O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Desarquivando o Brasil XXI: O estrangeiro na ditadura militar, evento do IRI/USP



Proferi uma palestra ontem no evento O Estrangeiro e a Ditadura, a convite da professora Deisy Ventura. Tratou-se de uma iniciativa do Projeto de Extensão Educar para o Mundo do Instituto de Relações Internacionais da USP.
Falei ao lado do professor Carlos Eduardo Boucault, que coordenou a área de Direito no PROIN-II (e me convidou a participar desse projeto). Na segunda parte, ouvimos três testemunhas daquele tempo: Maurice Politi, Ñasaindy Barret de Araújo e o deputado estadual de São Paulo Adriano Diogo.
Os depoimentos foram impressionantes e logo estarão disponíveis na internet.
De minha parte, tentei explicar os traços xenófobos (e provincianos) da doutrina de segurança nacional no Brasil, explicar certas previsões legais específicas para estrangeiros, como o procedimento sumário de expulsão para os estrangeiros envolvidos em crimes contra a segurança nacional. Analisei também alguns documentos do acervo DEOPS/SP - o que deu ensejo para Politi lembrar que há pessoas que só fazem reclamar que os documentos da ditadura não estão abertos, embora já existam tantos acervos disponíveis para os pesquisadores. Mas são pessoas que não se dispõem a pesquisar...
Um dos documentos que expus, pesquisados no Arquivo Público do Estado de São Paulo, foi um longo relatório do Exército sobre a ofensiva movida contra o PCB em 1974 e 1975, como resposta ao triunfo eleitoral da oposição (como se sabe, o jornal Voz operária foi atingido, e vários militantes - entre eles, Herzog - foram mortos).
Políticos do MDB são atacados, como era de esperar, e também o clero progressista (D. Evaristo Arns e Helder Câmara, naturalmente).
O Ministro Aliomar Baleeiro do Supremo Tribunal Federal, que não era um jurista de esquerda, é citado por ter concordado com Sobral Pinto na crítica às prisões ilegais, às torturas e aos desaparecimentos forçados.
O relatório, por sinal, representa um esforço de negação dessas ilegalidades sistematizadas pela ditadura militar e de enquadramento da campanha dos desaparecidos na categoria de inflitração do MCI (Movimento Comunista Internacional). No relatório, há várias citações da imprensa soviética (como o Pravda, que se lê na página ao lado), que era acompanhada pelas autoridades, pois lhes interessavam as referências ao Brasil e a militantes brasileiros.
"Todos, comunistas, "inocentes ou idiotas úteis", são na realidade servos do MCI [...]" - lemos aí o ridículo de caracterizar como comunista o especialista em Direito Financeiro Aliomar Baleeiro, deputado pela UDN e oposicionista contra João Goulart, jurista nomeado por Castelo Branco ao STF.
Mas era um jurista, o que bastava para que se aparentasse a um subversivo em um regime movido pelo arbítrio e pelas baionetas.
Quero lembrar aqui de um caso sobre segurança nacional, incluído na Memória Jurisprudencial desse Ministro que o STF organizou. Castelo Branco, em um ato que se aparentava a um deboche contra o direito (o que seria repetido com o abuso das medidas provisórias após a Constituição de 1988), baixou decreto-lei sobre locações, o que não era nem um assunto relativo à segurança nacional, tampouco às finanças públicas, que eram as duas matérias que a Constituição previa para os decretos-lei.
O notável é que foi Baleeiro, o ministro-relator do caso, é que levantou a inconstitucionalidade do decreto-lei, e não a parte. Na página 344 do livro, lemos esta passagem conhecida e engraçada:

Já se disse que o Parlamento britânico pode tudo, menos transformar homem em mulher ou mulher em homem. Mas, num país de Constituição escrita e rígida, não há o mesmo arbítrio. A lei, no Brasil, não pode transformar o quadrado no redondo sempre que o redondo e o quadrado tenham sido designados como tais na Constituição, expressa ou implicitamente.
Segurança nacional, a meus olhos, não é o que o Presidente e o Congresso dizem que é, mas apenas o que se concilia com o que está expresso e implícito nos arts. 89 e 91 da Constituição, sob a epígrafe “Da Segurança Nacional”. E, por certo, purgação da mora em locações não residenciais não se harmoniza com o conceito da segurança nacional.

Há um tanto de insolência absurda em querer contrapor nosso instável direito constitucional rígido só no papel com a Common Law; no entanto, a denúncia da hipertrofia do conceito de segurança nacional foi certeira.
Essa hipertrofia teve como um de seus alvos preferenciais os estrangeiros de esquerda. Em uma entrevista que Vitor Silva Tavares deu a mim e a Fabio Weintraub (ainda vou incluí-la neste blogue), o fundador da célebre editora portuguesa & Etc contou-me de ter enviado ao Brasil vários exemplares do Picasso que havia lançado - e voltaram todos destruídos: nem mesmo os livros do comunista Picasso poderiam entrar no Brasil.
A entrevista ocorreu em 2007. Hoje, eu acrescentaria: o que vinha de Portugal pós-Revolução dos Cravos era visto com muita desconfiança pelas autoridades, que temiam que o Partido Comunista Português se infiltrasse no Brasil.

P.S.: Tirei fotos da segunda parte do evento. Na primeira fotografia, veem-se, da esquerda para a direita, Adriano Diogo, Maurice Politi, Deisy Ventura e Ñasaindy Barret de Araújo. Abaixo, Carlos Eduardo Boucault. Na terceira, Deisy Ventura fazia o encerramento da atividade, que se deu em auditório da FEA/USP.
P.S. 2: Esqueci de outra referência sobre Baleeiro, que torna ainda mais exagerado o relatório: ele foi o relator do caso Márcio Moreira Alves...

P.S. 3: O vídeo do evento pode ser baixado nesta ligação: http://www.iri.usp.br/?pg=100&pagina=4&id=

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