O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 31 de março de 2012

Desarquivando o Brasil XXIX: Desaparecidos: os homens e os direitos


Para ocultar o assassinato de Wilson Silva, militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), em uma informação do Ministério do Exército, de 1974, foi escrito que "há subversivos cujos desaparecimentos são imputados aos Órgãos de Segurança". Tal negacionismo fazia parte da estratégia da repressão política.
Em 1974, a ditadura militar preocupava-se com a crescente campanha no exterior sobre a tortura, as execuções extrajudiciais e os desaparecimentos forçados cometidos pela repressão político. Afinal, essas práticas continuavam e geravam novos constrangimentos internacionais para o Brasil.
De um longo relatório do II Exército, de 5 de maio de 1975, destaco esta página, na qual podemos ler uma passagem que achincalha a Campanha dos Desaparecidos na própria figura desses mortos:

Todos sabem, mesmo os "inocentes" familiares e principalmente os "idiotas úteis" que se esses terroristas não se encontrassem desaparecidos, estariam nas penitenciárias respondendo por seus crimes de traição à PÁTRIA e ao POVO brasileiro, pois em sua grande maioria já forma condenados pela JUSTIÇA, e alguns até banidos do país.
Assim, antes de serem considerados "desaparecidos", o certo é contarem como foragidos, revéis, evadidos, banidos, etc, pois na verdade são "PROCURADOS PELA JUSTIÇA".

Há algo de correto no arrazoado castrense: de fato, no caso dos desaparecidos, não se fez justiça. Não, porém, porque houvessem se evadido (esses foram poucos, e apareceram depois), mas porque, mesmo dentro do campo autoritário da legislação de exceção no Brasil, mesmo para os decretos-lei de segurança nacional, os atos institucionais, os atos complementares, as execuções extrajudiciais e a tortura eram proibidas, e seu uso como pena era ilícito no ordenamento jurídico vigente.
Não é por acaso que, nos documentos oficiais, mesmo os secretos, tais realidades tinham que ser ocultadas: os militares sabiam que agiam criminosamente.

Em outra página do relatório, vemos que o possível retorno à política de Jânio Quadros, ainda cassado, é classificado como "pressão comunista". Na mesma categoria, temos:
- Proposta de constituição de CPI para apurar abusos de autoridades de segurança contra os direitos humanos.
- Aparecimento na imprensa de pedidos de localização de elementos subversivos, pretensamente "extraviados".

A reivindicação de direitos humanos, nesses documentos, é geralmente atribuída a comunistas. Creio que, em um país em geral avesso a esses direitos, essa estratégia de estigmatizar os comunistas pudesse, realmente, angariar antipatia a curto prazo. Não só os desaparecidos, mas também esta categoria jurídica, os direitos humanos, incluía-se entre os "extraviados" do regime.
No entanto, a um prazo mais longo, a estratégia de deixar com a esquerda a bandeira dos direitos humanos não fez bem para a direita, em termos de batalha ideológica: ela poderia falar em nome da dignidade fazendo um dueto com o pau-de-arara? O discurso não seria sustentável, resultaria em uma gangrena ideológica.
De qualquer forma, a dose de hipocrisia necessária para que pudesse empunhar aquela bandeira logo tornaria o pendão pesado demais para ser carregado.
Para a esquerda, isso foi benéfico, pois levou à (re)descoberta da importância dos direitos fundamentais e a sínteses como a de Carlos Nelson Coutinho sobre socialismo e democracia.
Os documentos estão no acervo DEOPS/SP do Arquivo Público do Estado de São Paulo.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Desarquivando o Brasil XXVIII: Anistia, a Rebelião dos Marinheiros e Eliana Calmon


