O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

30 dias de leituras: Apuleio e os tráficos entre o humano e o animal

30 livros em um mês
Dia 11: Livro favorito com animais

Um célebre e genial livro com animais é O asno de ouro, de Apuleio, do século II. A história é conhecidíssima: depois de um erro nas artes mágicas, o protagonista é transformado em um asno, é roubado e, após um percurso extremamente acidentado (uma iniciação cheia de provas!) finalmente recupera a forma humana.
Muito antes de ler o livro, havia descoberto a história do Asno na obra infantil de Monteiro Lobato. O relato é coalhado de outros, como é comum nos livros antigos. O mais célebre deles é o de Psiquê e Eros - no qual lemos que a Sobriedade é uma mulher grosseira e suja...
Trata-se de uma literatura (uma época) em que os deuses podiam entrar em diálogo com os humanos, e os humanos com os animais - e mesmo os vegetais. Os três planos podem se relacionar: as formigas auxiliam Psiquê em uma das provas impostas por Vênus; um caniço faz o mesmo, impedindo que ela se suicide jogando-se em um rio. No final dessa história, sua união com Eros é reconhecida pelos deuses e ela ganha estatuto divino. Na cerimônia de Ísis, no fim do livro, os deuses se servem de "pés humanos".
Além da lei dessas transformações, há outra lei que se repete no livro: a do furto e do roubo - o apossamento. Os ladrões abundam em cada página do livro, e o asno troca de dono todo o tempo por esse motivo.
A conversão e a comunicação entre esses estados, humano e animal, encontraria um paralelo nas transferências de posses? Nesses tráficos? Da passagem de dono para dono obedecendo tão-somente ao apossamento, e não às garantias da propriedade? E é curioso que, depois de o asno furtar comida, desconfiem de sua natureza.
Essas conversões - de posse e de estado - cruzam-se no livro: um ladrão, Trasileão, veste-se de urso para melhor roubar - nessa condição, é morto. Lemos então que a boa-fé não se encontra entre os vivos, devido à sua falsidade. A boa-fé dos mortos dever-se-ia, pois, ao fato de eles não poderem mais se transformar? Afinal, no episódio em que o profeta egípcio traz de volta a vida, por um instante, a um morto envenenado pela esposa, o assassinado reclama que foi retirado ao repouso.
O repouso não é a condição dos vivos, que se transformam, nem da mercadoria, que muda de mãos. Porém, ela muda, no livro, fora das condições legais da compra e venda, assim como Lúcio converte-se em asno por magia, e não devido às condições normais do desenvolvimento orgânico. Trata-se de uma outra lei.
A ordem mágica - mesmo nesse livro, proibida oficialmente pelo direito - seria correlata ao apossamento? Isso seria compatível com o final do livro, em que Osíris aparece em sonhos a Lúcio, já humano para toda vida, e incita-o a continuar sua carreira na advocacia (por sinal, ele atribui aos deuses os ganhos como advogado). Sua lei já era outra, oficial, e compatível com os Mistérios que professava. E o próprio livro pode ter sido parte de uma estratégia para livrar-se das acusações de magia que sofreu.
O cristianismo condenaria essas passagens, esses tráficos. Sobre as metamorfoses - um dos nomes de O asno de ouro - Agostinho escreve que há motivo para não acreditar que Apuleio tenha se transformado em asno - a arte dos demônios seria incapaz de dar uma forma irracional ao corpo; sonhos e estados letárgicos é que seriam responsáveis por alucinações desse tipo (capítulo 18 do livro XVIII de A cidade de Deus). E, no livro IX, discorda de Apuleio e nega que demônios possam ser mediadores entre os deuses e os homens. Haveria somente um Deus e Jesus seria o mediador.
A Deus o que é de Deus. Trata-se mesmo de uma outra ordem do mundo...

Um comentário:

  1. E eu também, claro, conheci o Apuleio por Lobato. Você lembra que Lúcio - o asno - fica amigo do povo do sítio do Picapau? A história é muito boa, e só muito depois é que esbarrei com o original. Tô te dizendo: devo muito ao cara. E não seria justo nem honesto deixar de reconhecê-lo. Porque até hoje os deuses - esses aí - estão na minha vida, por artes transversas. Roubei a Ilíada em francês e grego da biblioteca do meu colégio - fazendo um favor ao livro, que era antigo e tava ainda com as páginas todas grudadas. Tudo por conta de Lobato...

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