Dia 12: Ficção científica favorita
A melhor ficção científica não seria aquela que mostra ficcionalidade da/na ciência? Pensando assim é que eu havia escolhido, tão logo resolvi aceitar este desafio dos 30 dias de leituras, O alienista de Machado de Assis.
O longo conto pertence a um dos maiores livros da literatura brasileira, Papéis avulsos, que Machado publicou em 1882. A Teoria do Medalhão está nele.
Todos conhecem a história de Simão Bacamarte, médico que, às voltas com as mais diversas hipóteses sobre a doença mental, acaba por internar oitenta por cento da população da cidade de Itaguaí na Casa Verde, até que, mudando de hipótese científica, termina por internar a si mesmo (não menos do que isso é a ironia machadiana) e morre sem encontrar solução para o próprio caso.
Itaguaí não tinha asilos, e os loucos andavam soltos ou viviam com as famílias (o movimento antimanicomial nada teria a fazer lá). Simão Bacamarte, o alienista, é que resolve tratá-los e consegue convencer a Câmara dos Vereadores a aprovar o projeto e a fonte do custeio - um novo imposto, com o fato gerador das plumas de cavalo de coche mortuário. Uma ironia de Machado: tais pesquisas financiam-se a partir da morte.
Há mil ironias com a ciência no conto: Bacamarte escolhe a esposa, Evarista, por critérios biológicos-reprodutivos - e, o mais engraçado, ele erra: a união é estéril...
Aqui, quero realçar as relações de O alienista com a história seguinte, Teoria do Medalhão. No Medalhão, pai faz a filho, que acabou de atingir a maioridade, o elogio e a receita dessa figura. Ele deveria tornar-se um, não importando a área que escolhesse para trabalhar. A principal característica dessa figura seria não ter ideias - o pai ensina um regime intelectualmente debilitante para acabar com elas - e as demais características (retórica vazia, marketing pessoal avant la lettre) são explicadas ao longo do conto - a última, não ter ironia...
Se usamos essa categoria, vemos que Bacamarte prende os que fogem a esse padrão, como Martim Brito, que fez um elogio hiperbólico a Evarista e, ao confessar que ele mesmo criou a imagem elogiosa, foi recolhido à Casa Verde. No Medalhão, ter ideias é comparado a sofrer mutilação física - não ter um braço. No Alienista, é uma doença mental.
O palavreado vazio das doutrinas políticas aparece nos dois contos - no Alienista, provavelmente o ponto mais engraçado é o capítulo X, "A restauração", em que o novo governo simplesmente troca os nomes nas minutas deixadas pelo governo rebelde anterior.
Depois da restauração, Bacamarte muda; os próprios medalhões tornam-se os alvos preferenciais - políticos inconstantes em suas opiniões são presos, bem como as pessoas que seguem o que, no Medalhão, corresponde a um regime debilitante de ideias (charadas, anagramas, fofoqueiros).O próprio presidente da Câmara é internado.
Assim, chega-se ao percentual de oitenta por cento da população na Casa Verde (vê-se que o Medalhão, para Machado, era mesmo o ideal nacional...), o que leva Bacamarte a reformular sua teoria e a adotar uma diretriz completamente oposta - que o levará, mais tarde, a internar solitariamente a si mesmo.
Machado acerta o alvo ao criticar de forma tão debochada o cientificismo? Creio que sim; devemos lembrar que doutrinas semelhantes, na época, consideravam os negros, os índios e os mestiços como seres inferiores, e culpavam-nos pelo atraso do Brasil. Isso atingia diretamente o mulato Machado de Assis. Lembremos que até um abolicionista (branco) como Joaquim Nabuco escreveu, em carta, que não se deveria mencionar a cor desse escritor - um episódio tão revelador do Brasil, e silenciado por Angela Alonso na biografia desse político que ela escreveu para a Companhia das Letras.
Já escrevi neste blogue a respeito quando lembrei que declarações de certo deputado federal do Rio de Janeiro, J. Bolsonaro, repetiam as crenças da medicina legal da primeira metade do século XX - correntes mesmo na década de 1990! A edição de 1992 do curso de Hélio Gomes chegava a afirmar que "Para alguns psicólogos, o amor de uma mulher branca por negro e vice-versa pode representar uma forma discreta de tendência masoquista."
O legado do racismo ainda é vasto em nossa cultura. Recentemente, Machado foi usado pela Caixa em mais uma iniciativa de branqueamento do Brasil, em comercial que mostrava as ruas do Rio de Janeiro sem negros, e em que o escritor era um homem branco (diante da grita, a Caixa tirou-o do ar)!
