O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Desarquivando o Brasil XX: Márcio José de Moraes, juiz do caso Herzog


Neste dia 30 de setembro, falei na semana jurídica da Unesp. E analisei uma exceção à atuação das autoridades judiciais e do Ministério Público como garantes das torturas, do assassinatos e dos desaparecimentos forçados durante a ditadura militar, assunto a que me referi na nota anterior deste blogue.
Trata-se realmente de uma exceção, explicável porque não era um magistrado da Justiça Militar. O juiz federal Márcio José de Moraes julgou a ação em que Clarice Herzog, viúva de Vladimir Herzog, com os filhos, então menores, Ivo e André, processaram a União Federal pelo homicídio do jornalista.
A União sustentou que não poderia ser responsável pelo suicídio. Um consultor jurídico do Ministério do Exército chegou a afirmar que Herzog, quando morreu, não estava preso, contrariando a prova nos autos.
O perito Harry Shibata, que foi um dos que assinaram o laudo de suicídio, revelou não ter examinado o corpo. O magistrado, com esse depoimento, fez muito bem em considerar inválido o absurdo laudo.
Ademais, ele tomou em consideração o depoimento de outros presos, como Rodolfo Konder, que também foi torturado, e pôde ouvir os gritos de Herzog - até que cessaram de todo.
A notável sentença, de outubro de 1978 (ou seja, corajosamente proferida durante o governo Geisel), bem demonstra que, mesmo de acordo com a legislação da época, a prisão havia sido ilegal - e a execução também, naturalmente. Na página que destaco (o documento foi obtido no Arquivo Público do Estado de São Paulo), destaca-se o direito constitucional da proibição de prisão arbitrária, previsto também na então vigente lei de segurança nacional (o famigerado decreto-lei 898/1969) e no Código de Processo Penal Militar:

Esse direito individual, tão comezinho que originariamente conquistado quando da promulgação da Carta Magna de 1215, "... afirma a segurança pessoal. Salvaguarda a liberdade física do homem. Prescreve [deveria ser "proscreve"] o arbítrio..." (cf. MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, "Comentários à Constituição Brasileira", Ed. Saraiva, 1977, vol. 3, p. 92).
Daí porque curialmente não admite exceções, mesmo que se trata de indiciamento em crime contra a Segurança Nacional.

Em outro caso, bem correlato a este, o do operário Manoel Fiel Filho, assassinado praticamente da mesma forma que Herzog, a quase surreal decisão que trancou o inquérito, que já citei neste blogue, caracterizou-se por uma postura metodologicamente oposta à da sentença de Márcio José de Moraes: naquela decisão, a Constituição foi completamente ignorada, e a realidade, negada.
Tal era a cultura duplamente cínica em relação ao direito: não apenas criar uma legislação de exceção que feria garantias constitucionais e do direito internacional, mas também violar sistematicamente essa própria legislação de exceção.
As ações da polícia política no Brasil, pois, violavam sistematicamente a própria legislação da ditadura militar - razão pela qual o apoio institucional da Justiça Militar era tão fundamental para os "porões da ditadura", expressão que julgo inadequada, eis que a ideia de porão não sugere que nela estão inclusos os próprios palácios do poder.
O magistrado que deveria decidir a ação, João Gomes Martins, estava para entrar na aposentadoria compulsória, e a União soube manobrar para que ele não tivesse tempo para decidir. Márcio José de Moraes era muito jovem na época, novo na profissão; provavelmente, imaginava-se que ele não teria a coragem cívica de fazer valer o direito.
Mas ele a teve e honrou o Brasil, honrando suas leis.

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