O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

30 dias de leituras: Hilst, Shakespeare e vômitos

30 livros em um mês

Dia 26: Um livro repugnante, porém muito bom.

Criei o tópico pensando em Hilda Hilst - ela declarou que vomita em cada linha de Genet, "mas é um grande escritor", em uma entrevista à TV Cultura que deu no lançamento de O caderno rosa de Lori Lamby.
Esse livro, Contos d'escárnio/ Textos grotescos e Cartas de um sedutor formam uma espécie de trilogia fescenina na obra de Hilst.
Ela não tem nada de repugnante, porém, exceto para moralistas, e esses livros não constituem uma ruptura na interessantíssima obra de Hilst, que culminou, creio, no final, em Estar sendo ter sido, com sua feliz união de prosa e poesia. Nele, combinam-se pela última vez seus temas preferidos, o pai, o porco, Deus, o ânus.
A entrevista é engraçada e triste: "Você não pode pensar em português. É bom pensar em inglês, em alemão, as pessoas aceitam. Em português pensar é uma coisa horrível, os editores detestam, te cospem na cara. Foi o que fizeram pra mim durante quarenta anos." Mais reveladora, porém, é a que concedeu aos Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Sales: "Eu leio Heidegger, Hegel, Kierkegaard, Wittgenstein e percebo que eles também não têm uma resposta acalentadora para a gente." - o que ela faz é a antítese da autoajuda.
E, de fato, é uma escritora movida pelo pensamento, também naquela trilogia, da qual Cartas de um sedutor é o momento maior (os outros são mais pueris) - na ficção brasileira, acho que só o Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade pode-se-lhe comparar em irrisão. O incesto está no centro do livro (o sedutor escreve para a irmã, com quem teve um relacionamento sexual, e ocorre um suspense sobre se ela conseguiu ou não seduzir o pai de ambos) - mas ele é muito engraçado, com passagens deste tipo: "pois olha, Eulália, se todo mundo lembrasse do que lhe sai pelo cu, todo mundo seria mais generoso, mais solidário, mais..."; outras, mais cruéis: "Havia no bolso direito da calça a fotografia baça de um menino segurando um porco. Atrás da fotografia estava escrito: meu primeiro amor. Enterraram-no então com fotografia e tudo."
Se há algo de repugnante nesse livro, são os escritores, retratados da pior forma possível: Genet, Proust, Rimbaud, Verlaine, Mishima, até Foucault... Embora seja um romance epistolográfico, escrever é algo repugnante:

De alguma maneira me transformaste num escriba ou melhor num escrevinhador, e só de saber que tu me pensas escritor agiganta-me a náusea. Que tipos petulantes! Que nojosos! [...] Verdade que adoro os livros, mas se pudesse arrancar de mim a visão dos estufados que os escreveram vomitaria menos o mundo e a própria vida.

Esse vômito de Hilst não é nada repugnante. A repugnância é seu motivo, que só aparentemente vem do erotismo, e nascem, na verdade, da literatura, que é o assunto o tempo todo.
Logo, não é livro que sirva para este tópico.
Um livro realmente repugnante, porém muito bom, na minha experiência de leitor, é o Mercador de Veneza, uma das mais célebres peças de Shakespeare. Não vou contar a história aqui, é claro, mas explicar por que ela me dá náuseas.
O antissemitismo na peça deixa-a pestilenta para mim. Shylock tem seu grande monólogo, um importante momento dramático, mas o processo retira-lhe o que é: a condição de judeu. Shylock é visto pelos cristãos algo como o capitalista sem escrúpulos - o que é hipócrita. No julgamento, ele diz:

What judgment shall I dread, doing no wrong?
You have among you many a purchas'd slave,
Which, like your asses and your dogs and your mules,
You use in abject and in slavish parts,
Because you bought them; shall I say to you
'Let them be free, marry them to your heirs -
Why sweat they under burdens?
[...]

