O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 16 de outubro de 2011

30 dias de leituras: Desejando Whitman

30 livros em um mês

Dia 27: História de amor favorita

"I stop somewhere waiting for you" - Um autor que se oferece como se a um amante, e escreve um livro que é um corpo desejante. Um autor que faz explicitamente da literatura um ato de amor a todos, democraticamente. Essa foi uma das ambições de Walt Whitman em Leaves of grass (Folhas de relva).
O impacto de Whitman na poesia ocidental foi enorme: Pessoa, Maiakóvski, Garcia Lorca e vários outros homenagearam-no em seus poemas. Pound, que chegou a dizer que só havia encontrado trinta páginas bem escritas em Leaves of Grass, porém já não mais as achava, reconciliou-se com Whitman no poema "A Pact".
Ana Cristina Cesar, sobre quem escrevi há pouco, na conversa que teve com alunos de Beatriz Rezende, publicada em Crítica e tradução, traduziu alguns versos de Whitman e comentou: "Olha só, 'eu caio das páginas nos teus braços', é um homem que, de repente, ele assume esse desejo de que o texto não seja meramente texto."
Visto que a literatura, assim como os corpos, tem o poder de despertar desejos, de fato um poema não é só texto... A poesia de Whitman diversas vezes celebra os corpos - ele escreve que prefere um belo corpo a um belo rosto. Também na prosa encontramos passagens como esta, de Specimen Days: "Doce, sã, calma Nudez na Natureza! - ah se a pobre, doente, lasciva humanidade nas cidades pudesse realmente conhecer-te uma vez mais! Não é, então, a nudez indecente? Não, não inerentemente. É o seu pensamento, sua sofisticação, seu medo, sua respeitabilidade que é indecente."
A primeira edição de Folhas de Relva, por sinal, não trazia o nome do autor, mas a imagem do seu corpo (a assinatura...) no frontispício - a que incluí nesta nota.
Para Whitman, o amor era um laço cívico, mas também podia ser uma relação de natureza sexual entre duas pessoas. Manifesta-se aí mais um elemento heterodoxo da poesia de Whitman (seu verso longo e livre já o tornava distinto do que geralmente se fazia em língua inglesa), pois há uma seção de Leaves of grass dedicada a esse tipo de amor, e que se dá entre homens – um amor entre camaradas, o que se torna claro em Calamus. Algo bastante ousado para o século XIX, e de que Oscar Wilde, mais tarde, não foi capaz com essa franqueza (o processo teria vindo antes, certamente, se o tivesse feito).
As duas facetas do amor se unem nessa obra; concordo com Roy Harvey Pearce "for as their function in the 1860 volume shows, the "Calamus" poems were to carry through to completion the poet's conception of his painfully loving relation with his readers" (em Whitman: A collection of critical essays).
Essa junção de erótica com política e poética é notável; creio que Allen Ginsberg foi especialmente inspirado por essa conjunção - ele, que chamou o poeta do século XIX "pai" mais de uma vez na sua poesia. Em uma célebre carta de Ginsberg, escrita em 18 de maio de 1956 a Richard Eberhart (publicada em The letters of Allen Ginsberg, livro organizado por Bill Morgan para Da Capo Press), temos a explicação da gênese de seu livro Howl. Nele, há um poema para Whitman, "Supermarket in California"; na carta, Ginsberg afirma que aquele autor foi o primeiro grande poeta dos EUA a reconhecer a própria individualidade, perdoando e aceitando a "Si Mesmo", e estendendo esse reconhecimento e essa aceitação para todos, definido assim a democracia.
Muito mais tarde, em 1984, Ginsberg escreveu um poema com o revelador título "I Love Old Whitman So" (publicado em White Shroud), em que se diz emocionado pelo verso "Quem toca este livro toca um homem".
No Brasil, Geir Campos publicou uma antologia que não é boa, pois corta o fôlego dos versos de Whitman. Rodrigo Garcia Lopes, respeitando a poética original, publicou pela Iluminuras uma tradução - com um alentado posfácio - da primeira edição de Leaves of Grass, de 1855. "Cálamo" veio depois, em 1860 - Leaves of Grass, como um organismo, foi sendo aumentado até a chamada edição do leito de morte, que Bruno Gambarotto traduziu e lançou neste ano pela Hedra.
Gosto muito deste poema de "Cálamo", "When I Heard at the Close of the Day", uma das histórias de amor do livro que é todo um corpo desejante, e discordo um pouco da tradução de Gambarotto neste ponto. Faço a minha para que possam dela discordar também.
Advirto que os versos começam com as maiúsculas de início de linha - as linhas que começam com minúsculas são, na verdade, continuação de um verso (não consigo indicar a quebra deles aqui):

Quando ouvi no fim do dia como meu nome havia sido recebido com aplausos no capitólio, mesmo assim para mim não foi uma noite feliz a que se seguiu,
E mais, quando eu festejava, ou quando meus planos se realizavam, mesmo assim eu não estava feliz,
Porém no dia em que levantei na alvorada com saúde perfeita, refeito, cantando, inalando o sopro maduro do outono,
Quando vi a lua cheia no oeste empalidecer e sumir na luz da manhã,
Quando perambulei sozinho pela praia, e me banhei despido, rindo com as águas frias, e vi o sol se levantar,
E quando pensei que meu querido amigo meu amado estava a caminho, Oh então fiquei feliz,
Oh então cada respiração era mais doce, e durante todo aquele dia a comida alimentava-me mais, e o belo dia passava bem,
E o seguinte veio com igual alegria, e com o próximo, no entardecer, chegou meu amigo,
E naquela noite enquanto tudo estava calmo eu ouvia as águas fluírem lentamente até a costa,
Ouvi o murmúrio sibilante do líquido e da areia como se dirigido para mim, sussurrando para me congratular,
Pois aquele que mais amo dormia ao meu lado sob a mesma coberta na cálida noite,
Na calma no luar de outono a face dele estava inclinada para mim,
E seu braço repousava suavemente sobre meu peito - e naquela noite fui feliz.

2 comentários:

  1. Nunca sequer ouvir falar de Whitman e me sinto até meio mal com isso (ignorante demais), mas já reli uma dez vezes esses versos e estou encantada. Lindo demais! Obrigada por tê-lo me apresentado. (espero não ser o tanto de vinho que já tenho na cachola... rá!!! amanhã releio para tirar a prova, mas acho que esse encantamento permancerá... tomara!)
    Beijo!

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  2. Ele, com Baudelaire, é um dos "founding fathers" da poesia moderna.
    Acho que amanhã você continuará feliz, assim como nesta noite!

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