Dia 05: Um livro que faz você rir.
Este é um livro de meus vinte anos - um volume da antiga Civilização Brasileira que trazia Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande. Dos bancos escolares, conhecia a fama do Miramar. No entanto, gostei muito mais do outro romance.
Em geral, não tenho interesse pela poesia de Oswald de Andrade. No romance, porém, ela cumpre admiravelmente seu papel na narrativa dos primeiros anos do protagonista. Poesia, diário, aforismos, um "testamento", abaixo-assinado - textos das mais variadas formas compõem o livro. Foram justamente esse hibridismo e as colagens o aspecto que mais me atraiu quando o li pela primeira vez, mais ainda do que as várias tiradas de humor: "Ela baixou a cabeça. Perdeu a sintaxe do coração e as calças.", "Mas eu sou o único cidadão livre desta famosa cidade, porque tenho um canhão no meu quintal.", "Defendo o direito das convulsões sísmicas!", "O Brasil é uma República Federativa cheia de árvores e de gente dizendo adeus."...
Outro elemento nessas colagens que concorre para o humor são as citações e epígrafes, escolhidas de forma hilariante e improvável, como Tomás de Aquino, o teólogo e santo católico, para o assunto da fornicação...
Haroldo de Campos, no estudo incluído no volume, "Serafim: Um Grande Não-Livro", pareceu-me corretíssimo em discordar de Antonio Candido - que julgou que esse era um "fragmento" de grande livro. Haroldo caracterizou-o, em vez disso, como "um grande não-livro de fragmentos de livro".
Para mim, porém, livros também podem ser assim. Eu mesmo sempre quis os hibridismos - se tiverem humor, então, melhor ainda.
O protagonista faz uma trajetória oposta à dos portugueses: do Brasil, chega à África (ao Congo belga!) e então a Paris - a França teve um papel importante para o próprio autor. Vai à Palestina, então britânica, um "país estéril, a fim de não estragar com a maldição de Deus uma Suíça ou uma Itália.", explica-lhe um padre segundo uma "visão econômica". O capitalismo: "A Standard Oil comprara Sodoma e negociava Gomorra para explorar o querosene das punições." ("Os Esplendores do Oriente" - na datação do livro, de 1929 "para trás", Oswald de Andrade associa a era cristã a Wall Street). Chega ao Egito e tem mais aventuras amorosas.
Em geral, suas aventuras se dão com mulheres, mas o herói é pansexual; vejam estes dois diálogos na seção "Cérebro, Coração e Pavio":
Serafim - Toma você o lête com azucár?
A aluna - Sim. Eu tomô o lête com azucár. O relójo tem duas ponteiros, uma grande e uma curto.
Serafim - Gosta você do professor?
A aluna - A-pi-za-do-pro-fe-zor-é-de-lei-ta-vél!
O relógio intervém. Confusão de línguas.
- E sobre o eterno feminino?
- Adoro as mulheres de Dumas Filho...
- E os homens?
- Os de Dumas Pai!
- Garçon! um gin seco, um side-car e especiarias!
Nosso herói oferece ao jovem moço recondução, hotel e vias urinárias.
Mas essa liberdade sexual é exercida em Paris; no Brasil, foi obrigado a casar-se com Lalá (embora a traísse abundantemente).
O livro parece encerrar-se com uma "Errata" (muito engraçada, que não contarei) e, alucinadamente, não termina nela; no fim, temos "Os Antropófagos" - afinal, segundo Oswald de Andrade, rege a lei da devoração universal. Um navio é tomado nas ilhas britânicas, com o secretário Pinto Calçudo. Ele se torna algo como a Ilha dos Amores de Camões, só que muito mais libidinosa. É instituída no navio El Durasno, "base do futuro humano, uma sociedade anônima de base priápica".
Para escapar do "contágio policiado dos portos", declaram "peste a bordo". Trata-se mesmo da "humanidade liberada" contra a "falta de imaginação dos povos civilizados"? Sim, se a liberdade é uma peste.
O livro, apesar de todas referências europeias, quer atacar a "a cristianização do Direito Romano também conhecida pelo mote de Civilização Ocidental". Nessa crítica, há momentos paralelos a Gilberto Freyre: "No país animal foram as senzalas que mandaram as primeiras embaixatrizes aos leitos brancos." (final de "Cérebro, coração e pavio"). Serafim foi publicado no mesmo ano de Casa-Grande e Senzala, 1933.
O interessantíssimo prefácio do autor critica esta "bosta mental sul-americana", onde o contrário do burguês não era o proletário, e sim o boêmio. "Com pouco dinheiro, mas fora do eixo revolucionário do mundo, ignorando o Manifesto Comunista e não querendo ser burguês, passei naturalmente a ser boêmio."
Há algo disso no protagonista de Serafim Ponte Grande - ele está quase alheio ao mundo do trabalho - mas há muito além, pois ele aponta para a utopia antropofágica. Nisso, o livro envelheceu muito menos do que as obras mais pesadamente comprometidas com a defesa do comunismo (gosto mais dele do que de O rei da vela, por exemplo), indicando um futuro que não veio, enquanto o presente que denuncia e satiriza, embora tenha envelhecido, permaneça ainda entre nós:
Comprei um Código Civil, visto que os jornais anunciam que o povo ordeiro e trabalhador volta provisoriamente à forja das ocupações, os mendigos às pontes, os bondes aos trilhos.
Este livro não volta à ordem; sua gargalhada impede a acomodação.
Oswald de Andrade é um autor que entraria com quase qualquer de suas obras no meu meme no dia 25...minhas primeiras impressões sobre ele são sempre ruins. Só a segunda (ou terceira leitura, com espaço de anos) é que me (ou O) redime.
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