O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

30 dias de leituras: Desaparecimento em Piñera

30 livros em um mês

Dias 20 e 21: Último livro que você leu & Melhor livro que você leu neste ano.

Por coincidência, estes dois tópicos acabaram se referindo à mesma obra. Na verdade, isso ocorreu por pura falta de tempo: como tive, nas duas últimas semanas, que preparar um artigo, 24 provas e duas palestras diferentes, a minha última leitura completa foi uma revisita aos Contos frios de Virgilio Piñera, em uma edição (que não acabei de ler) dos Cuentos completos. É claro que pouquíssimos livros poderiam concorrer com esse...
Piñera é um fenômeno: genial na prosa, no teatro e na poesia, teve que viver em uma revolução, a cubana, em que foi um maldito e marginal por sua literatura e sua homossexualidade (há paralelos entre ele e seu contemporâneo Lezama Lima - mas a literatura deles é muito diferente). Na Argentina, vivendo em condições modestas, conheceu Borges (que o publicou) e Gombrowicz (Piñera ajudou a traduzir o genial Ferdydurke do escritor polonês); mas não conseguiu viver longe de Cuba. Na ilha, foi preso, impedido de publicar e teve seus escritos confiscados. Na novela Presiones y diamantes, busca-se um diamante, Delphi, muito admirado, mas que se revela falso...
O livro foi proibido, evidentemente. Tenho essa primeira edição, de 1967, que meu pai encontrou em Cuba (um livro usado) nos anos 1980, ainda antes de Sarney reatar relações diplomáticas com aquele país. E outra mais recente, de 2002, com Pequeñas maniobras - o escritor voltou a ser editado naquele país.
Cuentos fríos, de 1956, é pouco anterior à Revolução. Ele foi publicado pela Iluminuras; não tenho essa edição, e não encontro, no portal da editora, o nome de quem o traduziu.
O livro começa com uma vertigem: "La caída"; dois alpinistas, quando começam a descer uma montanha, caem e, enquanto vão perdendo órgãos pelo caminho, tentam proteger-se - de um, os olhos; de outro, a barba. Até que...
O motivo do corpo a despedaçar-se, da carne debandada, aparece em diversos momentos e ganha cores abertamente políticas desde o segundo conto, "La carne": a população, com falta de carne, descobre a autofagia e começa a cortar filés de si mesma. Vejam a ironia do escritor:

Hubo hasta pequeñas sublevaciones. El sindicato de obreros de ajustadores femeninos elevó su más formal protesta ante la autoridad correspondiente, y ésta contestó que no era posible slogan alguno para animar a las señoras a usarlos de nuevo. Pero eran sublevaciones inocentes que no interrumpían de ningun modo la consumición, por parte del pueblo, de su propria carne.

Enquanto o povo não dirigir sua fome para outros alvos, as sublevações serão inofensivas.
Nesse livro encontramos algumas das formulações literárias mais geniais da questão dos desaparecimentos - na América Latina, certamente, mas em qualquer lugar, com efeito. No entanto, creio que ser latino-americano predispõe a tratar desse tipo de crime. Já fiz uma nota sobre a questão dos desaparecimentos em nosso continente, o que levou a Corte Interamericana de Direitos Humanos a criar uma jurisprudência muito inovadora nesse campo (no meu livrinho Para que servem os direitos humanos?, mencionei esse pioneirismo da Corte no direito internacional).
A grande literatura de nosso continente, pelo menos no século XX, também não deixou de abordar o problema. Um caso recente foi o de Bolaño - o monumental 2666 é apenas o exemplo mais largo na obra do escritor chileno. Cem anos de solidão, outro monumento, de García Márquez, tem o episódio impressionante - e nada de fantástico, é realista tout court - do massacre de todo um povoado, com exceção do sobrevivente único, tomado por todos como louco. Entre os vivos, Julián Axat, como poeta e como editor, ocupa-se do tema.
Creio que se pode ler nessa chave contos como "En el insomnio", em que o insone morre mas não pode descansar - como os desaparecidos.
Os contos curtos do livro apresentam alguns paralelos com Kafka - Gombrowicz, em resenha do livro, escreveu que "Por cierto, Piñera se parece al checo y a ciertos autores surrealistas. Pero es también distinto. Y posee un singular talento narrativo." (não sei onde a resenha foi publicada; cito da biografia Virgilio Piñera en persona, de Carlos Espinosa, publicada em 2003 pela Ediciones Unión, que não dá muitas referências bibliográficas).
"La condecoración" lembra O veredito, "Cómo viví y cómo morí" parece condensar A metamorfose com "Diante da lei", o que é impressionante:

[...] las cucarachas prosiguieron fielmente yendo y viniendo, revoloteando, despidiendo su olor nauseabundo, haciendo ese ruido horrendo con sus alas [...] y, en una breve iluminación de mis sentidos, percibí su peso tremendo, como una armadura encima de mis huesos. ¿Será aventurado pensar que la justicia, echando abajo mi puerta, lanza un grito de asombro al contemplar a la cucaracha más grande sobre la faz de la tierra?

Em Piñera, ao contrário de Kafka, é a justiça que tem que abrir a porta; ela o faz, porém...
Outros momentos latino-americanos: "Lo fusilarían en la semana venidera.", a primeira frase de "El conflicto"; em "El gran Baro", lemos "Que vulgar expediente ese de fusilar y fusilar... Como si un estado de payasos tuviese que echar mano necesariamente a procedimientos gastadísimos." (uma passagem tão ferozmente irônica quanto os escritos sobre fuzilamentos de Julio Torri).
No longo conto final, "El muñeco", temos algo à altura e semelhança do Kleist de Sobre o teatro das marionetes. Também temos a imagem do boneco, que vai tomando o mundo humano, e o final em que temos o fim daquela sociedade. Em Piñera, no entanto, o final vem de uma sublevação (autêntica - das mãos de uma criança), não da escatologia.
Na época, Piñera responde em entrevista que "Son fríos estos cuentos porque se limitan a exponer los puros hechos." De fato, logo a revolução seria um fato, de que o próprio escritor se tornaria vítima.
Aproveito e deixo-os com uma tradução que fiz de poema de Piñera:


Se nada vai salvar-me,
para que escrever
que nada se salvará...
Nesta manhã chuvosa
do dia 25 de outubro de 1962
tendo feito os acordos pertinentes
a humanidade está a ponto de
declarar-se demente.

Eu, um cidadão qualquer do mundo,
que habito na casa em N
número 3784, Havana, Cuba,
sentado na cama
em plena possessão de minhas faculdades mentais
tenho por bem declarar
que me tornei louco.

E, como tal,
e no uso de minha insânia
declaro
estar pronto para o holocausto.


O poema foi publicado em La Gaceta de Cuba, n. 5, septiembre-octubre 1999, com outros inéditos.

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