O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Cânones, harmonia e rebelião: "Música e Direito" de Mônica Sette Lopes

Em abril de 2011, eu estava em uma livraria no centro de São Paulo quanto tive que ouvir (a indignação manifestava-se quase em brados) um cliente falando com o vendedor jovem sobre dois poetas vivos que também são cronistas; de um deles, o vendedor jamais havia lido a poesia. O cliente pegou um livro na estante e leu alguns versos, realmente ruins: "Isto é poesia? E eles são elogiados nos jornais! Se eles são elogiados, imagina o resto! Por isso prefiro ficar com Drummond." O vendedor nada retrucou. Afastei-me, então, para não ouvir o resto da conversa.
Por que aquele cliente está errado? Porque os autores contemporâneos mais festejados e conhecidos raramente são os melhores; não só hoje, mas em todas as épocas. Deve-se procurar o melhor nas frestas, nos intervalos. Creio que o papel do crítico é fazer essa busca.
Na verdade, com essas considerações, tento justificar minha falha em somente nesta semana ler Uma metáfora: Música & Direito, que Mônica Sette Lopes publicou em 2006 pela LTr. Eu havia, porém, escrito uma resenha sobre o livro que ela publicou em 2010 com Bruno Amaro Lacerda, Imagens da Justiça.
Bruno Amaro Lacerda, professor da UFJF, escreveu nesse livro principalmente sobre artes plásticas. Sette Lopes, da UFMG, abordou a literatura, o cartum e a música. Cito um trecho da resenha:

Em “Nas ondas do rádio: um retrato em letra de forma” conta-nos as descobertas e os percalços da interessante experiência da autora em criar e conduzir o programa radiofônico Direito é música (acessível em e ) que relaciona o direito a essa arte. A autora explica a escolha de autores da canção popular (o preferido Chico Buarque, o arriscado Bezerra da Silva, The Beatles e outros) e da música erudita (Ravel, Gilberto Mendes e sua peça in memoriam Jorge Peixinho, Beethoven etc.). Essa importante iniciativa possui um propósito de ampliação do ensino jurídico para fora das fronteiras da academia e do dogmatismo: “Ensinar o direito, portanto, exige a consciência desta multiplicidade na destinação da linguagem.” (p. 178)

O direito, com suas pretensões a ciência, tem a ganhar em ser aproximado à arte. Veja-se o blogue da internacionalista Deisy Ventura, que também trabalha com arte, direito e o ensino jurídico, Educar para o mundo. Eu mesmo já trabalhei com autores tão diferentes quanto Gilberto Mendes, Hildegard von Bingen, João Bosco e Aldir Blanc, Bach, Kafka, Alberto Pimenta em sala de aula.
O livro de 2006 de Mônica Sette Lopes busca várias aproximações e deve ser lido e ouvido com um espírito de aventura. Ouvido, também: acompanha-o um disco do trio de violões Micrômegas, que inclui exemplos musicais do canto gregoriano até Villa-lobos, Laurindo Almeida e dos próprios integrantes do grupo de câmara, Guilherme Koeppel, Hamilton Oliveira e Ricardo Novais.
Pode-se ler, por exemplo, sobre as suspeições de Agostinho em relação à música e à justiça humana; a questão do texto e da interpolação na música e no direito medievais. Sobre essa época, ela trata também da questão do direito de baixo para cima (o que se diferencia dos que insistem em ver o direito como uma série de leis aprovadas de cima para baixo):

É difícil estabelecer uma ideia exata do que era a visão popular do direito ou da música que era feita e executada nas ruas e nas casas. A força dos documentos que chegaram aos dias de hoje não é capaz de reproduzir isso com precisão, o que não é tampouco feito pela obra consolidada dos glosadores e dos pós-glosadores.
Há algo no som das ruas, nas vozes das ruas, nas palavras que exalam o cheiro das ruas, que teima em não ser visível para o papel. [p. 58-59]

