Cartilagem e poesia
Pádua Fernandes
“Se a sereia gritar por socorro/ nem por isso deixa de matar o marinheiro”, escreve Leandro Rafael Perez; ao menos desde Homero, o canto das sereias é uma das vozes possíveis da poesia; ao menos desde Mallarmé, é necessário saber que elas dizem o nada – e o autor deste livro tem consciência disso: “a vastidão me espera em vão gorada nas orlas/ e de uma crueza triste junto ao cerne mofado./ Eu sempre soube que odiaria as gaivotas.”
No entanto, a que nada se destina a lança além do real só? O livro propõe para si uma série de desafios, com risco de dispersão. Aquele que encontra mais êxito é o da voz que nasce das águas (“Quando chove em vários sentidos” é o verso mais retomado), busca singrar novas vias no corpo (“Gosto de fazer braços eloquentes:/ Não o exagero oceânico pianista/ que até as bailarinas têm, tufões,/ quero-os capazes de fist-fucking”) e questiona os gêneros: “trabalhar é homem ter bigodes fartos/ trabalhar é mulher ter os seios que quiser/ travesti bigodudo não tem cliente?/ Vem que a gente constrói um lar junto, meu bem.”; nesta singela oração, lemos “Que todo pai seja padre de um filho travesti.”
Ana Cristina Cesar releu a sereia e as águas pela via do corpo. Leandro Rafael Perez busca também fazê-lo, por paisagens noturnas: “procuro quais holofotes fizeram pélvis,/ pernas, triângulo escaleno, descalça, os seios oculares.”
Com isso, demonstra uma sensibilidade às vezes parente de Mário de Sá-Carneiro (em versos como “Se eu fosse mulher,/ iria a festas longos/ com máscara entre os cabelos”) e de Lúcio Cardoso (testemunha-o “Evite desperdiçar lares toda/ vez que tacar fogo numa casa”).
Quando lemos “cartilagem por sobre o furo perfeito só me esperando voltar a usar brinco cumprido de mulher.”, e o brinco não é comprido, mas algo que se propõe cumprir, uma promessa que se deseja realizar, passa-se a esperar o mesmo desta poesia. Esperar que ela possa tomar posse do corpo e, assim, cantar de acordo com o desejo:
os meus braços quero tê-los assim gêmeos
como os teve minha vó ou meu tio bêbado,
eloquente e eloquente,
quero tê-los inteiros:
palma e dorso, axilas, cada detalhe,
pois não há cotovelo que sozinho baste
ante minha solidão eloquente, eloquente.
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