Dia 23: Livro que você leu mais vezes.
Poderia ser Em busca do tempo perdido, de Proust, sobre que já escrevi. Só li a Recherche três vezes (já vou começar a quarta), mas, como são centenas e centenas de páginas, ganha em número de páginas relidas...
As releituras variam muito segundo a época. Se estivesse a escrever durante a graduação (acho que não existiam blogues nessa época), teria sido aquela edição da poesia de Fernando Pessoa. Em outra época, teria sido a poesia reunida de Yeats. em outra, o Poesia-Experiência de Mário Faustino.
Como, de acordo com as regras que me impus, não posso escolher um dicionário, e porque adotarei o critério do número de vezes, escrevo esta nota sobre Rimbaud, que li em algumas edições diferentes. A primeira, delas, Uma estadia no inferno (Une saison en enfer) na tradução de Ivo Barroso (antes publicada pela Civilização Brasileira, depois pela Topbooks), que é muito superior à de Ledo Ivo.
Sobre a tradução deste último Ivo, não precisamos lembrar da "insignificância de seu trabalho dentro do debate poético contemporâneo brasileiro" (como escreveu há pouco Ricardo Domeneck), pois poetas sem obra relevante podem ser grandes tradutores. Mas havia uma incompatibilidade de gênios (gênio no sentido estrito de temperamento, por favor), declarada desde a introdução, e que o acadêmico ratificou: "Yo le recomendaría a un joven poeta no ser un joven poeta, especialmente si este joven poeta es un terrorista literario, un Rimbaud, un contestatario./ Yo le recomendaría que él procurase un día, tornarse un clásico de su país."
A divisão entre clássico e contestador deveria ser relativizada: há clássicos da contestação (Marx não se tomou um clássico? ou Dante?) e não existem apenas tradições do conservadorismo... Por sinal, certos conservadores gostam de ocultar na história justamente as tradições da insurreição (rápida observação: aquelas críticas apressadas a Gadamer que o encaram como conservador por tratar do papel da tradição padecem do mesmo negacionismo histórico). A tradição não é algo homogêneo e apaziguador, exceto para os que amam simplificações históricas, ou seja, embustes.
Aqui, gostaria também de discordar do tradutor brasileiro da poesia latina de Rimbaud (ele já a traduziu toda; falta um editor), seara em que não entraram Ivo Barroso e Ledo Ivo, Leonardo d'Ávila de Oliveira. Ele escreveu que "O que se nota, no entanto, é que a tomada do autor como um mito fundador da poesia moderna fica, neste caso, comprometida, já que, antes de criar, o autor joga com toda a tradição, a exemplo de versos de Virgílio ou mesmo Ângelo Poliziano."
Faz sentido pretender que a inovação em arte só poderia ser alcançada pela ignorância da própria arte?... Pode-se constatar tantas vezes o oposto: é o conhecimento da tradição que dá mais instrumentos para a ruptura - como foi o caso de Monteverdi (se não dominasse o madrigal renascentista, teria escrito algo como o Orfeu?), Beethoven, Schönberg...
Rimbaud fascinou-me porque sua trajetória é de rápidas conquistas e abandonos: domina o verso latino, vai para a poesia em verso francês, domina-a, segue para o poema em prosa, combina poesia em prosa e em verso (Une saison en enfer já foi comparado à Vida nova de Dante?), chega ao verso livre (em Iluminações, "Marine") e encerra a carreira. Certamente os impasses da sua vida pessoal contaram também, mas fato é que ele parou depois de percorrer as possibilidades poéticas de seu tempo - como se tivesse chegado ao fim do jogo.
Mário Faustino pôde escrever sobre Rimbaud: "a partir do momento em que o poeta constroi uma poesia nova, sua poesia, é melhor calar do que repetir-se" (em Poesia-Experiência). Mallarmé, depois, com Un coup de dés, traria ainda mais uma possibilidade para a poesia francesa. De fato, o que Rimbaud logra em tão poucos anos é de uma ousadia e de uma experimentação incríveis - e se compreende que essa obra tenha sido criada por um escritor tão jovem, e preocupado com a revolução social.
Tenho alunos com o dobro da idade de Rimbaud quando escreveu a Estadia que não conseguem juntar sujeito e verbo. Alguns daqueles com a mesma idade que o poeta tinha nessa época perguntam quem é o verbo e, de fato, apenas enfileiram substantivos em frases nominais que começam com a palavra "onde", a qual serve como conjunção universal indicativa de profunda elipse mental. Por trabalhar dentro da catástrofe da educação no Brasil, acho que Charles Dantzig tinha razão ao afirmar (no idiossincrático e engraçado Dictionnaire égoïste de la littérature française) que Rimbaud e Genet foram dos maiores sucessos da educação pública francesa (veneninho francês: "D'où la facilité avec laquelle il devient un poète officiel de cette même Éducation nationale [...]"). De fato, Rimbaud é um argumento em prol da educação pública - imaginem os talentos que perderam suas possibilidades, no Brasil, vendendo bala em sinal. Mesmo um liberal como Rawls diria que a igualdade de oportunidades é um requisito para uma sociedade justa.
A Saison como um paralelo à Vida nova? Os dois livros combinam prosa e poesia, são autobiográficos (vejam Eduardo Sterzi a respeito do poeta italiano) e tratam dos afetos do poeta, no caso de Rimbaud, de uma relação que aconteceu de fato, com Verlaine (Dante provavelmente nunca namorou Beatriz).
Há religião em Dante, e também em Rimbaud - ele está no inferno, mas ascenderá, é o que a "virgem louca" anuncia sobre o "esposo infernal" na primeira parte dos "Delírios".
