Já escrevi uma nota sobre o ensino do direito, lembrando que Haroldo Valladão associava a falta de seriedade do ensino jurídico à decadência de um país.
O jurista tinha cometido um exagero, evidentemente, Não há uma relação direta entre esse fator e a decadência. Algo muito mais importante é o ensino fundamental - sem numeramento e letramento, não há biólogos, físicos, educadores... nem mesmo advogados.
O Brasil de hoje comprova a evidente tese de que, sem ensino fundamental, não pode haver advogados. Pensemos no exame para obter carteira de advogado. A OAB pediu ao Ministério da Educação intervenção nas noventa faculdades de direito (de 610 no Brasil), todas privadas, que não foram capazes de aprovar ninguém na última prova da Ordem (eis a lista). Quase 12% de candidatos alcançaram sucesso na prova e quase 15% das instituições não aprovaram ninguém. Trata-se de apenas uma pincelada no quadro lamentável do direito no Brasil - vejam o quadro completo das instituições no último exame.
Devido ao histórico empenho do Ministério da Educação em aprovar dezenas e dezenas de instituições para que a OAB deu parecer negativo, podemos ficar céticos no tocante ao resultado do pedido da Ordem.
Essa prova exige um bom nível de letramento, razão pela qual não muitos têm nela sucesso. Neste país, também os universitários não leem livros; vejam os números horripiliantes dos estudantes das universidades federais: na UFMA, quase um quarto deles não lê um livro sequer por ano. Resta ver que números, provavelmente menores, os outros estudantes apresentariam.
O iletramento generalizado dos bacharéis candidatos à advocacia manifesta-se em erros atrozes no exame da OAB. Pobre do cliente que, com pouco nível de letramento, ficasse nas mãos de um profissional como esse, caso ele pudesse tornar-se advogado. Seria ameaçador para a cidadania - pois ela tem, como um de seus elementos, o acesso à justiça.
Apesar dos problemas, o sucesso das instituições federais e estaduais continua: (eis a lista). A UnB, que foi atacada recentemente por um semanário, foi a melhor entre as públicas, com quase 68%.
Imagino também a preocupação da OAB com o mercado da advocacia - profissionais iletrados venderiam mandado de segurança a um real por folha.
Tratar-se-ia de uma distorção oriunda de um exame dificílimo? Mas a avaliação do Ministério da Educação, muitíssimo diferente, também aponta graves deficiências. O Enade apontou que nada menos do que 34% dos cursos avaliados em 2009 (entre eles, os de Direito) são de baixa qualidade.
O ex-ministro Paulo Renato colaborou com essa degradação. Entre a educação e os interesses dos empresários da educação (alguns deles, políticos), o governo federal não hesitou. Afinal, direito é um curso relativamente barato, não tem turno integral, não exige laboratórios caros... No governo do PT, a criação de cursos novos diminuiu, porém. A punição da redução de vagas é suficiente, porém, sabendo-se que muitas delas são meramente virtuais? O público que vê os números de redução de 20 ou 40% das vagas geralmente ignora que as instituições privadas muitas vezes oferecem mais vagas do que conseguem preencher, o número de vagas oficiosas é surpreendente, e o corte acaba sendo, de fato, muito menor.
Há uma convergência de interesses dos donos dessas instituições com boa parte de seus clientes em baixar o nível de qualidade do ensino. Por isso, é necessária a atuação firme do Estado na fiscalização do ensino. Como ele não a faz, é feliz que a OAB não tenha esmorecido. Sem ela, já teríamos cursos de direito em dois anos com todas as matérias em educação à distância. Afinal, essa maravilha tecnológica desobriga as instituições de construir mais salas e puxadinhos - com ou sem janela - para jogar os alunos dentro.
Há um grande clientela para essas instituições: sendo o ensino fundamental péssimo, é claro que boa parte dos estudantes terá que virar consumidor desse serviço ruim. E ele quererá, exigirá a baixa qualidade - de outra forma, não poderá formar-se.
Dessa forma, formam-se ambientes em que o cinismo é estrutural: criam-se estabelecimentos com o nome de universidade em que pouco ou nada acontece parecido com ensino, extensão e - o mais raro de tudo - pesquisa. Tentativas de seriedade são logo abortadas, pois trata-se de um serviço curioso, em que os clientes desejam de tudo má qualidade, e não querem receber nada além do que já possuem.
Que instituições com notas baixas no Enade tenham tido aumento de procura de matrículas não me espanta nada: as notícias de que o ensino é ruim funcionam como atrativa propaganda para essa clientela.
Creio que essas escolas do cinismo são perigosas para a sociedade - trata-se, talvez, no caso de alguns, da criação de um exército de reserva para o fascismo. Isso deveria ser pesquisado, cientistas sociais: o que é aprendido nos lugares em que quase nada se aprende? Que representações os clientes deses estabelecimentos criam? Depois do fim do tempo do curso, que relação mantêm com as empresas onde se formaram? Como trabalham os que não podem trabalhar em sua área, e como e para que fins eles se associam?
Vejam a matéria de Rodrigo Haidar no Consultor Jurídico, de que transcrevo breve trecho:
O secretário-geral da OAB sustenta que o fim do Exame de Ordem beneficia os donos de “péssimas faculdades”, que reduzem “o ensino jurídico a mercado”. As estatísticas mostram que ele pode não estar descoberto de razão. Mesmo com o Exame de Ordem, se mantidos os números de aprovação da última seleção, entrarão no mercado, por ano, 50 mil advogados.
Furtado Coêlho citou que 92% dos pareceres da OAB são contrários à abertura de novos cursos de Direito. Garantiu também que grande parte dos países civilizados do mundo exige exame semelhante para que o bacharel tenha direito de advogar. Estados Unidos, Reino Unido, Itália, Suíça, Japão, Áustria, França, Finlândia, México, Chile, entre outros, foram citados pelo conselheiro.
De fato, o exame não é uma invenção brasileira - o internacionalista Luiz Olavo Baptista escreveu breve texto a esse respeito. Curiosamente, no entanto, o Ministério Público opinou recentemente pela inconstitucionalidade do exame em recurso de bacharel, que subiu para o Supremo Tribunal Federal. Trata-se de caso em que a cidadania de novo se confronta com os interesses de empresários que exploram o ensino.
Já houve várias tentativas de contestar judicialmente o exame da Ordem - até por meio de habeas-corpus, instrumento completamente inadequado para esse fim, de dispensar a prova da OAB, como alguns leigos provavelmente também sabem.
Aqueles empresários, por meio da interposta pessoa desses bacharéis, ganharão o combate? O mais patético é que acabar com esse exame não resolve o problema para os clientes formados por aquelas instituições: o mercado é tão congestionado que boa parte daqueles que consegue passar na prova - e são, provavelmente, os mais preparados - não consegue jamais trabalhar na área.
Talvez o futuro desses bacharéis que não servem para o mercado seja o de formar clientela para os cursos de pós-graduação das instituições que os formaram - e, no futuro, tornarem-se professores desses mesmos estabelecimentos, sedimentando aquela cultura cínica em relação ao ensino. Creio que o MEC já notou esse processo e, por essa razão, está agora empenhado em aniquilar os mínimos padrões acadêmicos também na pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado). Vejam a séria manifestação de Fernando Facury Scaff, Gilberto Bercovici, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Luiz Edson Facchin e Ricardo Pereira Lira sobre as novas facilidades do MEC para a criação de mestrados profissionais.
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