O livro segue adiante. A analogia entre as situações de Suarez e Palestrina é esclarecedora, nos cânones (termo comum tanto ao direito quanto à música - quando o explico a meus alunos, sempre se surpreendem, porque não o conhecem em nenhum dos campos!) da contenção e do centralismo.
Outras analogias interessantes surgem no percurso, até chegar ao século XX, que é caracterizado como breve, segundo a visão de Hobsbawn. É curioso comparar Schönberg e Kelsen - afinal, são dois nomes produzidos pelo Império Austríaco e rejeitados pelo nazismo; dois téoricos judeus que, cada um a seu modo, buscaram a pureza em seu campo de expressão.
O livro antes levanta possibilidades do que as analisa. Levanta pistas, porém não as esgota - o que seria impossível, tendo em vista o largo recorte temporal e geográfico que é enfrentado.
Entre as sugestões, cito esta:

Na sua textura aberta é preciso interpretar o silêncio, o não-dito. A lei nem sempre soa. Na maior parte das vezes, ela apenas sussurra, acena, insinua-se num muxoxo. Na maior parte das vezes, o som reduz-se à percepção do silêncio, daquilo que foi dito às metades. A lei não dá todas as medidas da escala. Ela introduz uma pausa: quem define a extensão é o intérprete. [p. 131]
A autora refere-se então a Gadamer e Aristóteles, na mesma questão que citei aqui a propósito de julgamento do STF.
Nesse silêncio, pode-se entreouvir o murmúrio de rebeliões nascentes? Creio que sim, e isso deve ser feito desde o ensino, para que o estudante do Direito saiba que aprender sua ciência (?) não é decorar ou parafrasear leis e "doutrinadores", e sim, como o músico, recriar "a realidade com os artifícios de suas artes" [p. 149].

3 comentários:

  1. Sem dúvida, assim como o direito não é apenas o direito dos letrados (contrariando, de alguma medida, o historiador do direito português A. M. Hespanha), a música não pode ser apenas aquela canonizada pela erudição ou pela indústria cultural. Há um direito que nasce na rua (para lembrar o velho Lira Filho) assim como tem mais samba no som que vem da rua (para citar, contraditoriamente, dois cânones: Tinhorão e Chico Buarque).

    Para registro: gosto de trabalhar com Bezerra da Silva nas aulas de antropologia jurídica, em especial sobre a sensibilidade jurídica, mais-ou-menos nos termos de GEERTZ em seu famoso ensaio sobre o direito que se encontra no livro "O saber local". Também, a trilha sonora da peça "Arena conta Zumbi", para falar da pluralidade jurídica, desde Palmares...

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Prezado Ricardo Prestes Pazello,
    eu diria mais: contrariando a grande maioria do que se escreve sob a categoria "história do direito"... Na verdade, a pesquisa nesse campo exige um trabalho com as fontes enorme, que não pode se contentar em olhar o que previa o código civil de 1916 ou compilar pesquisa alheia - há alguns pretensos historiadores do direito que se contentam em selecionar trechos de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire (estes sim mergulhavam nas fontes)...
    "Arena conta Zumbi" é uma escolha ótima! Além disso, provavelmente muitos alunos não conhecem essa fase engajada da música brasileira - e a aula também servirá para abrir os horizontes político-musicais.
    Neste semestre, quando eu estava na Idade Média, Hildegard von Bingen me ajudou a ensinar a questão da cidade de deus. Como costumo mudar as músicas (eu queria que houvesse gravação do coral que Schulhoff escreveu a partir do Manifesto Comunista!), não escolhi ainda o que vou emrpegar para o século XX. Talvez "Um sobrevivente de Varsóvia" do Schönberg... Mas tenho que traduzir o texto.
    Eu lhe enviei uma mensagem por meio do Twitter; você leu?
    Abraços,

    Pádua

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