30 livros em um mês
Dia 22: Livro preferido que é uma escola.
Poderiam ser tantos, mas prefiro escolher o que mais teve influência sobre a forma como tento pensar teoricamente, as cartas de Hélio Oiticica e Lygia Clark, organizadas por Luciano Figueiredo. Tenho a segunda edição, publicada em 1998 pela UFRJ.
Trata-se da epistolografia de dois dos maiores artistas brasileiros, ambos em plena produção, em um momento difícil do Brasil - a ditadura militar. As cartas são tão inteligentes e vivas que lamento que mais não tenha sido publicado.
É fascinante ver seus planos, e como, personalidades tão independentes, discordam um do outro. Oiticica, em determinada carta, diz-se radicalmente marginal: "hoje sou marginal ao marginal, não marginal aspirando à pequena burguesia ou ao conformismo, o que acontece com a maioria, mas marginal mesmo: à margem de tudo, o que me dá surpreendente liberdade de ação" (carta de 15 out. 1968). Há uma certa mistificação nisso.
Clark, com uma visão mais larga, responde que isso ainda é burguês: "Achar ainda que és um marginal porque vives à margem de uma sociedade caduca e podre é ainda um conceito burguês. O que me angustia profundamente não é você nem eu nem gente como nós. É me saber situada, integrada numa situação privilegiada, mas perceber que para os outros o mundo ainda não cavou o seu lugar" (carta de 26 out. 1968).
Em 1970, Oiticica escreve que nção tem mais sentido "participar em museu ou galeria", mas que faria isso em Nova Iorque porque lá ele ainda não era bem conhecido. A resposta dela é genial: "Quanto à posição, a priori, de ser contra galerias, museus, etc., etc., não leva a nada de positivo a não ser criar uma nova elite" (carta de 20 de maio de 1970); e, quanto a seus críticos, indaga "Por que eles não podem admitir que as coisas mudam e também as próprias instituições?" Elas são históricas, são alteradas pelas práticas. Claro que a pesquisa dela com o corpo e o gesto coaduna-se com essa visão sobre as práticas.
Em 1968, ela confessa que às vezes se sentia "currada" pelo público. A resposta dele abre horizontes mais amplos: "Esse problema de ser deflorado pelo espectador é o mais dramático: todos são, aliás, pois além da ação há a consciência-momento de cada ação, mesmo que esta consciência se modifique depois, ou incorpore novas vivências." (8 nov. 1968).
O livro, porém, me ensinou menos sobre a arte do que sobre o país, o Brasil. É significativo que, em boa parte das cartas, eles estejam alhures: Clark na Europa, Oiticica, do Rio de Janeiro, vai para Londres, Paris (de que não gosta) e Nova Iorque, que adora como ao Rio. Em 1968, Oiticica queixa-se do terrorismo de direita, que afeta Zé Celso e o Roda viva. Ele já é censurado. Sua bandeira "Seja marginal, seja herói", que seria usada em um espetáculo de Caetano Veloso com Os Mutantes, foi proibida pelo DOPS. Reclama da burrice da imprensa e da mesquinharia dos colegas artistas.
Clark, porém, é pressurosa em defender o Brasil, comparando-o com a Europa, onde "a merda é geral. Não existe povo." (26 out. 1968). O próprio Oiticica elogia, em carta posterior, o país, pela linha já tradicional da miscigenação: "o Brasil é uma espécie de síntese de povos, raças, costumes, onde o europeu fala mas não fala tão alto, a não ser nos meios universalistas acadêmicos, que não são 'criação cultural', mas arremedo." (8 nov. 1968). Bom diagnóstico da academia. Ele afirma que essa mistura nos dá mais dramaticidade - tivemos uma "barra mais pesada", o que se notava na arte de Clark. Trata-se, pois, de uma visão que não tenta camuflar o conflito na síntese.
Gostaria de também poder ver assim, sem apaziguamento ou covardia.
Nas cartas de Oiticica no Brasil, leem-se os problemas com o Itamaraty (que o sabota), com a censura, as repetidas ameaças pelo telefone, o sumiço de amigos. Lygia Clark, em 1969, já abandona o tom otimista sobre o país e fala da "guerra civil ainda clandestina".
