O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 2 de outubro de 2011

30 dias de leituras: Sófocles, cidade, palavra e refúgio

30 livros em um mês

Dia 18: Um livro que é uma cidade.

Quando imaginei este tópico, pensei logo em Édipo em Colono, de Sófocles, e não mudei de ideia. São conhecidas as três peças sobre Tebas, tragédias que contam a história de Édipo e sua estirpe. Dessas, a que mais me parece configurar a antiga cidade-estado, Édipo em Colono, conta a morte do banido irmão dos próprios filhos.
Édipo cegou a si mesmo ao descobrir que matou o próprio pai e casou com a própria mãe, porém ficou anos ainda em Tebas, até que foi banido da cidade sem que seus filhos homens se opusessem a tanto - eles queriam o poder. Antígona acompanhou-o na errância, servindo-lhe de guia, enquanto Ismene, a outra filha, atuou como espia do pai em Tebas, enviando-lhe notícias dos oráculos.
O banido e Antígona chegam a Colono; depois de vencer a resistência a sua presença, ele espera a chegada do rei Teseu, a quem pedirá refúgio. Antes do rei, Ismene aparece e lhe conta as notícias de Tebas: seus filhos homens estão a lutar pelo poder e Polinices, o mais velho, resolveu fazer uma aliança com Argos para retomar o poder. Os oráculos mostraram que os deuses haviam se tornado favoráveis a Édipo - o que motiva a famosa fala de que se tratava de uma triste compensação na velhice, depois de perdida a juventude.
Édipo, depois do sofrimento imposto pelos deuses e pelos homens, torna-se um homem sagrado, e a cidade que tiver seus restos estará protegida. O rei de Atenas, Teseu, concede que fique em um lugar consagrado aos deuses em Colono - região de que Sófocles era originário, homenageada nesta peça.
O repouso de Édipo, que sabe que está para morrer, é perturbado por diversas vindas: o Coro tentou expulsá-lo ao saber quem ele era; Creonte, seu cunhado e tio, busca em seguida sequestrar as filhas de Édipo e obrigá-lo a voltar para Tebas - mas não para pisar na cidade, e sim ficar nos seus arredores, para que os tebanos pudessem cuidar de seu futuro túmulo. No entanto, Teseu, fiel à palavra dada, consegue impedir que Creonte tenha êxito.
Mais uma perturbação: Polinices, depois de ter deixado o pai-irmão partir em exílio (e deixá-lo desassistido), aparece para pedir-lhe o apoio, pois aquele que ganhasse o suporte de Édipo, de acordo com os oráculos, conquistaria a cidade. Édipo, furioso (ele não queria receber nem falar com o filho), amaldiçoa os dois (Polinices e Etéocles) e prediz a morte de ambos, um nas mãos do outro.
Não vemos a morte de Édipo - tampouco os personagens. Somente a Teseu foi permitido acompanhar Édipo, e mesmo o rei de Atenas não foi capaz de ver-lhe o fim. Um fim sagrado.
A peça, além da impressionante figura do rei banido e cego, que conta agora apenas com as filhas e com a força de sua palavra, conta com um conflito entre cidades; entre Tebas e Atenas, que aparece no palco, e entre Argos e Tebas, que é anunciado por Ismene e confirmado por Polinices (e que foi assunto da tragédia de Ésquilo Sete contra Tebas). Mais do que isso, aparece um conflito entre concepções de cidade-estado. Atenas é celebrada na peça de Sófocles com os discursos de Édipo e de Teseu como uma cidade das leis; quando Édipo confronta o Coro que deseja expulsá-lo, joga essa fama de Atenas contra os próprios atenienses, que cedem.
Tebas, ao contrário, é uma cidade em que os pactos estão violados em razão da luta pelo poder. Polinices resolve lutar, apesar das palavras do oráculo e de Édipo, apesar de sua ambição pelo trono levar a pátria à ruína - Antígona reforça essa advertência, mas em vão. Sobre o bem comum, ele põe seu interesse pessoal - o oposto do que se deve fazer com a cidade.
Creonte, ao tentar sequestrar Ismene e Antígona, bem como o próprio Édipo, estava também a violar os pactos. Teseu o repreende (na tradução de Mário da Gama Kury, publicada pela Jorge Zahar - Trilogia Tebana):

