O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Crônicas de Maria Rita Kehl: a ditadura e o recalcado

Penso que, quando Maria Rita Kehl age, o país torna-se um pouco mais digno. E o jornalismo é uma forma de ação que ela cultiva desde a época da ditadura militar, quando a psicanalista e escritora atuou na vigiada e censurada imprensa de esquerda.
Bem mais recentes são os escritos que reuniu no seu último livro, 18 crônicas e mais algumas, publicado neste ano pela Boitempo. Na foto, ela o autografa.
Parte das crônicas que reuniu foram publicadas no Estado de S.Paulo, jornal que ruidosamente cancelou o contrato com a colunista devido a interesses eleitoreiros. Demonstrei como o jornal, quando ressuscitou a figura do delito de opinião, traiu a própria história.
Não entendo bem o título; para Christian Ingo Lenz Dunker, autor da orelha, temos aqui uma alusão ao 18 de Brumário de Marx. É possível; creio que o professor do Instituto de Psicologia da USP acerta em cheio ao ver nesta questão o cerne do livro de Kehl: "Imaginar uma separação clara e distinta entre sofrimento social e sintoma psíquico é uma das fronteiras ideológicas mais tensas e controladas de nossa época."
Tendo a autora sido testemunha da época, a ditadura militar é referida em algumas dessas crônicas. Por isso, escolhi fazer uma breve nota a respeito do livro para a Quarta Blogagem Coletiva do #desarquivandoBR, organizada pela jornalista Niara de Oliveira. O professor e jurista Murilo Duarte Costa Corrêa também está a participar.

Ao contrário de tantos escritores, ela não se vangloria do passado: "Minha modesta militância contra a ditadura não foi considerada perigosa." (p. 23). E tenta ser absolutamente lúcida: "O Brasil dói." (p. 16). Ela escreve a partir dessa dor. Em "Tortura, por que não", Kehl desvela uma pergunta que está latente na cultura autoritária brasileira; como ela escreve, "A culpa pela ferocidade da repressão recaiu sobre as vítimas. A retórica autoritária ressurgiu com a força do retorno do recalcado; quem não deve não teme; quem tomou mereceu etc. A depender de alguns compatriotas, estaria instaurada a punição preventiva no país." (p. 37-38)
Ela se refere às famílias Teles e Merlino, que tentam responsabilizar judicialmente o coronel Ustra pelas torturas e assassinatos cometidos durante a ditadura militar, bem como ao escandaloso julgamento no Supremo Tribunal Federal que considerou válida a Lei de Anistia.
Mas a crônica inicia-se com a tortura e o assassinato de um motoboy, Eduardo Pinheiro dos Santos, por nada menos do que doze (honestos e corajosos, veja-se) policiais militares: "O assassinato de Pinheiro é mais uma prova trágica de que os crimes silenciados ao longo da história de um país tendem a se repetir." (p. 37). Eis o retorno do recalcado.
Em "Educação sentimental", em que trata dos festivais de música da década de 1960, ela ironicamente lembra que Chico Buarque e Tom Jobim não precisariam de um festival "para compor a mais bela música de exílio que o país já mereceu." (p. 60) - a "Sabiá".
Em "O impensável", temos uma espécie de atualidade do DOI-Codi ("Onde o filho chora e a mãe não escuta" - frase inexata para os casos em que pais e filhos foram torturados juntos, como aconteceu com a família Teles) nos assassinatos cometidos pelo Exército no Morro da Providência, em 2008, no Rio de Janeiro.
O que seria o impensável? A princípio, julguei que era o horror da tortura e da execução. Mas talvez Kehl esteja a dizer que impensável também seja aquilo que ela solicita, que a "Zona Sul" das cidades brasileiras (lembremos, porém, que a Zona Sul do Rio de Janeiro tem muitas favelas) mostre-se contrária às execuções extrajudiciais de negros e pobres.
Ou talvez esta interpretação seja apenas o que penso, fruto de minha experiência. Um exemplo: semana passada ouvi um jovem professor de direito constitucional (fiquei a imaginar como ele explica a eficácia dos direitos fundamentais...) lamentando que não haja castração química para pobres; um outro professor, de ciência política, reagiu prontamente: "Nesse caso, eu não teria nascido." Eu tampouco, acrescentei. E o pior que posições autoritárias como essa não são incomuns no ensino jurídico - há quem sustente publicamente, sem ruborizar, que os torturadores são velhinhos de pijama que não podem ser punidos porque houve mais de uma teoria da justiça na história da humanidade - e então não saberíamos o que é justo...
Quem o saberia - o pau-de-arara? É dessa miséria teórica, galhardamente reproduzida em faculdades de direito, que se nutrem os juristas que irão servir ao poder.
Se essa cultura está presente (e Kehl bem o demonstra nesse livro), por que a ditadura não volta? Creio que o retorno formal da ditadura não se dá porque ela não é necessária. Uma democracia em que possam ocorrer Belo Monte e os esquadrões de morte não precisa de um ditador que roube os direitos da cidadania. O risco de volta à ditadura somente será real se a democracia tornar-se efetiva...

P.S.: Vejo agora que o historiador Fabiano Camilo e também o blogue Ousar lutar! Ousar vencer! participam desta campanha.

8 comentários:

  1. Excelente postagem. A última frase é aterrorizante e de efeito, mas creio que conta só metade da verdade.

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  2. Obrigado, Cybelle.
    E obrigado, Barbara O. Se eu conseguir chegar à metade da verdade, ficarei muito feliz! Mas acho que não logrei tanto.

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  3. Pádua,

    Domenico Losurdo escreveu que no século XXI dificilmente veríamos um Estado com uma "placa" - AUTORITÁRIO.

    Como ressaltas, provavelmente virá de forma fragmentária sob o rótulo de democracia formal e tendo sua práticas autoritárias cotidiana difundidas em uma cultura política demasiadamente tolerante.

    O regime político democrático dificilmente se sustenta sem responsabilidade de todos pela sua manutenção.

    Penso que essa construção da democracia como uma conquista insuprimível decorre de uma teoria liberal da história, pautada por um critério progressivo sem possibilidade de retrocesso.

    Não é o que acontece, sabemos.

    Bom post.
    Samuel

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  4. Obrigado, Samuel. Decerto haveria na história conquistas insuprimíveis? Também prefiro não contar com isso!
    Abraços, Pádua.

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  5. Castração química para pobres??

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  6. O fascismo não abandona ideais eugênicos.

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