O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Literatura negra no Brasil: Francisco Maciel e o humano como impossibilidade

Ferreira Gullar tem um espaço semanal para resmungos na Folha de S.Paulo, alguns já coligidos em livro que recebeu o Jabuti de melhor ficção de 2007.
Nesse mundo ficional, paralelo ao das Cidades inventadas, de 1997, Gullar imagina que não cabe falar em literatura brasileira negra - foi seu tema em quatro de dezembro de 2011. Ele defende que a cor da pele não seria significativa para ler Machado de Assis e Cruz e Sousa, uma vez que herdaram formas europeias.
O poeta e cronista concede que a ideia de uma literatura brasileira negra seria uma boa intenção para valorizar escritores negros, mas argumenta que é desnecessária, pois todos já consideram Machado de Assis o maior escritor do país.
No Brasil em que moro, ocorre o oposto; sem querer tratar da situação de outros escritores negros e mulatos, que sofreram discriminação (Lima Barreto e Cruz e Sousa são exemplos clássicos), lembremos de Machado: justamente por ele ser o melhor escritor, a sua cor é negada - talvez a mais recente vítima de branqueamento que sofreu tenha sido esta propaganda da Caixa Econômica Federal. Essa atitude sórdida ocorre todos os dias, inclusive nas salas de aula.
Ademais, é falsear a literatura de Machado não ver nela as questões relativas ao negro no Brasil, como bem mostrou, entre outros, Eduardo de Assis Duarte com Machado de Assis afro-descendente, que já citei em artigo.
Esse professor e pesquisador da UFMG lançou Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica, em quatro volumes. Os sessenta e um pesquisadores que escreveram os ensaios críticos trataram também de autores vivos.
Estou longe de tê-la lido por completo (comprei-a recentemente, na Feira da USP), mas imagino que se trata de uma leitura que poderia inspirar ou, quem sabe, esclarecer Ferreira Gullar.
A crônica de Gullar gerou, entre diversas manifestações, um texto de Francisco Maciel, um de meus escritores brasileiros favoritos, que elaborou uma resposta acusando-o de leninismo. Não sei se é o melhor diagnóstico. É certo, porém, que o chamado Partidão tinha dificuldade em digerir reivindicações de minorias como os negros, as mulheres e os homossexuais. Contudo, quanto resta do antigo partido, que não conseguiu nem mesmo conservar o nome, em Gullar, amigo e admirador (da literatura) de Sarney?
Faço a questão, mas ela não é relevante para mim. Escrevo esta nota porque Francisco Maciel é objeto de um capítulo na antologia crítica Literatura e afrodescendência no Brasil, com toda justiça. Marcos Fabrício Lopes da Silva escreve sobre Maciel no segundo volume. O capítulo descreve os escritos que o autor publicou pela Estação Liberdade, o conto Entre dois mundos e o romance O primeiro dia do ano da peste.
Gostaria de ler Cavalos e santos, último livro de Francisco Maciel, no gênero poesia. Enquanto não o encontro, deixo aqui um capítulo de um artigo que escrevi em 2002 para o extinto periódico português Ciberkiosk. Um texto simples (nos outros capítulos, eu tratava de Bernardo Carvalho e de Hilda Hilst), mas que tem como objeto justamente o que Francisco Maciel acusa Gullar de não levar a sério: a importância de os negros elaborarem discursos sobre si mesmos.