As diversas matérias jornalísticas feitas com a magistrada Eliana Calmon, membro do Conselho Nacional de Justiça, destacaram sua atuação contra o corporativismo e ilegalidades no Judiciário. Poucas vezes foi destacada a interpretação que ela deu à lei de anistia em seus tempos de primeiro grau na Justiça Federal na Bahia. Chico Bruno foi um dos que ressaltou a sentença de 1981.
No Arquivo Ana Lagôa, pode-se ler a matéria de Paolo Marconi para a revista Isto É sobre a sentença, que era "completamente inesperada". Tratava-se de trinta marinheiros que haviam sido expulsos da Marinha por terem participado da Rebelião dos Marinheiros entre 25 e 27 de março de 1964. Eles eram membros da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), fundada em 1962.
O movimento havia sido insuflado pelo chamado Cabo Anselmo, que depois se tornaria um agente infiltrado da repressão política. Sobre a AMFNB, que seria dissolvida pela ditadura militar, aconselho a leitura da dissertação de mestrado em História, pela UFF, de Anderson da Silva Almeida, Todo o leme a bombordo: Marinheiros e Ditadura civil-militar no Brasil: da rebelião de 1964 à anistia. O notável trabalho, que tem a qualidade de uma tese de doutorado, ganhou o prêmio Memórias Reveladas do Arquivo Nacional e deve ser publicado neste ano, informa o autor.
Ao contrário da fantasia anistórica sustentada pela posição predominante do Supremo Tribunal Federal no julgamento da lei de anistia (a ADPF 153), essa lei não foi ampla, geral e irrestrita, deixando de fora, entre vários, aqueles militares, simplesmente porque não foram punidos com base em ato institucional.
Como se sabe, a lei de anistia acabou por sofrer interpretação extensiva na Justiça Militar para abranger os "crimes de sangue". Isso não ajudou naquele momento os marinheiros; parte deles conseguiu ser anistiada judicialmente, outros não tiveram o mesmo sucesso.
Ainda não li a sentença de 1981 de Eliana Calmon, que não é, por sinal, mencionada na dissertação de Anderson da Silva Almeida. Na reportagem de Paolo Marconi, lemos: "Como técnica do direito, como cidadã brasileira, como espectadora política, concordo integralmente com os litigantes quando afirmam ter sido aparentemente restrita, parcial e pouco ampla a anistia."
Não por outra razão, foi editada a lei federal n. 10559 de 2002, que ampliou os parâmetros para a qualidade de anistiado político. Entre eles, está, no artigo segundo, o inciso XI: "desligados, licenciados, expulsos ou de qualquer forma compelidos ao afastamento de suas atividades remuneradas, ainda que com fundamento na legislação comum, ou decorrentes de expedientes oficiais sigilosos."
Pena que nem todos os magistrados conheçam bem a legislação federal, e repitam, e até decidam com base no pressuposto, absurdo até do ponto de vista da mera dogmática jurídica, de que aquela lei de 1979 havia concedido uma anista "ampla, geral e irrestrita". Em trabalho sobre a anistia no Brasil e na Argentina, já pude falar dos efeitos irradiadores da negação da justiça de transição e do direito à memória pelo Supremo Tribunal Federal:

Como consequência do julgamento da ADPF 153, processo contra ex-chefes do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, órgão do sistema de inteligência e de repressão política da ditadura militar brasileira) foi extinto; os coronéis do Exército, já reformados, Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel estão sendo processados pelo Ministério Público Federal para que sejam declarados culpados de prisão legal, tortura, homicídio e desaparecimento forçado; mais do que isso, pediu-se uma declaração de que o Exército
tinha a obrigação de revelar os nomes de todos os torturados e mortos no DOI-CODI de 1970 a 1985, bem como dos agentes públicos que lá trabalharam, bem como declarar que o Estado brasileiro estava sendo omisso em não obter o direito do regresso desse ex-chefes do DOI-CODI, no tocante às indenizações concedidas às vítimas da ditadura militar. O juiz Clécio Braschi fundamentou-se no julgamento do STF para declarar o processo extinto:

"De acordo com a interpretação adotada no julgamento da assaz
citada ADPF n.o 153, o Plenário do Supremo Tribunal Federal,
nos dias 28 e 29 de abril de 2010, decidiu por maioria, com
eficácia vinculante para todos, que a anistia concedida por
meio desses dispositivos é ampla, geral e irrestrita, produzindo
o efeito jurídico de apagar todas as consequências (cíveis e
criminais) dos atos anistiados."

Aquela sentença pioneira de Eliana Calmon é uma negação desse desconhecimento.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Desarquivando o Brasil XXVII: advertências de Millôr


