O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 11 de outubro de 2011

30 dias de leituras: Carta sobre Ana Cristina Cesar

30 livros em um mês

Dia 25: Um livro de que você não gostava e agora ama.

Eu não gostava porque não tinha lido, simplesmente por isso; conhecia apenas alguns trechos publicados em antologias. Por estupidez minha, também. Não me lembro quando, aos vinte e tantos anos, é que percebi que se tratava de uma autora genial e passei a caçar o livro, que não estava em catálogo porque a editora, que tinha sido importante nos anos 1980, havia sofrido muito com a morte inesperada de seu dono.
Achei-o na capa original, de Waltercio Caldas. Depois, o Instituto Moreira Sales e a Ática, em conjunto, relançaram-no com outro projeto gráfico. Trata-se de A teus pés, de Ana Cristina Cesar.
Já escrevi que a considerava uma poeta política - expliquei-o quando estive no evento Voz do Autor da USP, aliás. E disse que fui influenciado por ela, que não tem culpa disso.
É interessante, para relê-la, perceber o complexo jogo intertextual da autora; perceber como ela se apropria criticamente de textos alheios, em vez de, como fazem certos poetas brasileiros, citar versos alheios para ficar bonitinho, para parecer erudito, por esnobismo, para dar menos trabalho ao eventual tradutor. Aconselho, já que a tese de Michel Riaudel não foi publicada, a assistir à conferência de Riaudel, em ótimo português, na USP, e que menciona o trabalho de tradução e os diversos erros nas edições póstumas da poeta. Estranhamente, pouca gente o viu no YouTube; estudantes de Letras, cadê vocês?
Outro problema é que nas partes 5 e 6 repetiram o mesmo vídeo...
Riaudel é o seu tradutor na França. Em francês, pode-se ler este artigo sobre o mesmo assunto: Cesar como tradutora.
Nos idos de 1998, certo escritor, Bruno Tolentino, assinou em uma revista de variedades mensal resenha da reedição de A teus pés, indignadíssimo com o cuidado projeto gráfico do IMS e da Ática, que estaria a vestir uma poesia indigna. O título da resenha bem condizia com a falta de sutileza do poetastro: "A lorota de Ipanema".
A resenha tinha vários erros (e mostrava que o Tolentino nem tinha lido de verdade o livro, que ele achou que era a "obra completa" da autora). Escrevi uma carta impublicável em resposta. A revista não o fez, publico-a agora, achando engraçado o modo como eu escrevia antes dos trinta anos:


[...] espantei-me de encontrar um artigo sobre anedotas no número 11 da revista: "a lorota de Ipanema" (p. 64). Título enganador, porém: o artigo não é sobre anedotas de bairro, é apenas anedótico: uma tentativa de resenha, fracassada em quase todos os pontos, como se verá adiante. Não se discute, é claro, a opinião do resenhista, que é assunto subjetivo; o que se deseja apontar é o seu desconhecimento da poesia em geral e sua leitura escandalosamente epidérmica da obra em questão, A teus pés, de ana Cristina Cesar.

1. Desinformação:
1.1 A teus pés, ao contrário do que pretende o resenhista, não é a obra póética completa; quantidade maior que a publicada ficou inédita à época da morte da poeta, e foi lançada pela Brasiliense. Ivan Junqueira, poeta, tradutor e intelectual admirado pelo resenhista (mas não muito lido, provavelmente) escreveu emocionado ensaio sobre Inéditos e dispersos (In Memoriam, O Encantador de Serpentes, Rio de Janeiro: Alhambra, p. 199-210, 1985).
1.2 Entre os versos destacados como "amostras grátis" da "versão canônica do banal e do gratuito", está, muito curiosamente, uma passagem de Drummond que foi objeto da "cleptomania estilística" (na expressão do prefaciador) da autora; Drummond, poeta em que o resenhista ainda não tinha reconhecido "inconsequências travestidas de incompletude". Nunca é tarde para começar uma revisão crítica.
1.3 É evidentemente despropositado tentar impingir uma imagem de imaturidade poética a uma "artesã" (já que o resenhista prefere o léxico parnasiano) do verso que dialoga com Drummond, Eliot, Baudelaire, Mallarmé e vários outros, como Jorge de Lima, Whitman, Bandeira, Kerouac. Trata-se de autêntico diálogo: Ana Cristina Cesar jamais professou o verso servil e laudatório como estes: "Emily que conheces o preço,/ o ganho e o risco,/ Emily Dickinson." ("As espécies menores"), "Ó Merquior,/ meu velho amigo/ prefaciado", "por mais que imite/ Carlos Drummond/ Dona Cecília/ e Rainer Maria,/ perdi na rifa", "Murilo Mendes,/ Drummond, Vinicius,/ Cecília e Jorge/ tiram do alforje/ ou das algibeiras/ ritmo, rima" ("Uma romã para 1997), todos do último/primeiro livro do resenhista, Anulação e outros reparos.
Ana C., muito pelo contrário, não precisa imitar ninguém nem pedir licença para compor: desmistifica Bandeira e Baudelaire e, num poema cuja aparente simplicidade é das mais capciosas, vira de pernas para o ar a poética de Mallarmé como exposta em "Salut": "Nada, esta espuma" (p. 97) - o título, apenas, já é extraordinário por dar sentido completamente outro a "Rien, cette écume": à abstração, à "espuma" mallarmaica, a poeta prefere a materialidade da escrita.[...]