FRANCISCO MACIEL: OS DISCURSOS DO NEGRO E DA IMPOSSIBILIDADE


Othello de Shakespeare bem pode ser a tragédia da apropriação de discursos: a peça começa com Iago e Roderigo falando sobre o protagonista, pintando-o com tintas nada lisonjeiras. A Brabantio, Roderigo define o mouro como “an extravagant and wheeling stranger/ Of here and everywhere” 11 (Ato I, cena I, versos 137-138). Othello, na cena dois do primeiro ato, apresenta-se com toda uma outra versão de si mesmo: “being/ From men of royal siege” (versos 21 e 22). Othello conquista Desdemona por meio do discurso: “It was my hint to speak - such was the process; [...] She’d come again, and with a greedy ear/ Devour up my discourse.” (Ato I, Cena III, versos 142, 149 e 150). Contar uma história significa despertar o amor: “if I had a friend that lov’d her,/ I should but teach him how to tell my story,/ And that would woo her.” (Ato I, cena III, versos 164-166).
Iago revela que sua estratégia será uma estratégia do discurso: “I’ll pour this pestilence into his ear” (Ato II, cena III, p. 345); como exemplo máximo, a falsa narrativa do sonho de Cassio, sendo o próprio sonho narrativa de um pretenso encontro com Desdemona.
Iago manipula os discursos sobre Desdemona, Cassio e Othello de tal forma que tais discursos passam a prevalecer, e Othello deseja vingar-se da suposta traição para não ser vítima do discurso alheio (“but, alas, to make me/ The fixed figure for the time of scorn”, Ato IV, cena II, versos 54-55). Desdemona, por sua vez, negando o adultério, diz a Iago que não poderia agir como uma prostituta pois mal poderia falar tal palavra: “I cannot say ‘whore’;/ It does abhor me now I speak the word;/ To do the act that might the addition earn,/ Not the world’s mass of vanity could make me.” (Ato IV, cena II, versos 162-165).
Ou seja: Othello e Desdemona estão comprometidos com discursos da verdade, e isso os levará à perdição; Iago, não; como um sofista, como um Foucault, ele quer destruir o desejo de verdade. A sua fala final “Demand me nothing. What you know, you know./ From this time forth I never will speak word.” (Ato V, cena II, versos 306-307) pode dizer mais do que o personagem não querer revelar a verdade sobre as suas ações; pode significar que simplesmente não há tal verdade, e isso faz de Iago talvez o mais perturbador dos vilões de Shakespeare.
Nesse sentido, o Otello de Verdi e Boito é muito menos interessante, pois o Credo, cantado no início do segundo ato - a melhor música de Verdi nesta magnífica ópera - , confere um motivo às ações de Iago: o pecado original (é mau o Deus que criou o homem) e o medo da morte e do nada (“La Morte è il Nulla”). O de Shakespeare, muito mais moderno do que o de Verdi e Boito, é um apóstolo do Nada. Pode-se dizer que ele menos queria atingir Othello, Desdemona ou Cassio do que a própria verdade.
No desfecho, Othello pede a palavra (“Soft you; a word or two before you go”, Ato V, cena II, versos 341) o faz menos para assegurar uma boa fala para o ator principal do que para confirmar que o negro é aquele que não detém o discurso. Othello pede para que reportem, ao fim, a versão dele mesmo. Apesar disso, ele morre como negro, pois deixa a sua história para ser relatada por discurso alheio; diz Lodovico “Myself will straight aboard; and to the state/ This heavy act with heavy heart relate.” (Ato V, cena II, versos 373-374). Othello morre sob um beijo – e como é lugar comum na poesia da época, beijos e palavras são excludentes 12.
O discurso do negro, pois, foi um silêncio na literatura até que a sua voz passou a ser ouvida. Que voz, porém, é essa?