Que inferno é esse, do qual se pode ascender? Dante pôde fazê-lo em outro livro (a Comédia), porque estava vivo e atendia ao chamado de Beatriz, que tinha se tornado uma grande dama do paraíso. No livro de Charles Henry L. Bodenham, Rimbaud et son père: Les clés d'une enigme, mostra influência do islamismo na obra do poeta, e explica que, também nesse texto (Bodenham mostra os diversos paralelos), o Corão está presente: o islâmico não permanece no inferno eternamente, ele ascende - só quem ficará lá para todo o sempre é o infiel, isto é, o não islâmico (no caso, Verlaine).
Rimbaud havia estudado o islamismo nos livros do pai, Frédéric (militar que havia servido na Argélia, e que sobre ela escreveu, e acabou, como se sabe, abandonando a família). Bodenham vê a presença do sufismo e de A conferência dos pássaros no famoso "Elle est retrouvée!/ Quoi? l'éternité", que existe em duas versões.
Além da impressionante aventura formal e existencial de Rimbaud, há nele essa dilaceração entre Ocidente e Oriente, pois não é possível pertencer a ambos; em "O impossível", lemos que "O espírito burguês nasceu com Cristo."; "Os homens da Igreja dirão: É isso mesmo. Queres referir-te ao Eden, não? Nada te interessa na história dos povos orientais."; sobre os filósofos: "Estás no Ocidente, mas livre para viveres no teu Oriente, por mais remoto que o desejes, - e aí viver muito bem. Não sejas um vencido. Filósofos, vós pertenceis ao Ocidente." [tradução de Ivo Barroso].
Ir para a África não deixou, em certo sentido, de constituir uma continuação dessa poesia, que contesta de forma tão explícita a civilização europeia. Em "Sangue mau", a identificação com os colonizados é flagrante:
Chega de frases. Enterro os mortos no meu ventre. Gritos, tambor, dança, dança, dança, dança! Não vejo nem mesmo a hora em que, desembarcando os brancos, tombarei no vácuo.
Fome, sede, gritos, dança, dança, dança, dança!
Os brancos desembarcam. O canhão! Há que submeter-se ao batismo, vestir-se, trabalhar.[tradução de Ivo Barroso]
Sintaticamente, a enumeração com a repetição da dança, com seu ritmo tão peculiar, busca encarnar a ruptura com o discurso ocidental. Não é necessário lembrar que aquilo que Rimbaud faz com o ritmo, também na poesia em prosa, é de impressionante maestria - e desafiaria qualquer músico; acho que Britten não conseguiu chegar perto da variedade rítmica de Rimbaud quando musicou parte de Iluminações - mas ouço com prazer, no entanto, o que o compositor inglês logrou.
Por sinal, Iluminações, em alguns de seus textos, leva adiante esse conflito, que é um conflito de culturas - e o desejo de romper com o Ocidente. É o caso de "Democracia", claro. Em "Vagabundos", temos o desconforto com a civilização e a busca desesperada "de encontrar o lugar e a fórmula" do "estado primitivo de filho do sol".
Rimbaud, sequioso de "possuir a verdade em uma alma e um corpo" (o final da Saison) foi literalmente buscar o sol - mas, antes, felizmente, deixou-nos sua parada selvagem.
Tinha comentado, mas sumiu... algo fiz de errado. Enfim.
ResponderExcluirO coment é que li muito Rimbaud no contexto "estudos de literatura" - depois disso, só en passant, só abrindo a esmo.
Mas o que me fascina mesmo é o cara: adolescente lindo, ferrado, arrogante, errante, que tirou Verlaine de casa, coitado, Verlaine que não conseguiu não ir atrás, mesmo penando, mesmo sofrendo por conta da mulher, dos filhos... mas Rimbaud o encantava, o atraía pra sua teia, e ele ia. Bebedeiras, andanças. Paixão desmedida. Me encantam as histórias de amor dilaceradas.
E depois: Africa, tráfico, morte mal explicada.
Rimbaud parece um personagem de mau escritor, que o encheu de qualidades demais, de defeitos demais. Exagerado. Fantástico.
Cara Renata,
ResponderExcluire ainda houve o tiro e o processo penal contra Verlaine! Que depois, logrou publicar a obra de Rimbaud.
Abraços, Pádua
Como assim eu não conheço (só de ouvir falar) um escritor tão marginal? Chego a estar com urticária de vontade de ler Rimbaud e me sentindo completamente ignorante. :(
ResponderExcluirA lista de livros a ler com esse desafio só faz aumentar... Como lidar?
Preciso me manter longe das livrarias por enquanto ou minha expedição não sairá nunca do projeto.
Obrigada por mais essa valiosa dica.
Olá, Niara. Sugiro-lhe o volume "Prosa poética", traduzido por Ivo Barroso, que a Topbooks lançou. Nele estão Uma estadia no inferno e as Iluminações.
ResponderExcluirAbraços, Pádua.
Sempre sonho que estou conversando com Proust e o Rimbaud tá aqui na cama me olhando.
ResponderExcluirQue estranho - Proust não fala nada com Rimbaud?
ResponderExcluirMas é apenas Proust no sonho. Rimbaud fica na cama me olhando, fora do sono, em livros. Eles não se encontram. Se bem que aquele olhar que tudo vê do Proust deve dizer algo quando leio simbolistas.
ResponderExcluirEstamos todos em busca do símbolo perdido, afinal.
Que pena! Tente promover o encontro desse dois, transcreva-o e publique. Daria uma peça ótima o encontro dos dois no sonho de outrem.
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