Dia 01: Um livro favorito.
Por causa de um aniversário, ganhei de uma tia um livro de José Lins do Rego, Fogo morto. Uma vez que Menino de engenho (que minha irmã teve que ler para escola, e eu aproveitei para ler também) não me tinha estimulado, fui trocar o presente na antiga loja de departamentos chamada Mesbla. Acho que eu tinha 13 ou 14 anos.
Nela, vi uma coletânea de um autor que conhecia de nome, Fernando Pessoa. Era O eu profundo e os outros eus, que a Nova Fronteira editou. Levei-a, li Mensagem sem captar o que acontecia, até chegar ao primeiro poema do cancioneiro, "Análise".
Quando cheguei aquele jogo conceitual de paradoxos e antíteses, que eu já conhecia e amava por causa do barroco, a luz se fez (continuo sabendo de cor esse poema). Voltei, então, a Mensagem e entendi. Quando cheguei aos heterônimos, já estava conquistado por essa poesia em que tanto aparece a logopeia, como diria Pound. Uma lira de nervos? E "Tabacaria" ficou sendo meu poema favorito...
Essa antologia tornou-se logo pequena; fiquei querendo saber mais do que estava na legendária arca de Pessoa (ele foi um poeta póstumo). Fui buscar, então, a Obra poética (e, depois, a Obra em Prosa), que a Nova Aguilar (em tempos muito melhores do que os de hoje) lançou, na edição de 1986. O impressionante trabalho era de Maria Aliete Galhoz. Havia uma edição menor; essa de 1986 era grande, com mais de 770 páginas. Eu andava com ela para lá e para cá, mesmo na faculdade. Carregava mais esse livro do que o Código Civil de 1916... Escolho-o agora como favorito.
Dessa época para cá, muito mais se descobriu de Pessoa, inclusive O livro do desassossego, que é seu maior sucesso de vendas no mundo todo e só foi editado nos anos 1980. Os trechos do Desassossego que Pessoa publicou em jornais de Portugal não despertaram interesse algum, o que o teria desestimulado a organizá-los em livro, argumenta Bréchon na biografia Étrange étranger.
De fato, ele não tinha público naquele país. Não é de estranhar, pois, que sua primeira edição "completa" (hoje se sabe que algo assim jamais existirá...) tenha ocorrido no Brasil, pela Aguilar, em 1960. Robert Bréchon estranha o fato; porém, se ele conhecesse algo do meio literário brasileiro, saberia que deste lado do Atlântico o escritor já era admirado havia tempos. Cecília Meireles marcou um encontro com Pessoa em Lisboa, mas ele a deixou esperando... E ela, no livro Poetas novos de Portugal, de 1944, apesar do pouco que se conhecia dele à época, soube destacar sua importância e compreender sua poesia.
Aqui (como em todo mundo, até mesmo, enfim, em Portugal), ele encontrou um público e estudiosos.
Aquela edição da Aguilar foi sucedida por outras (antes, a portuguesa Ática, de forma pouco sistemática, tinha tentado publicar os poemas de Pessoa), mais notadamente pela edição crítica, que Teresa Rita Lopes respondeu com uma edição crítica da crítica... Temos, assim, uma obra aberta, composta essencialmente de fragmentos.
Pessoa, em seu país, de marginalizado passou a canonizado e teve seus restos transportados para o Mosteiro dos Jerônimos em 1985. Alberto Pimenta, no texto "Os 10 acontecimentos literários mais importantes em Portugal entre 1945 e 1995", satirizou essa apropriação do poeta pelo oficialismo lusitano.
Esse texto, que só foi publicado no Brasil (na revista Jandira, da Funalfa, editada por Ricardo Rizzo) era quase todo composto por efemérides! Dois desses "acontecimentos" referiam-se a Pessoa (1888-1935), o único a não ser mencionado explicitamente (um nome já inefável como o de Deus):
6. 1985 - Celebrações do quinquagésimo anno. O Espírito Santo substituiu definitivamente a Revolução dos cravos no coração dos portugueses.
7. 1988 - Celebrações do centésimo anno. Estranhamente, não chegou a bênção papal.
Porém, creio que o mal-estar que sua poesia causa no século XX português não foi apaziguado, como escrevi a respeito da antologia Século de ouro.
Aqui, pode-se ler a arca de Fernando Pessoa na internet: http://arquivopessoa.net/#. Divirtam-se com esta lira de nervos: "God made my shivering nerves His human lyre".
Pessoa é mesmo ótimo!
ResponderExcluirE eu também tive que ler Menino de Engenho para a escola e não gostei... e depois tivemos que ler Fogo Morto também! :-P
sensacional! adorei a lembraça da cecília. seu impressionante trabalho crítico (o seu maravilhoso prefácio do "poetas novos...") nem sempre é lembrado quando se trata da recepção de pessoa. antecipou, com classe, todo o furor pessoano que se daria mais tarde. boa!
ResponderExcluirCara Mari,
ResponderExcluirsabe que até hoje não li "Fogo morto"? Pode ser uma missão para as férias.
sd,
concordo, não se deve esquecer o papel de Cecília na avaliação de Pessoa no Brasil. Nesse prefácio, o que ela diz de Mário de Sá-Carneiro é também marcante.
A Niara mandou eu vir, eu vim. E logo vou me espalhando em comentários auto-referentes (meu umbigo é lindo, só pode). Sou mais prosa que poesia, mas tabacaria é uma espécie de mantra pra mim. Eu copio, sabe. Como se reproduzindo em letras eu estivesse me impregnando delas. E o Bernardo Soares é meu pessoa favorito (acho).
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