É interessante lembrar da crítica de James Baldwin aos romances “enfurecidos” de autores negros, que apenas faziam reforçar a opressão por eles combatida 13; a literatura meramente engajada na causa negra não é suficiente como literatura e mostra-se pouco eficiente como panfleto. Não é o que faz Francisco Maciel.
Pela conhecida falta de visão do mercado editorial brasileiro, esse autor, um homem negro nascido em 1950, ficou inédito até os cinqüenta anos, quando a editora Estação Liberdade teve a iniciativa de publicá-lo: no ano de 2000, numa coletânea dos contos finalistas do Prêmio Julia Mann de Literatura, de que Maciel foi o vencedor com Entre dois mundos (que dá nome ao volume), e em 2001 com o romance O primeiro dia do ano da peste.
No conto Entre dois mundos, lê-se a história de um homem negro dividido entre a cultura alemã e a brasileira (não por coincidência, um dos eixos da história é a tradução de um poema de Rilke e a paráfrase desse poema feita por Vinicius de Moraes), entre a vida e a morte, e de um país - o Brasil - dividido entre o mito da democracia racial e o racismo institucionalizado.
As divisões se multiplicam: de onde é o personagem? “Daqui. De lugar nenhum. De qualquer lugar.” ele divide-se entre a Alemanha e a África, prisão e a liberdade, entre a Alemanha (o conto ecoa Rilke, Goethe, Heidegger, Enzensberger...) e a Alemanha (parte da colônia penal – não a de Kafka - onde ficava a “ralé da ralé da ralé”), Álvaro de Campos e o Cristo seqüestrado.
O mesmo universo ficcional aparece no romance. Também nesse livro irrompem referências à “alta cultura européia” e à brasileira, muitas vezes como paródia: o Blake duplo em “Ó Rosa, estás doente! - recita o Tigre” [p. 145]; o Heidegger de “O negro sai do Nada como um pênis que se ergue” [p. 22]; ao existencialismo: “O negro é um vazio que precisamos preencher.” [p. 25]. Num dos momentos mais divertidos do livro, a discussão entre marxistas e existencialistas converte-se num debate sobre a diarreia entre um francês e um alemão no continente africano: “através da diarréia, o homem transforma a si mesmo”; “Não é a consciência dos homens que determina sua diarréia, mas, pelo contrário, sua diarréia que lhes determina a consciência” [p. 32-3].
Ademais, Camus é convocado na própria noção de peste; Machado de Assis é reinterpretado como no exame da homossexualidade de Dom Casmurro no romance homônimo [p. 165-6], Valéry, presente também no conto Entre dois mundos, recebe algumas alusões; “o mar é um imenso cemitério de navios, um olho portentoso que olha, nada vê e não chora.” [p. 92]...
Por que todas esses autores? Nada de pedantismo: Francisco Maciel os alia a referências da realidade brasileira como forma de problematizar o multiculturalismo. Ademais, o mecanismo de citação é constitutivo deste romance, composto, na sua maior parte, de transcrições da obra de um autor-personagem.
O multiculturalismo no Brasil é posto em questão pela clara presença do racismo (“Racista?! Eu?! Não se trata de racismo, mas de qualidade de mão-de-obra.” [p. 154] ) e da tortura, institucionalizada como instrumento de controle social. A respeito da tortura, deve-se lembrar da ironia de um personagem chamado Burnier gritar “Tirem essas mãos de tortura de cima de mim!” [p. 130]; como se sabe, o brigadeiro Burnier planejou em 1968, ou seja, durante a ditadura militar brasileira, um atentado terrorista no Rio de Janeiro que causaria milhares de mortes, como pretexto para o assassinato de vários oposicionistas, o que não ocorreu porque o capitão Sérgio de Carvalho denunciou o plano de genocídio (destinava-se ao extermínio da oposição, de políticos a religiosos) 14.
O romance O primeiro dia do ano da peste corresponde à edição das obras do personagem Aloísio Cesário pelo personagem antropólogo louro chamado William, que não tinha interesse em literatura, e sim em cultura negra [p. 14]:

