Acabei de dar uma aula (mal recebida) sobre "direito e justiça". Um dos textos com que trabalhei foi um parecer de 1975 do Ministério Público Militar, assinado pelo Procurador Ruy de Lima Pessôa, que foi difundido nos Estados pela rede dos DOPS.
Trata-se de um caso de fato exemplar de aplicação da doutrina de segurança nacional. A incomunicabilidade dos presos políticos, mesmo em relação às autoridades judiciais, é defendida pelo prcurador porque "[...] as instituições militares estão acima dos interesses individuais" e "[...] porque a salvaguarda dos interesses e objetivos nacionais tambem [sic] e mais do que nunca, estão acima dos interesses individuais."
Sob o arrazoado, estava o interesse de manter o prisioneiro sem acesso a advogado (apesar do Estatuto da OAB vigente na época), ao Judiciário e a nenhum outro canal que lhe permitisse ao menos avisar que havia sido detido, e queixar-se do tratamento sofrido no cárcere.
Há outros argumentos no parecer que reforçam o contexto da ditadura militar, e sua curiosa noção de justiça segundo a qual se deve restringir o acesso ao Judiciário (o que se coaduna com a falta de autonomia desse Poder na época), mas não tratarei deles aqui.
É típica da doutrina de segurança nacional a identificação dos "interesses e objetivos nacionais" com as corporações militares - elas encarnariam a nação, não se sabe com que título, salvo o dos fuzis. Ou algum vitalismo de louvor à guerra?
Para o autoproclamado reacionário Nelson Rodrigues, tínhamos uma pátria de chuteiras. Nelson Rodrigues Filho logo comprovaria que estávamos na pátria do pau de arara - o que faria o grande dramaturgo defender a anistia.
O argumento da identificação das Forças Armadas com a nação não era nada novo, por certo, e animava o pensamento dos juristas engajados no regime, como Miguel Reale.
Há algo de hobbesiano nesse sacrifício das garantias individuais em nome da segurança e nesse monopólio da razão pública nas mãos do Estado, bem como a noção de que a simples divergência política torna o cidadão (ou súdito, segundo Hobbes) inimigo.
Resta saber que tipo de "nação" (na verdade, Estado) é esta cujo interesse mor é a defesa, que está, ademais, largamente dirigida contra a própria população. Perguntemos aos povos do Xingu, por exemplo, mais representativos do que as corporações militares para explicar a questão.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
Pádua,
ResponderExcluirfiquei intrigado em relação ao fato de que sua aula foi mal recebida. O motivo foram mesmo as posições que você defendeu no post? Se sim, é assustador.
Um abraço!
É possível. Foi lá na UFRJ.
ResponderExcluirCaro Pádua,
ResponderExcluirDuro admitir que essa é uma das mais profundas razíes do constitucionalismo brasileiro, desde o discurso anti-liberal de Alberto Torres até a "democracia autoritária" de Oliveira Vianna.
A sua análise e desconstrução, como bem fazes, é papel fundamental a ser exercido para o combate às suas recomposições contemporâneas.
A constante, como ensinou Benjamim, são as vítimas.
Ab.
Samuel Martins dos Santos.
Obrigado. Tive de admitir essas facetas do constitucionalismo. Analisei um pouco essas raízes na minha tese - e neste textinho, em que lembrei de Oliveira Vianna a respeito da "oligarquia de sábios e filósofos, e não o domínio absurdo do Demos, o governo das maiorias populares": http://redalyc.uaemex.mx/pdf/934/93400515.pdf
ResponderExcluirAbraços, Pádua.
Valeu pelo texto,
ResponderExcluirTive a oportunidade de me aproximar do tema quando no mestrado em direito na UFSC.
Menos pelo marketing, mais pela apresentação, o resultado foi publicado pela Juruá em 2008 - Paradoxo na Primeira República no Brasil: entre a ordem jurídica e a identidade nacional.
Passando por Silvio Romero, Alberto Torres e Oliveira Vianna.
Percebo que no Brasil estudamos pouco o pensamento jurídico nacional, de qualquer modo no diálogo vamos compondo algumas peças.
Ab.Samuel.
Obrigado pelo comentário. Ainda não li, porém, o seu livro.
ResponderExcluirAbraços, Pádua