O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

O que é ditadura? Respostas oficiais

O que é ditadura para as autoridades brasileiras? Três respostas recentes, provenientes dos três Poderes da União e dos três níveis da Federação, causaram-me algum espanto.


I. Segundo autoridades do Executivo municipal em São Paulo, isto não é ditadura:

Prefeito aumenta a presença de coronéis da PM em postos-chave da sua gestão; apenas a subprefeitura do M’Boi Mirim continua liderada por um civil

Kassab, prefeito de São Paulo, entregou as subprefeituras a oficiais da Polícia Militar. Formalmente, de fato, tal situação não configura uma ditadura. As "funções sociais da cidade" são bem atendidas por essas pessoas? Evidente que não, o desastre urbano gerenciado que é São Paulo bem o demonstra.
A política urbana entendida como militarização do território, que é o que tais autoridades podem fazer (até por falta de outras credenciais...) deixa claro um dos pressupostos da "gestão" Kassab: os cidadãos são o inimigo.
Contra nós, até os acidentes e o fogo são armas oportunas.
Nos tempos da ditadura militar, foi nomeado secretário de segurança do estado de São Paulo um dos juristas que colaboraram com aquele regime: Hely Lopes Meirelles - um dos maiores nomes da história do direito público no Brasil. Ele foi especialmente importante nas áreas de direito administrativo e direito municipal.
Ele foi secretário no governo de Abreu Sodré (estava na pasta do Interior, e ainda ocuparia a de Justiça), época em que floresceu o esquadrão da morte. Não encontrei documentos em que o secretário elogiasse o esquadrão - e sim a Operação Bandeirante, que começou em julho de 1969, sob a gestão do secretário Hely Lopes Meirelles e que, de acordo com a doutrina do administrativista Hely Lopes Meirelles, deveria ter sido considerada ilegal - havia sido criada sem autorização em lei, por determinação do governo federal. Nesta entrevista dada a Antonio Carlos Fon, publicada no livro Tortura: a história da repressão política no Brasil, Hely mostra como a ditadura havia acabado com o federalismo no país, ao revelar que recebeu ordens diretamente do estado-maior das Forças Armadas.
Hely Lopes Meirelles fez o jogo do sistema. No entanto, no final de 1969 ele não pôde mais continuar no cargo - as secretarias de segurança foram entregues a militares, homens mais identificados com a repressão do que o administrativista. Em São Paulo, assumiu-a o general Vianna Moog.
Para essas antigas autoridades, o principal inimigo era o interno. Um ponto em comum com a gestão Kassab.


II. De acordo com o judiciário estadual de São Paulo, isto é ditadura:

Novo presidente do TJ de SP compara atos do CNJ aos da ditadura

O magistrado Ivan Sartori, futuro presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, compara a investigação do Conselho Nacional de Justiça a atos de uma ditadura. Fernando Tourinho Neto, da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), também realizou a comparação.
O debate acirrou-se depois que o ministro Lewandowski, adotando um entendimento estreito da suspeição no direito processual, deferiu pedido liminar de suspensão de investigação do Conselho Nacional de Justiça, apresentado pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), pela Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e pela Ajufe.
A investigação diz respeito a valores que tanto Lewandowski quanto Peluso receberam quando pertenciam ao Tribunal de Justiça de São Paulo, como levantou a Folha de S.Paulo.
Peluso emitiu nota pública apoiando o colega, assim concluída: "Nos termos expressos da Constituição, a vida funcional do ministro Lewandowski e a dos demais ministros do Supremo Tribunal Federal não podem ser objeto de cogitação, de investigação ou de violação de sigilo fiscal e bancário por parte da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça."
De fato, trata-se de competência do próprio Supremo Tribunal Federal. O argumento de que não haveria suspeição (nem impedimento) porque o CNJ não tem competência para investigar Ministro do STF é que parece estar às turras com a lógica; dependendo do resultado, é bem possível imaginar que a apuração do CNJ leve à conclusão de que aqueles dois Ministros deveriam ser investigados pelo tribunal a que pertencem.
O presidente da OAB, Ophir Cavalcante, tem defendido a competência do CNJ na investigação de magistrados, afirmando que, na república, todos devem ser considerados responsáveis. Marco Aurélio Mello, em outra decisão de fim de ano do STF, havia concedido liminar (uma "liminar-nocaute" contra Eliana Calmon, segundo bem escreveu Wálter Maierovich) para impedir que o CNJ inicie processos contra magistrados antes da atuação da corregedoria dos tribunais.
No Antigo Regime, nem todos podiam ser responsabilizados, como se pode ver nas Ordenações Filipinas, coletânea da legislação do império feita em 1603, quando Brasil era colônia e vigia a União Ibérica. As Ordenações continuaram vigentes após a independência do Brasil, até que, paulatinamente, o país substituiu por completo a legislação portuguesa. Um trecho do título I do Primeiro Livro das Ordenações talvez infunda ainda, historicamente, a alma do Judiciário:

Como a Casa da Supplicação seja o maior Tribunal da Justiça de nossos Reinos, e em que as causas de maior importancia se vem a apurar e decidir, deve o Regedor della ter as qualidades, que para cargo de tanta confiança e autoridade se requerem.
Pelo que se deve sempre procurar, que seja homem fidalgo, de limpo sangue, de sã consciência, prudente, e de muita autoridade, e letrado, se fôr possível [...]
E assi deve ser abastado de bens temporaes, que em sua particular necessidade não seja causa de em algumas coisas perverter a inteireza e constancia com que nos deve servir.

Ser "letrado" não era necessário, e sim abastado - o que não é realmente garantia, porém, para evitar a "perversão" da Justiça.


III. Isto é ditadura, segundo a senadora pelo Tocantins (hoje no PSD) e presidenta da Confederação Nacional da Agricultura e da Pecuária do Brasil (CNA), Kátia Abreu:

Kátia Abreu elogia texto do novo Código Florestal

Lemos, surpresos: "acabou-se a "ditadura ambiental", pela qual as organizações não governamentais controlavam o meio ambiente no país e não deixavam o Congresso Nacional discutir o assunto", e que "Sofremos por mais de 15 anos nas mãos de uma ditadura feita por uma minoria do Ministério do Meio Ambiente, do Conama e do Ibama."
Tratava-se mesmo de uma ditadura ímpar, em que os ditadores não dispunham de poder algum. O IBAMA era tão poderoso que, em 2009, por exemplo, segundo o Tribunal de Contas da União, só conseguiu arrecadar ZERO VÍRGULA SEIS POR CENTO das multas ambientais.
Uma ditadura que permite que criminosos aufiram do Congresso Nacional sucessivas anistias? E da presidência, por meio de decretos, como o Decreto 6514/2008, 7029/2009? Ou de ambos juntos, como das medidas provisórias aprovadas pelo Congresso, como foi o caso da lei 11460/2007, que teve origem na MP 327/2006, sobre transgênicos plantados ilegalmente, especialmente soja?
Uma ditadura cujos militantes caem seguidamente assassinados e cujos mortos são vaiados em pleno Congresso Nacional?
Mais forte do que essa, apenas a ditadura gay, que possui integrantes tão poderosos que são espancados e mortos nas ruas!
Sobre essa, porém, deixo aqui apenas a referência à arte de Laerte e a uma crônica de Antonio Prata sobre o projeto de criminalização da homofobia.

Talvez a crônica resuma bem a questão: essas autoridades que estão a denunciar como defensores de ditaduras aqueles que lutam pela igualdade (os da "ditadura gay"), pelo meio ambiente e pela transparência do poder público (inclusive Judiciário...) estão dispostas "a lutar por um mundo injusto, desigual e preconceituoso!" Algo semelhante a esta democracia...

3 comentários:

  1. o que me chama a atenção é a direita (ou como se chame esse obscurantismo) brandir o termo "ditadura" a torto e a direito, como se fosse uma espécie de xingamento a-histórico - numa imagem especular inversa dos militares que não falavam em golpe, mas em "revolução", e com R maiúsculo. de uma maneira meio tortuosa, é impressionante o grau de consciência de culpa que isso expressa, não acha?

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  2. Concordo, Denise. Há algo de recalcado nesse discurso... E, muitas vezes, o discurso da revolução em 1964 qualificava como democrático o regime instaurado naquela época, o que era bastante inconsistente.

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  3. Poder postar um comentário, isso é democracia. E ele não valer para nada, isso é ditadura. Parecer esperto perante os menos favorecidos é fácil o difícil é ser esperto para os inteligentes. Missão impossível para este governo :-(
    Que Deus, em 2012, ilumine a todos e que ELE dê uma alma nova aos nossos governantes porque a deles...

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