O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

30 dias de leituras: Do coletivo e do incompleto, a literatura

30 livros em um mês

Dia 30: Um livro que você ainda não leu e quer ler.

Este tópico, diferente dos outros que mantive, é impossível, se eu o seguisse literalmente. Imaginar apenas um livro que eu queira ler? Eu poderia ser tão ignorante para pretender que bastaria um livro para minha ignorância? Ou tão arrogante para achar que só necessitaria ler mais um?
De crenças desse tipo podem ser originar fundamentalismos a partir de uma obra sacralizada, seja a bíblia, o corão, o livro vermelho, o livro verde... A ideia de que possa haver o Livro é contrária à própria ideia de literatura, que é sempre incompleta e vária.
No meu caso, faltam-me integralmente diversas literaturas... Somente este tópico, para ser honesto, deveria ser muito maior do que os trinta anteriores reunidos e multiplicados (trinta e não vinte e nove, pois fiz uma introdução).
Uma boa forma de ingressar nas literaturas são as épicas - principalmente as de autor anônimo, isto é, coletivo. Vou indicar somente três. Pretendo ler Dede Korkut, que se tornou, no ano passado, o primeiro livro traduzido do turco para o português. Marco de Pinto foi o tradutor que logrou esta façanha histórica. Em outras línguas, ele existe há mais tempo, como em inglês.
Não o tenho ainda. Estou em casa há mais de um ano com outro livro, de autoria coletiva, mas não traduzido da língua original (o original foi consultado, porém): a edição de Popol vul, o épico maia que inspirou esta música a Ginastera, pelo poeta Sérgio Medeiros (um autor que admiro) e Gordon Brotherst.
Esperam-me também as Mil e Uma Noites que o professor Mamede Mustafa Jarouche está traduzindo pela primeira vez diretamente do arabe para o português. Vejam, na entrevista, como ele discretamente revela a fonte de histórias que Paulo Coelho assinou...
Paulo Coelho recorreu às águas das fontes anônimas, porém as ressecando e reduzindo os horizontes coletivos a uma estreiteza quase individual.
Bem ao inverso, essas obras coletivas, também por terem passado por milhares de bocas, podem alcançar uma riqueza impressionante, de que só conseguem se aproximar os autores excepcionais. Elas passaram por diversas vidas, contêm diversas vidas, e tenho apenas uma para lê-las.
Isso remete para a questão da leitura. Uma das histórias tristes do Nietzsche louco foi a de encontrarem-no atentamente lendo um livro - de cabeça para baixo.
Não seria essa, porém, uma forma legítima de ler? Essa inversão? Quando escrevi sobre livros que li, não estava escrevendo sobre mim mesmo? E, ao escrever sobre mim mesmo, não estava a inventar outro? Um outro que pode ser tantos e que não tem nome?
Não sei, por isso devo continuar lendo e escrevendo.
Sobre aquele episódio com Nietzsche, escrevi aos vinte e tantos anos um poeminha que ficou inédito. Para acabar esta série de forma singela, deixo-o aqui, um pouquinho revisto:

Como aceitar presentes


O filósofo lê o livro de cabeça para baixo;
chega o visitante
e lhe dá uma estátua;
o filósofo aceita-a como o livro
em que a leitura a converterá.

O filósofo vira o mundo de cabeça para baixo;
o visitante vai-se
e não vê que a estátua foi lida:
o filósofo quebra-a como ao mundo
que a leitura subverterá.

Dar ao filósofo uma representação,
ele a devolverá em cacos.

(quando os visitantes chegassem,
diz o filósofo, escrevi muitas coisas belas, a sede dada à água quando a história sorveu a guerra, lembrar que para o abismo todas as vias são livres exceto as da queda, desonestidade ou o partido da utopia, também a sepultura anônima de Deus e as impressões digitais dos clérigos, na escola do perigo só os expulsos são aprovados, sobretudo que a beleza não escreve -
para verem o próximo século tentarão copiar meus óculos, mas, faltos de olhos, apenas moldarão os aros segundo o formato do nariz)

O filósofo oferta o livro de cabeça para baixo,
mas os visitantes deixam a casa
supondo que no mundo encontrarão a ordem.

O filósofo quebra-se.
Esse é o presente que dá ao mundo;
cada caco uma leitura do todo
inverterá

4 comentários:

  1. Que lindo. Que lindo o poeta que se quebra dando-se ao mundo, invertendo a leitura. Que lindo o presente que você deixa aos leitores, no final da série.
    E fiquei feliz, porque me dei conta que ainda tenho uns dois pra baixo pra ler, que eu vou guardar pra ler de pouquinho, pra não gastar tudo de uma vez...

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  2. Obrigado. Saio ganhando, pois ainda tenho o prazer de esperar as suas leituras no http://chopinhofeminino.blogspot.com/

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  3. ...eita que eu não tinha visto isso...
    adorei...!

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  4. A desconstrução de tudo é um reinvento do mundo, uma construção - que não necessariamente é nova, mas tem peculiaridades.

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