O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Irregularidades na superfície dos discursos cotidianos...

Em 27 de fevereiro de 2009, a jornalista Mariane Morisawa publicou matéria extensa sobre poesia para o Valor. Várias pessoas (Chiu Yi Chih, Marília Garcia, Fabio Weintraub, Carlito Azevedo, Ruy Proença, Frederico Barbosa etc.) foram entrevistadas, até eu - que estava no Verão de Poesia da Casa das Rosas e entrei no balaio. Uma frase minha, de teor mais "econômico" (sobre exército de reserva), foi publicada. Como o resto não saiu, transcrevo aqui. Imagino que responderia diferente hoje, mas como ninguém me perguntou nada, não pensarei em novas respostas...


1. Qual é o estado da poesia no Brasil, na sua opinião?
Não creio que se possa divorciar essa questão do problema do largo panorama do acesso à cultura. A poesia exige domínio das competências linguísticas, porém a educação no Brasil não tem conseguido cumprir a difusão do letramento – e a situação da infância é um desastre. Aqui, contudo, gostaria de lembrar apenas do ensino superior, que deveria conseguir formar professores. As cinco maiores universidades do país em número de alunos, todas privadas, estão entre as quarenta piores no índice de qualidade dos cursos e seguem a lógica da metástase em sua expansão. Pessoas iletradas diplomam-se e contentam-se com o que já (não) sabem, convencidas de que jamais precisarão ler. Nesse sentido, o ensino superior tem fechado ainda mais as portas da literatura e da cidadania: pessoas que não podem ler Cecília Meireles, Murilo Mendes e Drummond estão privadas de parte do melhor que nossa cultura produziu, além de privadas de sentidos de vida presentes na obra desses autores.

2. Há diversas tendências na poesia contemporânea brasileira?
Felizmente sim, mas um mapeamento delas exigira um ensaio. Pode-se dividi-las no tocante ao diálogo com a tradição poética e com outras linguagens. Autores como Sérgio Medeiros, Nuno Ramos, Veronica Stigger (que é, principalmente, ficcionista), Ricardo Domeneck e Alberto Pucheu tendem a criar objetos híbridos em busca de sínteses com outras artes, como teatro, ou novas formas de produção (como o uso de vozes alheias, materiais publicitários etc). Outros autores prolongam lições de movimentos passados, ou combinam de forma pessoal esses movimentos dentro das linguagens já tradicionalmente poéticas. Mas, também nesses casos, a forma não é (ou não deve ser) algo previamente dado. A poesia deve desestabilizar os dados prévios: mesmo o tradicional verso livre deve produzir algum tipo de instabilidade no discurso (penso, por exemplo, na curiosa vocação para o precipício no verso de Ronald Polito).

3 e 4. Acha que falta espaço à poesia? Acredita que eventos como o Verão da Poesia são importantes? Por quê?
A questão do espaço da poesia diz respeito à participação dessa arte na esfera pública. Nesse sentido, esses eventos são úteis para aproximar poetas do público e, também, de outros poetas. Servem para forjar alianças. Deve-se lembrar que o evento Verão da Poesia deveu-se à destinação pública do equipamento cultural feita na administração do escritor Frederico Barbosa.

5. Sente que existe uma renovação no público da poesia?
Certamente. Em minha experiência pessoal, geralmente essa renovação é feita por jovens que escrevem, ou desejam escrever poesia. Em geral, não serão poetas. Mas a poesia, mesmo a que jamais conseguirão escrever, os enriquecerá humanamente.

6. Quais as principais dificuldades para os poetas hoje em dia? Essas dificuldades diferem em que das dificuldades vividas por poetas de outras gerações?
Meu primeiro livro, O palco e o mundo (Lisboa: &etc, 2002), saiu somente em Portugal; no Brasil, não houve interesse. Inversamente, tive dificuldade em publicar aqui uma antologia de Alberto Pimenta, escritor português que é um dos maiores poetas de nossa língua em todos os tempos. Continua a haver um “exército poético de reserva”, no sentido de que a oferta de poetas que desejam publicar é muito superior à demanda das editoras, o que estimula práticas abusivas dos editores. Mas esse problema não é novo: Manuel Bandeira só encontrou editor aos 50 anos, Manoel de Barros, aos 60. O suporte da internet, uma novidade tecnológica, tem contribuído para amenizar essas dificuldades; porém essa biblioteca infinita é também altamente volátil. Contudo, a principal dificuldade do poeta continua sendo buscar a si mesmo; perto disso, esses problemas de edição, prêmios, incentivos não são realmente questões literárias.

