O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

30 dias de leituras: Machado, ainda

30 livros em um mês

Dia 29: Um livro que você adiou ler.

Antes de tratar do livro, faço um anúncio que me pediram: saiu número novo da Revista Ética e Filosofia Política, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Neste volume 2 da edição 14, foi publicado um dossiê Direito e Arte, organizado por Bruno Amaro Lacerda.

Nesse número, entre outros textos, há um artigo de Mônica Sette Lopes, "Os juízes no espelho: ver e ser visto", e nada menos do que dois trabalhos sobre Machado de Assis - um deles, meu: "Machado de Assis e o olhar irônico no país dos bacharéis".
Não se deve adiar Machado; no entanto, confesso que fiz isso e somente li em 2010 Memorial de Aires. Não sei bem a razão. Mas lembro que achei Quincas Borba tão fantástico que temia que esse último romance fosse uma obra do declínio.
Um Machado menor ainda seria superior a uma obra maior dos outros, é verdade. Mas não se trata de uma obra menor.
Depois de ter feito uso dos cadernos do conselheiro Aires em Esaú e Jacó, Machado escreveu no seu último romance um "recorte" do Memorial relativo aos anos de 1888 e 1889. Machado, sorrateiramente, apresenta a obra (mais curta do que os grandes romances anteriores) como fragmento e escolhe os anos da Abolição e da República. Significativamente, a narrativa não chega até a República.
À semelhança de Falstaff na obra de Verdi, o último romance de Machado mostra o autor mais ágil do que nunca: os acontecimentos fluem e logo o velho enamorado desilude-se, vê o jovem chegar, a viúva deixar a fazenda de vez, voltar ao piano e ao amor, casar-se e, enfim, deixar o país. A época é de mudanças no país também.
O livro foi publicado em 1908 e retomou problemas que tinham atravessado sua obra. Em crônica de 1º de janeiro de 1893, Machado havia escrito sobre a fraca eficácia social da Lei Áurea:

Há fatos mais extraordinários que a desolação da Babilônia. Há o fato de um preto de Uberaba que, fugindo agora da casa do antigo senhor, veio a saber que estava livre desde 1888, pela Lei da Abolição. [...] O rei não entrou na casa do ex-senhor de Uberaba, nem o presidente da república. O que completa a cena é que uns oito homens armados foram buscar o tal João (chama-se João) à casa do engenheiro Tavares, onde achara abrigo. [...] Renunciar ao escravo é um crime, terá dito o senhor de Uberaba [...]

No artigo na revista da UFJF, comentei que esse trecho representava um exemplo do privatismo a impedir a eficácia da liberdade. O individualismo liberal, fundado no direito de propriedade, só poderia considerar a escravidão como algo natural, e Abolição como interferência indevida do Estado em um direito privado absoluto.
Memorial de Aires, discretamente, mostra-nos a perversidade dessa ordem social. Na anotação de 3 de outubro de 1888, lemos a conversa de Campos - desembargador - com Aires; o homem da Justiça (justiça brasileira, bien sûr) refere-se a uma "fuga de libertos" na fazenda da sobrinha. Se libertos, por que fuga? O desembargador não estava atualizado no tocante à lei de primeiro de maio?
Ele estava atualizado - a ordem social é que não. Em 10 de abril do mesmo ano, Aires conta que o desembargador havia sido consultado pelo seu irmão, um barão, sobre a redação de um ato de alforria coletiva dos escravos daquela mesma fazenda. A fala do barão é um sinal desse privatismo; somente o proprietário teria o direito de dispor de seus bens, e ele o fazia antes que o governo interferisse em seu patrimônio por meio da Abolição: "Quero deixar provado que julgo o ato do governo uma espoliação, por intervir no exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso."
Não se tratava propriamente de princípios, no entanto; havia muito de cálculo no gesto do escravista: "Estou certo de que poucos deles deixarão a fazenda; a maior parte ficará comigo, ganhando o salário que lhes vou marcar, e alguns até sem nada, pelo gosto de morrer onde nasceram."
Morrer onde nasceram - "onde", aqui, assinala menos um lugar do que um estatuto, o da escravidão.
A morte perpassa todo o romance, em parte por causa das preocupações do aposentado Aires, na provecta (para a época) idade de 63 anos, e do casal Aguiar, que acaba por perder seus "filhos" informais, que casam um com o outro e viajam para Portugal. O retrato que Machado faz dessa velhice é comovente, principalmente na cena final, que não tem data: os dois velhos estão em frente um ao outro, calados, e Aires não ousa prosseguir.
O tom crepuscular é reforçado pelo fato de a narrativa não chegar ao 15 de novembro: aquele mundo acabava. E o futuro estava, curiosamente, na Europa: Tristão e Fidélia, ambos com nome de personagem de ópera alemã, instalam-se em Portugal, onde os "chefes de Lisboa" já fizeram todos os arranjos para que Tristão fosse eleito por lá. É claro que, durante toda a "campanha", ele estava no Brasil...
Velhas práticas políticas lusitanas, que tão bem copiamos! Ao fazer a nova geração voltar para a monarquia portuguesa, para o colonizador, não estaria o romance sugerindo que o futuro permaneceria agrilhoado ao passado e seria tão republicano quanto o proprietário de Uberaba e seus capangas?
A expansão da fronteira agrícola na Amazônia, as grifes estrangeiras instaladas no Brasil, a troca do descanso semanal pelo mensal em obras do PAC parecem mostrar que o Brasil ainda não saiu do universo retratado por Machado de Assis.

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