O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

30 dias de leituras: Stravinsky conclui

30 livros em um mês

Dia 17: Um livro que é um prazer culpado.

Themes and Conclusions (temas e conclusões), foi o último livro que Stravinsky lançou, corrigindo, alterando e combinando dois anteriores, Themes and Episodes e Restrospectives and Conclusions. Ele morreu em 1971, e o livro somente sairia em 1972. De certa forma, ele compila as últimas palavras de Stravinsky. Nessa época, ele não compunha mais.
Em todos esses últimos livros, a ajuda de Robert Craft foi decisiva. Esse maestro, que continua ativo e lançando suas gravações de Schönberg e Stravinsky (os dois gênios com que teve contato) serviu de ombro direito e batuta para o compositor russo em seus longos últimos anos (morreu com 88). De Robert Craft, foi lançado o interessantíssimo Diário em uma edição praticamente legível da Difel, com vários erros de revisão.
O livro da dupla diz coisas brilhantes sobre música, o que é fonte tanto de meu prazer quanto de minha culpa: alguém que conhecesse a teoria dessa arte aproveitaria o livro muito mais do que eu. No entanto, leio-o, na impertinente condição de intruso curioso.
Stravinsky não tinha os talentos literários de Schönberg que, sem ser um grande escritor, foi capaz de escrever o próprio libreto para Moisés e Arão, bem como elaborar obras técnicas como o tratado de harmonia. O que Stravinsky tinha era o talento para as tiradas agudas, o que fez com que a entrevista fosse o melhor formato pelo qual podia se expressar. Esse gosto pelas tiradas permite-lhe espalhar citações, geralmente de poesia francesa, como esta "atualização" de Baudelaire: "luxe, calme, and fat bank accounts".
E é um livro de reconciliação com músicos (Beethoven, por exemplo) e outros artistas (como Nijinsky) que ele havia criticado duramente.
A primeira parte é composta de notas, que incluem observações sobre outros compositores. Stravinsky, em geral, é cruel com os colegas, um pouquinho mais do que a média dos músicos eruditos. De Messiaen, por exemplo, ataca Turangalîla ("plus d'embarras que de richesses"), é malicioso com Britten... Há também notas para programas de apresentações e um memorial para Eliot.
Ele foi muito mais próximo de Auden (que escreveu, com seu companheiro Chester Kallman, o libreto da última ópera de Stravinsky, The Rake's Progress), mas também conheceu Eliot pessoalmente. Stravinsky conta do desinteresse do poeta por prosa (que ele cita dizendo "I confess I never finished War and Peace"); indiscrição do músico? Não: mais adiante vemos o compositor dizer que não consegue compor para textos em prosa, e sim apenas para versos. Ele também registra a desconfiança de Eliot em relação à ONU por antieuropeísmo, o que pode soar como um etnocentrismo do poeta.
O memorial termina com uma história que Craft também conta no Diário: os dois, com suas respectivas esposas, jantavam juntos e o maître diz para outro funcionário que lá estavam o maior poeta e o maior compositor vivos. Constrangimento geral, quebrado por Vera Stravinsky: "Bem, eles fazem o melhor que podem."
A segunda parte possui mais substância. E é belo o que ele diz dos quartetos de Beethoven, e também inesperado, pois ele havia passado boa parte da carreira falando sandices sobre esse compositor. Toscanini deixou de falar com Stravinsky (isto pode-se ler nas biografias do maestro) por este ter-lhe dito que achava Beethoven um blefe! Vejam a falta de tato do compositor russo: falar uma coisa dessas logo para um dos maiores intérpretes das nove sinfonias!
Ele havia passado a acreditar que "os quartetos são uma declaração de direitos humanos, e uma eternamente sediciosa no sentido platônico da suversão artística."
E mais:

Um alto conceito de liberdade está encarnado nos quartetos, tanto além quanto incluindo o que Beethoven, ele mesmo, quis dizer quando escreveu ao Príncipe Galitzin que sua música podia "ajudar a humanidade sofredora". Eles são uma medida do humano [...]