7. Você estuda poesia? Quais seus poetas contemporâneos favoritos?
Claro, sempre se procurar saber sobre o que se ama. Sobre poetas de hoje, para citar apenas três de gerações e países diferentes: o português Alberto Pimenta, que, após os 60 anos, não se acomodou e continua a lançar livros poderosos, como Marthiya de Abdel Hamid, sobre a invasão dos EUA no Iraque, e Indulgência plenária, sobre a tortura e o assassinato de Gisberta Salce, transexual brasileira, na cidade do Porto; o espanhol José Ángel Cilleruelo, autor espanhol que combina lirismo, uma fina observação do cotidiano e poesia de pensamento; e, na Argentina, o jovem Julián Axat, com sua mistura de epistemologia, memória e política, a tratar, entre outros temas, do período da “Guerra Suja” e dos desaparecidos.

8. Por que escreve poesia?
Porque desconfio da linguagem e do mundo. É preciso criar irregularidades na superfície dos discursos cotidianos para que o mundo se reinaugure continuamente.

4 comentários:

  1. Excelente post. Mas me veio uma pergunta, que sempre me ocorre: não seria contraditório vincular a poesia a uma "refundação" da linguagem -- o que, até segundo a tradição formalista, a colocaria mais do lado da estética, no sentido mais radical do termo -- e atribuir o fracasso da veiculação da poesia à péssima formação universitária (que é indiscutível)?

    Quer dizer: como pode a universidade ensinar algo que caminha lado a lado com um tipo de "elevação", sem que isso redunde, nalgum momento, na massificação do discurso e consequentemente na perda da poeticidade?

    Não sei se fui claro, mas eu me inquieto com isso.

    Abraço e parabéns pelo blog, que vim a conhecer através do Twitter.

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  2. Obrigado. Se bem entendi seu comentário, não fui claro: "a péssima formação universitária" é só um dos fatores, e o único sobre que decidi falar porque é o que conheço mais ou menos. Mencionei, além do letramento, a "situação da infância", que é um descalabro e vai além do problema da educação.
    Não percebo como identificar "refundação" com "elevação". A poesia popular, de cordel, por exemplo, pode bem cumprir aquele papel, mesmo que ela não seja considerada "elevada".
    Em relação à pergunta se a universidade pode ensinar sem massificar o discurso, vejo que a massificação é feita, sem que ocorra o ensino...

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  3. Perfeitamente! Obrigado pelo esclarecimento! =)

    Sobre identificar "refundação" com "elevação", me refiro ao fato de que, na elaboração da linguagem poética a contrapelo da linguagem cotidiana -- dicotomia que sempre esteve presente quase que naturalmente nos estudos literários (e que Stanley Fish, por exemplo, rechaça) -- existe um tipo de diferenciação, de distinção, que tira a linguagem da sua suposta banalidade, tornando-a "autorreferencial" (fiquemos com Jakobson), modificando a maneira como percebemos e conceitualizamos o mundo. Acho que é possível concordar sobre isso!

    Porém, em contrapartida, o que os teóricos não veem (e percebo agora que não é o seu caso) é que, em geral, quando traçamos a dicotomia acima, uma outra, sorrateira, invade a teoria: a linguagem corriqueira é "naturalizada", ao passo que a linguagem poética é um desvio, um acontecimento. Embora haja todo um "treino", uma elucubração, uma poética no sentido estrito, por parte do poeta, quer me parecer que, apesar disso, se estabelece aquela velha dicotomia entre a "norma" e o "gênio". Se é assim, como "ensinar" a genialidade, a sensibilidade, na escola, ainda que na Universidade?

    Claro que não seria, pelo contrário, uma defesa do nivelamento por baixo que as IES particulares promovem! Só que, numa concepção formalista como essa que delineei -- e que, repito, ficou claro que vc não adota --, fica difícil entender o papel da formação na defesa da poesia.

    Apenas fiz questão de responder para mostrar como pode "refundação" da linguagem e "elevação" andarem juntas. Meu intuito não é polemizar, apenas valorizar seu excelente trabalho aqui.

    Grande abraço! =)

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