Outra coisa em comum: os dois geralmente estão sem dinheiro...
Oiticica repetidamente diagnostica a falta de pensamento entre os artistas e a imprensa, e o oba-oba padronizado: as pessoas que o procuram nem sabem o que ele faz, o que é "típico do Brasil". Essa recusa esfuziante à inteligência encontra poucas exceções, como Augusto e Haroldo de Campos, que ele elogia. Ele e Clark, já em 1974, notam uma decadência de Caetano Veloso (que Oiticica louvara tanto em 1968) e um encaretamento de Gilberto Gil.
O livro tem várias posições interessantes sobre o objeto e o biológico na arte, a antropofagia, a tevê, o cinema, a música... No entanto, para mim, a carta mais impactante sempre foi uma de Oiticica, de dez de outubro de 1974, em que indaga "Como o Brasil é o reino da diluição, quem pode prever a eficácia de qualquer coisa quanto ao contexto?" Percebi que essa era uma chave que estendia a questão do informe, como apresentada em Sérgio Buarque de Holanda, e explicava bem o direito brasileiro.
As artes diluidoras da tolice com títulos e cargos (na academia e no Judiciário) e da dominação de classe diluem a eficácia do direito, de forma que se não lhe podem prever os efeitos. Isso pode chegar ao ponto de a norma ser distorcida, seja para tornar-se absolutamente ineficaz, seja para que gere uma eficácia contrária a seus próprios fins - a produção legal da ilegalidade.
Eu já tinha chegado a essa expressão no mestrado, mas, quando li as cartas desses dois artistas, é que fui entender que se trata de um traço cultural no Brasil, que vai além do direito - na verdade, ele chega até o direito. Anos depois, aquela frase de Oiticica serviu de epígrafe para o terceiro capítulo da minha tese, em que analisei como o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral retiravam a eficácia da dimensão social do direito à educação - neste artigo, resumi a questão.
Esta coletânea de cartas foi um dos livros que mais me inspirou a imaginação jurídica, muito mais do que a quase totalidade dos livros de direito. Não é de estranhar: trata-se de dois grandes artistas pensando a cultura, e qualquer pensamento sobre o direito que ignore que ele deriva de uma cultura está fadado a ser um não pensamento.
Ademais, em vez de buscar a especificidade do jurídico, prefiro pensar nas contaminações e nos hibridismos, o que é outra lição desses artistas. Clark, na última carta, declara: "mas agora quero continuar na 'fronteira', pois é isso que sou e não adianta querer ser menos fronteira."
P.S.: No blogue de Niara de Oliveira, pode-se ver quem está participando desta rodada de leituras.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
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Genial esse post, Pádua. Deu vontade de ler as cartas, claro: pra mim que adoro essa sensação de estar bisbilhotando correspondência alheia... mas o mais interessante é como você constrói toda uma narrativa sua a partir de uma frase de Oiticica. Livros a partir de livros. O que alguém fala, o que alguém ouve. Que não necessariamente é a mesma coisa - aliás, que raramente é a mesma coisa. A gente ouve o que já está dentro da gente, mais do que o que a outra pessoa fala. A gente acha, nas falas de outrem, o que a gente já procurava. Artes de Hermes/Mercúrio...
ResponderExcluirObrigado. Você pode ler as cartas, pois na ligação que indiquei no primeiro parágrafo está todo o livro.
ResponderExcluirDe fato, escrevemos livros também a partir de outros livros. Isso é mesmo intersubjetivo.
Abraços, Pádua
Eba. Vou abrir o link então. Assim que tomar vergonha e escrever mais um post... assim que fizer a tradução que prometi ao Lucas... vou lá...!
ResponderExcluirA professora Cybelle de Lima já comentou outras notas que fiz, mas não conseguiu desta vez e pediu para que incluísse aqui seu comentário:
ResponderExcluirBonito texto, Pádua.
tendo a concordar com a Renata, "a gente ouve o que já está dentro da gente, mais do que o que a outra pessoa fala. A gente acha, nas falas de outrem, o que a gente já procurava".
Mas me pergunto: e como "o que está dentro da gente" foi parar lá dentro?
Cybelle