Stravinsky faz reparos técnicos a algumas das sinfonias, não obstante seu amor pelos quartetos de cordas.
A terceira parte do livro é composta de prefácios e cartas (é interessante ver o amor do compositor pelas invenções rítmicas da Renascença, bem como as respostas sarcásticas ao indizível crítico de música que o jornal The New York Times tinha na época, e cujo nome não escreverei).
A breve quarta parte é dedicada a maestros e a reger (métier que Stravinsky nunca chegou a dominar), com alguns ataques (o mais feroz, contra Furtwängler), esperados depois da terrível frase inicial: "Maestros, como políticos, raramente são pessoas originais (não é por sua regência que Mahler e Strauss são lembrados)." Klemperer, Stokowsky e Bernstein são elogiados (com algumas reservas), Bruno Walter, Pierre Monteux e Mitropoulos também (mas sem reservas).
A quinta parte, de críticas, contém uma comparação, seção por seção, de três gravações da Sagração da primavera: a dele mesmo, a de Pierre Boulez e a de Zubin Mehta (a segunda de Boulez e a primeira de Mehta, em relação a essa obra), uma crítica dos escritos de Wagner (Stravinsky bem nota que Goebbels e Rosenberg poderiam ter escrito parte deles), e das cartas de Schönberg, com quem se solidariza e, o mais interessante, uma análise detida dos últimos quartetos de Beethoven, a propósito do conhecido livro de Joseph Kerman. Stravinsky demole os preconceitos contra a Grande Fuga, esta música que é minha favorita de todos os tempos.
A sexta parte inclui mais Beethoven (as sonatas para piano) e apreciações sobre o panorama da música contemporânea, em que se confirma a sua conversão à Segunda Escola de Viena: muito mais importante do que um maestro especialista em Brahms seria alguém, como Boulez, simpático aos três As: Arnold (Schönberg), Anton (Webern) e Alban (Berg) - uma brincadeira com o dito de Bülow sobre os três Bs, Bach, Beethoven e Brahms. Sabemos que Robert Craft foi responsável por isso. Na época em que os admiradores de Schönberg e de Stravinsky digladiavam-se, Stravinsky, de fato, não conhecia a música do "rival". Depois da morte do pai da música dodecafônica, Craft conseguiu fazer essa apresentação. Pode-se lê-la no Diário: Stravinsky ficou desconcertadíssimo com a qualidade da música e, por um tempo, não se julgou capaz de compor de novo.
Ainda nessa parte de Themes and Conclusions, um artigo sobre o seu amigo Auden (Huxley, que é às vezes mencionado neste livro, foi outro escritor que foi um grande amigo de Stravinsky).
Nos anexos, duas cartas da esposa de Stravinsky, temos uma nota bem pessoal: ele era um octogenário e tinha vários problemas de saúde. Pouco depois, morreria esse gigante da música, que ainda conheceu pessoalmente grandes do século XIX (Rinsky-Korsakov), passou por praticamente todos os outros grandes compositores da primeira metade do século XX (Debussy, Berg, Prokofiev) e chegou até aqueles que lhe sobreviveriam, como Stockhausen e Ligetti (mortos recentemente) e Boulez, que permanece conosco, regendo e criando música nova. Stravinsky deu-nos praticamente um século de música, com uma obra que soube não só refletir como compor sua época.

Um comentário:

  1. Esse deu vontade de ler o livro... adorei o comentário da Vera Stravinsky. L'invitation au voyage é dos meus Baudelaires mais antigos. Adoro histórias "mais ou menos reais" de gente real. E, sobre a culpa: linda a frase sobre o impertinente curioso. O que seria de nós se não houvesse a impertinência e a curiosidade. Que, como diria Leminski, "ainda vai nos levar além".

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