Agiste de maneira indigna em relação
à tua pátria, a mim e a teus antepassados.
Entras num território submisso à justiça,
onde nada se faz contrariando a lei,
e menosprezas os seus chefes e te atreves
a tirar à força aquilo que te apraz.
Ages como se achasses que minha cidade
fosse deserta de homens ou fosse habitada
apenas por escravos, e eu nada valesse.

Sófocles apresenta ao público ateniense uma imagem que Atenas fazia de si mesma. A liberdade é garantida pelo direito; uma cidade que não contasse com o direito seria uma cidade de escravos. O escravo pouco poderia contar com a lei.
Por sinal, boa parte das falas de Édipo conta com uma argumentação judicial - a todo o momento (contra o Coro, contra Creonte), ele é obrigado a sustentar sua inocência em relação aos crimes (parricídio e incesto) que cometeu em ignorância.
Os gregos antigos deram contribuições importantes para a pré-história do Direito Internacional Público, com os primeiros sinais de um direito da guerra fundamentado em considerações humanitárias, bem como a criação da arbitragem internacional. Nessa peça, temos uma espécie de primeiros indícios de um Direito Humanitário na acolhida que recebe Édipo, que é uma espécie de prefiguração do refúgio.
É muito impressionante que a peça - um louvor à pólis no modelo ateniense - tenha como centro alguém banido, e a cidade seja louvada (e protegida) justamente por conceder o refúgio. Penso que se trata de uma situação quase oposta à de que Hannah Arendt trata no final da segunda parte de Origens do Totalitarismo, "As perplexidades dos direitos humanos", sua crítica aos direitos humanos parte exatamente dos apátridas judeus - e do problema do direito a ter direitos. Arendt escreve que os escravos, ao menos, pertenciam a uma comunidade e seu trabalho era explorado - eles tinham um lugar na sociedade. Os apátridas haviam perdido essa comunidade que lhes garantisse direitos - e essa perda da política o expulsaria da humanidade.
Agamben, inspirado na noção de Arendt dos refugiados como vanguarda de seu povo, tenta pensar numa política além dos direitos humanos - vejam a tradução de Murilo Duarte Costa Corrêa. Pode-se também tomar Arendt para pensar em uma nova articulação dos direitos humanos. O debate é imenso e não vou tratar dele aqui.
Outro ponto, na peça, é que Édipo age com sua palavra. Hannah Arendt, no segundo capítulo de A condição humana, cita outra peça de Sófocles, Antígona, para lembrar como ação e palavra eram considerados do mesmo tipo e nível, e essa noção já estava presente no pensamento pré-socrático e antecederia até mesmo a pólis - embora apenas a fundação da cidade-estado tivesse permitido aos homens passar suas vidas inteiras na esfera pública, na ação e na palavra.
Arendt também cita Édipo em Colono - não sei se em outro lugar, mas, estrategicamente, pelo menos no final de Sobre a revolução. O que permite que os homens suportem o encargo da vida? Teseu revela: a pólis, espaço da palavra e da ação, que poderia dar à vida esplendor.
Acrescento que, nas palavras daquele homem livre grego, Sófocles (havia os escravos - esses não tiveram acesso à escrita encenada no espaço comum), o que se criou foi uma cidade (as palavras não são apenas reflexos, elas conformam a realidade), e o que foi a pólis hoje é o que ela falou e o que dela se falou. O próprio túmulo de Édipo, na peça, jamais é visto; talvez se possa dizer que ele tornou-se discurso, e por isso pode proteger a pólis.
Essas palavras ainda podem inspirar cidades novas.

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