Pensava em defender minha tese sobre a presença do negro na literatura brasileira, mais propriamente na poesia brasileira. A literatura me interessava, não como fenômeno especificamente literário, mas sim como uma determinada faceta do fenômeno cultural. Era uma compreensão da cultura negra que me interessava.


Assim diz William, o pesquisador branco, alto, louro e de olhos azuis. Ou seja, algo próximo dos estudos culturais, uma postura colonialista: nega-se de antemão o valor artístico dos discursos pesquisados para avaliá-los tão-somente como manifestação de ordem antropológica.
William manifesta desde o início sua dificuldade em apreender a identidade de Cesário, que tem origem e atividades obscuras; interessa-lhe, sobretudo, a marca do negro. Até mesmo a namorada de William, negra, é considerada como objeto de pesquisa [p. 14].
Os próprios escritos de Aloísio Cesário apontam a fraqueza desse tipo de abordagem: “O negro está encurralado na autenticidade” [p. 22]. A obra de Cesário, apresentada no romance, e cuja desintegração é a história deste livro, ultrapassa o status de simples manifestação cultural da identidade negra, ou de denúncia contra o racismo, adotando uma orientação antiessencialista e de questionamento das identidades culturais. Pergunta-se ao personagem negro o nome e ele responde “Ninguém” [p. 69]. Em conto do personagem Cesário, homônimo do livro de Maciel, novamente há um personagem negro entre brancos, que desejam aprisioná-lo nesta categoria do outro, “o negro”: “Você é branca e quer me dar de presente uma consciência negra.” [p. 79].
Há, pois, em O Primeiro Dia do Ano da Peste, um irônico jogo especular entre o editor branco, o autor negro, que se opõem pela raça, pela sanidade mental e pelas diferentes concepções da literatura. Também aqui, estamos “entre dois mundos”.
Qual o significado da peste no romance de Maciel? Ela aparece no conto homônimo de Cesário, transcrito no romance, quando, na “Era Negra”, determinada raça, a dos iabluts, é combatida e acaba por refugiar-se num mundo paralelo (uma alegoria do apartheid da África do Sul e da política equal, but separate – o apartheid estadunidense); porém, com a separação, os iabluts “se tornaram venenosos e levarão a peste ao mundo humano” [p. 89] - conseqüências sociais do gueto.
Parece-me claro que a segregação e o preconceito são alguns dos significados da peste neste romance, e que o corolário da segregação, da “outridão”, é a loucura, tal como ocorre com o personagem principal do romance: “Igual e desigual, irmão e inimigo, empesteado e quilombita, ele agora vagueia na outridão absoluta” [p. 180].
Armadilha essa reproduzida por teóricos que negam a especificidade da literatura e, numa atitude grotescamente essencialista, querem simplificar a complexidade do humanos a um determinado número de identidades. Por conseguinte, Francisco Maciel realiza uma estrutura semelhante à que Cortázar empregou em “O perseguidor”, grande conto em que o biógrafo de um jazzista não compreende o músico biografado (o músico, na verdade, é o perseguidor; o biógrafo acha que já encontrou, por isso é incapaz de fazer arte) e fica mesmo feliz com a morte deste, pois ela lhe dá o final da biografia (é verdade, porém, que o romance de Maciel vai muito além do conto de Cortázar no tratamento da questão racial). No livro de Maciel, o louro editor William, além de não compreender Cesário, por tentar aprisioná-lo dentro da armadilha da identidade negra, chega mesmo a roubar-lhe pertences, durante a loucura de Cesário, na esperança de encontrar novos escritos!
A riqueza literária do romance de Francisco Maciel, estruturado em contos (dos quais pelo menos o que dá título ao livro é um dos maiores publicados no Brasil há muito) está justamente em recusar-se a um enquadramento panfletário e a um fetiche da origem. Essa recusa marca-se inapelavelmente pelo trágico, como se percebe na história de Cesário “A Volta ao Outro”: após inútil viagem a África, o personagem Quirino També, negro, não descobre nesse continente suas raízes; ele conhece no Brasil (país multirracial...) duas “vítimas da África”, africanos que, educados na Europa, não puderam mais adaptar-se às suas culturas originais [p. 39]:

No meio da tradicional família africana, vendo a disputa das mulheres entre si e os velhos ódios adormecidos, descobriu que não teria mais condições de ser uma africana. Também não seria européia, já que a Europa era apenas a rama da árvore e a raiz já estava morta. Nem Europa nem África: tinha perdido o jogo.

Escreve William, encerrando o conto [p. 39]:


(...) ser negro é uma missão impossível. Mais ainda: ser humano é uma impossibilidade. O homem é queda e perda. E não há retorno ao país natal.



11 – As citações foram retiradas da edição Complete Works of William Shakespeare da HarperCollins Publishers, publicada em 1994.
12 – Um lírico exemplo é a poesia de Guarini, transformada em madrigal por Monteverdi no sétimo Livro de Madrigais, “Con che soavitá”: “Con che soavità, labbra odorate, / E vi baccio, e v’ascolto;/ Ma se godo um piacer, l’altro m’è tolto./ Como i vostri diletti/ S’ancidono fra lor, se dolcemente/ Vive per ambedue l’anima mia?” (LAMENTI. Anne Sofie von Otter, Musica Antiqua Köln, Reinhard Goebel (dir.), Deutsche Grammophon, 1998, 1 CD (59’41’’), digital).
13 - In: CAMPBELL, James, À Margem Esquerda, Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 43-45.
14 - Como consequência, Sérgio de Carvalho foi arbitrariamente expulso das Forças Armadas pelo Ato Institucional n.º 5. Décadas depois, o Supremo Tribunal Federal considerou ilegal o afastamento, mas o presidente brasileiro de então, Itamar Franco, esperou Sérgio de Carvalho morrer para cumprir a sentença - o que pode dizer muito não só das convicções democráticas desse vice-presidente de Fernando Collor, levado à presidência pelo impedimento sofrido pelo titular do cargo, mas também da influência dos militares ainda no primeiro mandato presidencial sufragado pelo voto popular após a ditadura (a primeira eleição direta presidencial foi em 1989).

2 comentários:

  1. Preciso e precioso Pádua Fernandes,
    mande para meu email um endereço e eu te envio
    o Cavalo & Santos.
    grande abraço
    fm

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  2. Olá; não tenho o seu e-mail. De qualquer forma, chego ao Rio no dia 22. Escreva, se puder, para o meu gmail, que é paduafernandes. Abraços, Pádua.

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