30 livros em um mês
Dia 16: Um livro favorito que se tornou música.
Quando imaginei este tópico (inspirado no "livro que virou filme"), pensei no Otelo de Shakespeare. Não estava pensando no Rossini (aliás, só conheço trechos da ópera dele), e sim na ópera de Verdi e Boito, que é magistral inclusive nas cenas que se afastam da peça, como este dueto de amor, Già nella notte densa, no final do primeiro ato, que resume os acontecimentos do começo de peça de Shakespeare - e que não aparecem na ópera, que inicia com a chegada de Otelo após vencer os turcos.
Mas essa não é minha peça preferida do autor, e sim A tempestade. E a outra peça de que gosto tanto quanto esta é Woyzeck, de Büchner (1813-1837), que inspirou a Alban Berg uma das maiores partituras do século XX, a ópera Wozzeck.
A história do texto e do autor é quase tão dramática quanto a da peça. Tendo morrido de meningite aos 23 anos, Büchner deixou a peça manuscrita em papéis soltos. Ela não foi publicada, inicialmente, com o restante da obra. Ao longo do tempo, a tinta esmaeceu - mas uma primeira edição do texto saiu em jornal em 1878. A dificuldade de decifrar o texto fez com que, ainda no inicio do século XX, o próprio título - e nome do personagem principal - fosse lido erradamente, Wozzeck e não Woyzeck. Por isso a ópera de Alban Berg, que estreou em 1925 (na regência de Erich Kleiber), tem um nome diferente da peça. Não há uma "edição definitiva" da peça, há alternativas e possibilidades de encenação.
Büchner era um homem politicamente engajado; contra o Antigo Regime alemão, defendia os direitos humanos e pensava que a relação entre pobres e ricos era o único elemento revolucionário - ele estava à esquerda mesmo de Heine, cuja presença já não era admissível nos Estados alemães. Como o poeta, morreu no exílio, porém na Suíça - Heine morreria em Paris.
O texto continua vivo nos palcos e inspirou tanto músicos eruditos quanto populares. Nick Cave e Warren Ellis escreveram música para uma montagem recente da peça.
Uma das minhas maiores experiências no teatro foi assistir a essa peça em Buenos Aires em uma montagem impressionante (passava-se em um circo e tinha música ao vivo regida pela maestrina "Alba Berg", na verdade Cecilia Candia) dirigida por Emilio García Wehbi, a partir da adaptação de Ricardo Ibarlucía, que incluía muito adequadamente poemas de Paul Celan. O excepcional ator que interpretava o protagonista, Guillermo Angelelli, arrancou aplausos no meio do espetáculo: era uma cena em que nada dizia, apenas carregava coisas para fora do picadeiro.
Woyzeck, pobre, soldado, cobaia de experiências científicas, identifica sua classe social no palco: "Wir arme Leute" (Nós, os pobres) - e, se os pobres vão ao céu, é para trabalhar e fazer os trovões... As críticas ao capitalismo, ao militarismo (muito antes das Guerras Mundiais) e até à biopolítica, que a peça antevê nas experiências médicas de que Woyzeck é cobaia, vão de braços dados com a forma fragmentária. Muitos antes de Maiakóvsky, era revolucionário em política e em estética - A morte de Danton, sua primeira peça, já era um trabalho muito original. Woyzeck ainda é tão provocante que, em 1978, ela foi proibida, numa montagem do Teatro Universitario de Buenos Aires, pela ditadura militar...
Em uma conferência sobre a peça, perguntei ao palestrante se Büchner realmente achava viável montar essa peça; de tão inovadores eram o conteúdo e a forma, esse era um texto que nenhum teatro aceitaria; se algum o aceitasse, seria proibido pela censura; mesmo se não fosse censurado, o público não viria; e, se o público viesse, lincharia o autor. Parece-me que Büchner escreveu a partir e contra o seu próprio tempo - e, por isso, somente no futuro montagens seriam possíveis. O palestrante, porém, não achou a pergunta interessante e ignorou-a. No entanto, ainda penso que ela faz sentido; e que, se o texto não envelheceu, é porque em suas veias ainda pulsa o sangue do autor, que teria sido derramado, e dos pobres da peça - que continua a sê-lo.
A peça teve várias repercussões no teatro do século XX; tese de Bernhard Johannes Schwarz analisa a influência de Büchner em Brecht.
A música da ópera de Alban Berg, igualmente, é de uma grande coragem artística e até hoje pode soar como vanguarda (pelo menos para quem só chegou até La Bohème...); no primeiro e no segundo atos, ele ainda sua formas como fuga e passacalha para estruturar as cenas (mas a forma musical não se sobrepõe ao teatro, o que é impressionante - sua arquitetura não deixa ver os alicerces do edifício), mas o terceiro ato é todo feito de "invenções": sobre um tema (a leitura da Bíblia por Marie), uma nota (a cena de assassinato), um ritmo, uma tonalidade (o interlúdio em ré menor), sobre um ritmo persistente.
Para quem não a conhece, sugiro ouvir a cena da taberna, em que Wozzeck descobre que é traído por Marie, no teatro e num filme com uma representação tradicional (com regência de Bruno Maderna e as vozes de Kurt Moll e de Franz Grundheber interpretando os bêbados - este cantor se tornaria um grande Wozzeck e gravaria a ópera com Abbado); o final da ópera, a partir da cena em que Wozzeck procura a faca com que matou Marie.
Depois disso, talvez se possa enfrentar a cena em que Wozzeck mata Marie (na regência de Sylvain Cambreling, com os cantores Dale Duesing e Kristine Ciesinski) - e o fortíssimo na nota si...
Tão forte foi o impacto de Woyzeck que, se eu tivesse mantido o tópico original, "livro que virou filme", ainda assim poderia ter escolhido esta peça de Büchner, pois Herzog fez um filme a partir dela. O ator principal é ninguém menos do que Klaus Kinski, em fortíssima atuação.
Para ler a peça em português, temos a tradução de (meu amigo) Tercio Redondo, publicada pela Hedra. Espero que sua tese sobre esta obra-prima do teatro seja também publicada.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
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