Os cristãos comercializavam, exploravam e matavam outros seres humanos - essa era a lei também de Veneza. Quando Shylock insiste na sua correção diante das leis de Veneza, ele está correto: "If you deny it, let the danger light/ Upon your charter and your city's freedom" e "If you deny it, fie upon your law!/ There is no force in the decrees of Venice."
Portia, quando aparece disfarçada de advogado, usa um argumento tão falacioso (talvez para tornar a situação menos inverossímil Shakespeare faz com que seja pronunciado por alguém que não estudou Direito) e de um absurdo à toda prova: como seria possível pretender que se pode ter carne humana sem sangue? É claro que uma pressupõe o outro, senão o acordo não teria objeto. E é claro que Antonio sabia disso.
Há um paralelo cruel com a fala de Shylock em que defende a natureza humana dos judeus e diz "If you prick us, do we not bleed?"; na peça, porém, para os cristãos é que não é natural sangrar...
No entanto, não é isso o que importa - o que se deixa claro é que qualquer pretexto é bom contra um judeu. Até mesmo uma ideia sem sentido vinda de um defensor improvisado que nem advogado é - e uma mulher disfarçada, alguém que nem mesmo poderia falar no tribunal nessa posição.
Shakespeare faz Shylock dizer no primeiro ato "I hate him for he is a Christian;/ But more for that in low simplicity/ He lends our money gratis" - o odioso usurário. Mas é ele o grande objeto do ódio, e é ele que tem seus bens cobiçados. Entra aí também a hipocrisia cristã de negar aos judeus o acesso à terra (na época em que a terra era a principal fonte de riqueza), deixando-lhes como alternativa de vida justamente as atividades financeiras (consideradas pecaminosas para os católicos), para depois acusá-los de usurários.
Quando Shylock, além de perder os bens, é convertido à força, e o Duque diz que faz isso para mostrar como o espírito de Veneza é magnânimo, o deboche é completo. Simbolicamente, os judeus são exterminados nesse ponto, e o restante da peça, um óbvio anticlímax, é reservado para o entendimento dos casais.
Penso agora se o final, com aquela coisa do anel (o anel, do qual Bassanio prometeu para Portia nunca se desfazer, é entregue ao advogado, que é ela mesma que, depois do julgamento, quer saber o que foi dele feito...), seja algo além de um artifício teatral para revelar o travestimento de Portia (realmente, um personagem interessantíssimo) e Nerissa. Talvez seja para mostrar que a lei de Veneza e a lei dos cristãos sejam mesmo a de quebrar as promessas - ou seja, de que não há lei. Isso tornaria a peça menos pestilenta.
De qualquer forma, isso também viria ao encontro do antijuridismo dos fascistas e dos nazistas, para quem essa peça foi um instrumento de propaganda antissemita no âmbito da política de genocídio - que não seria justamente o mais repulsivo dos crimes?

6 comentários:

  1. De fato Shakespeare é complicado. Não conheço muitas das peças,mas de maneira geral acho prolixo.
    A Megera Domada - ainda que muito divertida - me dá "engulhos" no final, por ser tão machista!

    Acho que fica problemático para um diretor: mudar ou não mudar o texto? Teria que fazer uma "desconstrução". Como faze-la?

    Há um filme - que foi antes uma peça de teatro, dirigido pelo próprio diretor da peça, que teve esta coragem e enfiou a tesoura no velho Will.

    Mas era "Sonhos de uma Noite de Verão", com um elenco all star : Kevin Lein e Michelle Pfifer e tres atores que gosto muito: Stanley Tucci, David Strathairn e Sam Rockwell (o qual tem uma das cenas mais bonitas, para mim, de uma peça dentro de uma peça e quase rouba o filme.)

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  2. Gostei de um filme recente a partir da peça, de Michael Radford, com Al Pacino no papel de Shylock.

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  3. Meu comentário acima tangencia a questão levantada, bem sei.Mas como não estava conseguindo postar,fiz um teste (se mais uma vez não desse certo,nada se perderia.)

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  4. Nunca li Hilda Hilst, mas ela é daquelas que não li e já gostei. Depois do seu post, mais ainda.

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  5. Agora, o comentário que fiquei devendo...

    Acho interessante a Hilda dizer “ Você não pode pensar em português. É bom pensar em inglês, em alemão, as pessoas aceitam. Em português pensar é uma coisa horrível, os editores detestam, te cospem na cara. Foi o que fizeram pra mim durante quarenta anos."
    Essa dolorosa percepção fala da subalternidade da língua portuguesa e, mais do que isso, de uma hierarquia entre as línguas, e , por extensão, de correntes de pensamento. Quantos autores, pensadores ficaram - e ficam - aprisionados em suas próprias línguas?
    E os editores- esta figura curiosa misto de artista e comerciante- passam a ser responsáveis pelo fluxo ou não entre as línguas, entre as idéias. Ou os professores de línguas ; ) cf http://www.vancouversun.com/business/Should+kids+learning+Brazilian+Portuguese/5534886/story.html#ixzz1aaoxuv4B

    Quanto à peça de Shakespeare, vou procurar lê-la . Tenho uma linda e antiga coleção da Melhoramentos , em versos, com ilustrações de John Gilbert. (Confesso, acho penoso ler
    Shakespeare , em versos, no original). Ou ver o filme do Pacino, ou ambos.
    Mas por conta da entrega do Pedido de adesão do Estado da Palestina à ONU fiquei pensando nesta necessidade que a cultura européia tinha/tem de excluir tudo que era diferente aniquilando - ou - no caso dos judeus, colocando “fora “ da Europa, na terra que tinham abandonado há séculos. Por opção ou por falta de, esta "volta" é uma construção de todos nós, pois antes da Inquisição,do Pogrom, do Holocausto, dos campos de extermínio, dos campos de refugiados há a dificuldade de aceitar o diferente. ... Mas talvez eu esteja sendo simplista.

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  6. Não é bem apropriado, acho, dizer que os judeus haviam abandonado aquela terra. Eles haviam sido expulsos pelos romanos.

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