2. A epiderme alfabetizanda:
2.1 Um dos trechos destacados pelo resenhista do que ele chamou "diário juvenil de óculos Ray Ban" é uma leitura feminista de um conhecido poema de Manuel Bandeira, "Irene no céu", que a autora recebeu autografado do próprio poeta. Pela escolha dos trechos que mais causaram enfado ao resenhista, vê-se que é a voz feminina que lhe causa repugnância. Sabe-se da admiração dele por Cecília Meireles, mas esta grande escritora representa um lirismo tradicional [...] Já Ana Cristina é claramente a mulher após a revolução sexual, que refuta a visão tradicional do feminino. Dessa forma, ela vira ao avesso a Irene que Bandeira tornou imaculada (a mulher, em Ana, recusa-se a ter o seu desejo domesticado pelo homem) e abomina os versos lésbicos de Baudelaire (ousados para a época, não deixam de cair no estereótipo) num poema que é dos mais originais da língua, "21 de fevereiro"(p. 106) e recebeu apreciação de Ivan Junqueira (À sombra de Orfeu, Rio de Janeiro: Editorial Nórdica, p. 190-191, 1984). Não perceber a radicalidade da questão do gênero na poesia de Ana Cristina ("Posso ouvir minha voz feminina: estou cansada de ser homem.") é professar uma evidente desleitura. Ou, simplesmente, machismo.
2.2 O resenhista caiu como um pato (respeitosamente emprego um significante muito repetido em Luvas de pelica de Ana C.) no conto da confissão; Caio Fernando Abreu também caiu nessa, na antiga contracapa de A teus pés. O verso de Ana não confessa nada, ou melhor, não mais do que qualquer outra poesia legítima, pois, se a poesia é fingimento, é fingimento do que se sente (a lição pessoana). A poeta não revela nada diretamente: ela desconstrói noção de confessionalismo, subverte a questão da intimidade para repensar a própria linguagem poética, como brilhantemente percebeu Silviano Santiago na conferência "Singular e anônimo" (Nas malhas da letra, São Paulo: Companhia das Letras, p. 53-61, 1984).
2.3 À questão da transitividade da linguagem poética, acrescento que Ana Cristina, com sua armadilha do aparente confessionalismo, lida novamente com o gênero. A própria autora dá a pista para essa leitura, em depoimento na Faculdade da Cidade, quando lembra que historicamente a escrita da mulher surgiu da intimidade: cartas, diários. Ana se posiciona historicamente como voz feminina.
O resenhista não percebeu nada disso, mas acertou onde não viu: a incompletude da poesia de Ana. Acertou, é bom dizer, muito de longe: pois essa incompletude não advém apenas do desaparecimento prematuro da autora e não significa uma "inconsequência carioca". A incompletude decorre do caráter experimental de sua poesia, que, ao contrário da de autores que só fazem modular, com rimas mais ou menos pobres, metros do passado numa sensibilidade ainda sub-rilkiana (sim, é uma referência ao resenhista), experimenta formas diversas [...] e, principalmente, é portadora de uma nova poética que não se fechou sobre si mesma. Ela aponta para o futuro e, provavelmente, inspirará escritores mais jovens.
Não se deve culpar o resenhista por não ter entendido nada: ele já pertence a outra época. Sua alta reside em outro lugar, que não é a poesia.
Que o resenhista, em uma comparação sórdida, queira contrapor Cruz e Sousa a Ana Cristina Cesar é, em princípio, despropositado pois suas obras não guardam semelhança alguma. O fim de Bruno Tolentino, contudo, é bem outro: comparar a morte de ambos, ressaltando o caráter voluntário da de Ana Cristina Cesar para ridicularizar a poeta, assimilando a sua queda fatal à "dos critérios" e ousando uma alusão irônica ao poema "18 de fevereiro" (p. 103).
Como dizia Fernando Pessoa, brincar com os deuses, a morte e a loucura é próprio da baixeza de alma; e só quem está abaixo da última canalha das ruas é capaz de fazê-lo sabendo que mente.
Não é o caso do resenhista, pois, como já vimos, ele manifestamente não sabe.

P.S.: Escrevo também que, nessa fase em que passei a ler Ana Cristina Cesar, vi duas vezes o espetáculo de dança de Marcia Rubin, Tudo que eu nunca te disse, de 1997. Desde o título, baseava-se na obra da escritora, e era de uma grande inteligência dramática e profundo entendimento dessa poesia. Seria bom que fosse remontado.

4 comentários:

  1. Ui, que isto não é um texto, é uma porretada!

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  2. O que ele escreveu era bem mais agressivo.
    Ele era pior como crítico do que como poeta. Mas teve muita visibilidade - e tinha esse espaço mensal nessa revista, junto com o seu então amigo Olavo de Carvalho.

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  3. Menos mal. Pior seria se fosse um mau crítico e um mau poeta. Às vezes os críticos estão criticando outras coisas, não a obra que se propõem a criticar.

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