Trata-se de uma ficção científica que realiza este desejo da elite branca no Brasil, o extermínio dos negros e mestiços? Victor da Rosa denunciou a fraude histórica em sua coluna, Ana Maria Gonçalves escreveu brilhante artigo, A Caixa Econômica Federal, a política do branqueamento e a poupança dos escravos, a respeito da eugenia marketeira. Ela recorda o episódio de Nabuco e explica o fundamento jurídico das tentativas oficiais de branqueamento:
Um decreto de 28 de junho de 1890 diz que estava proibida a entrada de africanos no Brasil, e é reforçado por outros em 1920 e 1930, quando os banidos não necessariamente precisam ser africanos, mas apenas parecer. Em 1945, um decreto lei não mais proíbe, mas diz que:
Art. 1o – Todo estrangeiro poderá, entrar no Brasil desde que satisfaça as condições estabelecidas por essa lei.
Art. 2o – Atender-se-á, na admissão de imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência européia, assim como a defesa do trabalhador nacional.
Tal decreto, me parece que foi revogado apenas em 1980. Mas as “características mais convenientes” da nossa ascendência europeia ainda são as desejáveis e estimuladas pelo governo, como nos mostra, exatamente 100 anos depois do pronunciamento de João Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional, esse comercial da Caixa Econômica Federal (ver comercial do mês de setembro.
"Nossa" ascendência europeia?? Trata-se do Decreto-lei n. 7967, de 27 de agosto de 1945, antiga lei de estrangeiros, revogada pela lei n. 6815, de 19 de agosto de 1980.
O artigo segundo, no entanto, já estaria revogado antes da lei de 1980, pela Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, da ONU, celebrada em 1966. Ela foi promulgada, no Brasil, pelo Decreto nº 65.810, de 8 de dezembro de 1969, já no governo Médici.
O Brasil ratificou a Convenção sem fazer a declaração facultativa que permitisse ao Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, criado pelo tratado, receber denúncias individuais ou de grupos de vítimas, que alegassem a violação dos direitos previstos. Essa competência do Comitê, prevista no artigo 14, só foi reconhecida pelo Brasil em 2002, o que foi objeto de promulgação com o Decreto Federal no 4.738, de 12 de junho de 2003. Enfim, apenas no governo Lula - para uma Convenção promulgada nos tempos de Médici...
Apesar de a ditadura militar brasileira ter adotado uma postura isolacionista contra o direito internacional dos direitos humanos, esse tratado foi uma exceção: o governo decidiu ratificá-lo, pois a adesão do Brasil reforçaria o discurso da "democracia racial" no país. E, como o mecanismo ficou internacionalmente ineficaz no tocante ao Comitê, a Convenção não poderia ser perigosa à ditadura brasileira.
O direito pode existir, desde que não seja eficaz - tal solução que a ditadura militar brasileira deu para a proibição do racismo foi exatamente a mesma que Machado de Assis descreveu como conduta do medalhão.
Volto, pois, a Papéis avulsos, a seu segundo conto, o breve Teoria do Medalhão. Nesse conto, a ciência é ridicularizada de forma diferente do que ocorre no Alienista. O pai diz ao filho que ele não deve tentar escrever um tratado científico sobre a criação de carneiros - o que exigiria estudo e esforço - e sim matar um e dar um jantar, o que o tornaria querido na sociedade.
Quanto ao direito, o que deve ocorrer se uma lei não faz efeito, e o mal que ela deveria combater persiste? Em vez de estudar o problema e buscar as soluções, o Medalhão simplesmente lança uma frase de efeito que seja um clichê: "Antes das leis, reformemos os costumes! - E esta frase sintética, transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum, resolve mais depressa o problema, entra pelo espírito como um jorro súbito de sol."
O preconceito é retirado ao pecúlio comum. Ouvi um aluno (louro, curiosamente) querendo justificar a Caixa, dizendo que os negros não tinham mesmo dinheiro para depositar na instituição. E, acrescentei, nem fazer a obra que Machado deixou, não é mesmo?
P.S.: Estava lendo hoje (dia 22 de setembro de 2011) Machado de Assis: o enigma do olhar, de Alfredo Bosi, e encontrei esta frase: "Ser medalhão é atingir aquela plenitude do vazio interior que estava nas dobras da teoria da normalidade do finado Dr. Bacamarte." É mesmo.
Você joga futebol? Na ponta esquerda? tenho pra mim que sim, porque foi um drible brilhante. Nem tenho dúvidas que O Alienista é um dos principais motivos pra eu tratar minha própria profissão com um certo deboche e um tantinho de indulgência.
ResponderExcluirAliás, tão boa quanto a escolha foi a relação com a - afrontosa - questão atual.
Obrigado, mas não jogo não, o futebol hoje é algo muito próximo da corrupção...
ResponderExcluirAbel Barros Baptista, numa entrevista que saiu recentemente, reafirmou a ideia de que Machado continua a ser um passaporte para o Brasil: "muito do que se faz no Brasil sobre Machado de Assis está dominado por uma ideia liquidadora, a de que temos que primeiro conhecer o Brasil para depois conhecer Machado de Assis. Minha experiência de leitor prova exatamente o contrário."
Aqui:
http://angnovus.wordpress.com/2011/09/18/abel-barros-baptista-ao-%C2%ABglobo%C2%BB-%C2%ABos-bons-livros-tornam-nos-estrangeiros%C2%BB/
Abraços, Pádua