se parece ler um final não edificante para a célebre "Quadrilha").
Uma das originalidades de Gandolfi é fazer com que seus poemas nunca se esgotem na questão metalinguística, pois a todo tempo os poemas revelam perdas e problemas pessoais, especialmente a morte do amigo (nomeado como um autor brasileiro contemporâneo que se matou há poucos anos, Rodrigo de Souza Leão) em "Kansas". O filme "O mágico de Oz" é relido como uma obra sobre a morte, bem como "Blade Runner" e seus replicantes. Em nível coletivo, a morte do amigo é um dos sinais da crise de sua geração: "Como muitos de minha geração/ sou um ás em projetos a curtíssimo prazo." (p. 44).

Essa tensão relaciona-se diretamente com a dificuldade de comunicação (tema tão drummondiano). É curioso ver como ecoa em Escala Richter a citação que aparecia em A morte de Tony Bennett de passagem do escritor português Carlos de Oliveira: "[...] 'É nas zonas/ escuras do círculo que decorrem as metamorfoses'." (p. 58). O trecho é atribuído, no poema "Debret & Rugendas", do segundo livro de poesia de Gandolfi, a ninguém menos do que ao camundongo Mickey. No livro mais novo, a passagem poderia ter sido, aventa o narrador, o que a adolescente turista dissera a respeito da fresta de Athayde, em vez de "É para Athayde respirar melhor" (p. 26).
Por que Mickey? O livro de Carlos de Oliveira chama-se Aprendiz de feiticeiro, e a conhecida peça sinfônica homônima de Paul Dukas tornou-se numa das histórias do filme Fantasia, dos estúdios Disney, em que o aprendiz é personificado pelo camundongo.
A metamorfose da autoria do texto e de seu registro - de citação literária para a fala de uma adolescente (ou, no outro livro, de personagem de Walt Disney) - retiraria o texto da obscuridade, garantiria sua comunicação? Nada mais certo. O que importa é que o poema encontra sua atmosfera, sua respiração, nessa ambiguidade. Permito aqui lembrar de passagem da dissertação de mestrado de Leonardo Gandolfi (Mundo comum e povoamento da paisagem - Ler com O aprendiz de feiticeiro de Carlos de Oliveira), uma análise desse mesmo livro de Carlos de Oliveira. Num ensaio dessa obra, o autor português fala de contos populares que estão condenados "a morrer como arte alada e fluida que vai de narrador em narrador, de metamorfose em metamorfose", e Gandolfi faz notar que se trata de uma "crítica à mobilidade que os textos ganham quando disseminados pelo ato de leitura" (p. 32), especialmente quando os "protocolos de leitura" não "admitem ambiguidade" (p. 33), o que ocorreria no caso, que Carlos de Oliveira menciona, da Constituição portuguesa.
A poesia de Gandolfi, que certamente não é um texto jurídico (gênero cheio de obscuridades, deve-se lembrar), respira exatamente na ambiguidade, que entra pelas frestas de discursos que parecem tão diretos e banais, ou tão cotidianos quanto as "demolições a médio prazo" do Iphan (p. 14) e programas infantis de tevê. O tom deliberadamente prosaico do livro e o uso da cultura popular não são meras máscaras que o autor veste, portanto, mas as próprias condições de o poético instaurar-se na sua (aparente) negação. Dessa forma, o poeta pode assumir como sua a citação de Leonard Cohen com que termina um poema da primeira seção, "there's a crack in everything/ that's how the light gets in." (p. 19).
Alberto Pucheu escreveu a orelha do livro e a orientou pela autodefinição de Gandolfi como poeta "pilha fraca". Creio que fez muito bem, pois é de obscuridade, ambiguidade, a luz que a poesia de Gandolfi infiltra nos discursos. Não se trata de um farol; afinal, esta poesia não indica terra firme.
O livro encerra-se com outra seção sobre separação ("Sem título, 2012"; em "Insert coin", a separação parece iminente); a mala que foi usada nas viagens do casal que se separou há "10 minutos" agora tomba para um lado e para o outro passando pelas "pedras portuguesas mal encaixadas" até que o seu dono consegue chegar a um táxi; na "rua recapeada", no entanto, "a mala não só tomba para o lado/ como dá meia-volta sobre si mesma." (p. 65).
Depois desses abalos, que tornam o próprio chão da cidade instável para o protagonista levar o que lhe coube da partilha, vemos uma série de mal-entendidos com o motorista ("[...] o velho é surdo ou quase", p. 66), em que não sabemos quem é mais poeta: o passageiro, ao não ser entendido, ou o taxista, a inverter os sentidos das frases e das ruas. A dificuldade de comunicação é retomada em registro bem prosaico e o livro se encerra com uma citação bastante irônica de Augusto de Campos, que nada poderia comunicar no contexto.
Os abalos desse livro também são o da poesia que se separa desse universo dos fãs de Roberto Carlos e Michael Jackson, dois artistas citados no livro, ou que com ele não logra comunicar-se, embora dele se aposse e o exija? Ou sua forma de comunicação, sua respiração, é um sutil terremoto que abra as falhas nos discursos, a exigir uma afinação infinitesimal da escala Richter?

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