Avisaram-me de manhã que Millôr Fernandes, que admiro desde pequeno, quando o lia no extinto Jornal do Brasil, havia morrido.
Certa vez, surpreendi-me quando descobri que um conhecido, que vive da crítica literária, não considerava que Millôr fizesse literatura. Penso bem diferente - a literatura estava entre os diversos talentos do desenhista, tradutor, dramaturgo, jornalista e até, às vezes, poeta (muitos de seus hai-kais são apenas inofensivos, mas vejam este poema sobre a morte do tradutor, que Denise Bottmann hoje recordou). O extraordinário é que o reconheçamos nas mais diversas atividades, é que o identifiquemos pelo humor tão peculiar. Espíritos sisudos que vejam no humor algo de menos importante tenderão a diminuir Millôr.
Nesta nota para a blogagem coletiva Desarquivando o Brasil, lembro deste jornalista que criticou a ditadura militar e seguiu crítico a todos os governos, incluindo FHC e Lula, sem falar do imortal José Sarney, cuja obra em prosa ele soube analisar imorredouramente em textos que saíram no quadrado que ele tinha no JB, e que foram republicados no Diário da Nova República.
No jornalismo brasileiro, houve pouco tão audacioso quanto o Pif Paf, revista que foi fechada depois de apenas oito números. Millôr criou a revista um mês depois do golpe militar com cartuns dele, de Fortuna, Claudius, Jaguar, Ziraldo, textos de dele mesmo, Rubem Braga, Sergio Porto... O projeto gráfico, de Eugênio Hirsch.
A revista foi relançada em uma caixa, em edição facsimilar. O último número, na seção "Concurso Miss Alvorada", mostrava duas montagens fotográficas com Lacerda (Miss Carlota Corwina) e e Castelo Branco (Miss Castelinho): na primeira, viam-se duas mulheres, cada uma com o rosto desses dois políticos, lutando no chão; na segunda, de maiô, mais ou menos pacificadas. Corwina queixava-se de que o concurso para Miss Alvorada havia mixado depois que a Castelinho havia tomado o cargo com ajuda dela.
Em Pif Paf, os desenhos mais contrários ao regime eram os de Fortuna, mas foi Claudius que foi preso. Em um dos desenhos, vê-se uma prisão sendo erguida; o guarda com chaves comenta: "A frase repressiva parou. Estamos agora na fase construtiva."; em outro, um sujeito carregando diversos livros avisa que explicará a revolução; larga-os no chão, aponta dois revólveres e diz: "Foi assim."
Momentos tão geniais como esse obviamente impediram a revista de ter anunciantes. O que selou a revista, no entanto, foi o último texto do último número, na contracapa, em letras grandes, escrito por Millôr:

ADVERTÊNCIA!

Quem avisa, amigo é: se o governo continuar deixando que certos jornalistas falem em eleições; se o governo continuar deixando que determinados jornais façam restrições à sua política financeira; se o governo continuar deixando que alguns políticos teimem em manter suas candidaturas; se o governo continuar deixando que algumas pessoas pensem por sua própria cabeça; e, sobretudo, se o governo continuar deixando que circule esta revista, com toda sua irreverência e crítica, dentro em breve estaremos caindo numa democracia.

Era o número de 27 de agosto de 1964. O aviso foi levado a sério e o governo respondeu com um não a todas as possibilidades levantadas. O Pasquim nasceu depois, com a experiência desse enfrentamento com os militares.
O texto, conta Millôr em Trinta anos de mim mesmo, resultava na "maior gargalhada" que ele havia conseguido "provocar neste país", quando dito por Vianinha na peça Liberdade, Liberdade. A mesma gargalhada merece quem ainda afirma que o regime instaurado pelo golpe de 1964 era "democrático" antes do AI 5.
Liberdade, Liberdade, por sinal, foi uma peça que ganhou críticas à direita e à esquerda; entre os crimes contra a liberdade mostrados no palco, estava o processo contra Brodsky na União Soviética - condenado por ser um poeta não permitido pela burocracia daquele país. No verbete "Partido Comunista" em Millôr definitivo: a Bíblia do Caos, lemos que ele "não permite que qualquer dos seus quadros seja criticado em nenhum jornal. A direita não tem como evitar. A direita tem má consciência. A esquerda nem sabe o que é isso."
A ditadura, porém, era de direita; ele, que foi preso, com todos os editores do Pasquim (foi o jeito mais sutil que o governo federal achou para fechar o jornal que, no entanto, sobreviveu), bem pôde escrever, em O Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr, "Numa democracia todos são (presumivelmente) iguais perante a lei. Numa ditadura todos são iguais perante a polícia."
Ele, que havia vivido na ditadura de Getúlio Vargas - tornou-se jornalista aos quatorze anos, em 1938 - pôde testemunhar e comentar as diversas oscilações políticas no Brasil. Em 1960, sua peça Um elefante no caos foi premiada pela Associação Brasileira de Críticos Teatrais, apesar de ter havido críticas em contrário (acho que ela é um interessante fracasso artístico). A peça, escrita em 1955, tanto parece prever a Revolução Cubana quanto a ditadura militar brasileira.

Espíquer - Atenção! Atenção! Com a decretação da Lei Marcial, às treze horas e dezoito minutos de hoje, todos os elementos terroristas do país estão sujeitos à pena de morte. Todas as pessoas pogonóforas, isto é, com barba na cara, que não pertencerem ao Partido Terrorista, devem raspá-la imediatamente para evitar equívocos fatais. Dois cidadãos pacíficos, porém barbados, já foram mortos por engano.

Outra advertência, que antecipava a que escreveu no Pif Paf. Os opositores são considerados terroristas, e o regime mata também por engano - afinal, o engano é sua própria natureza política. Em 1971, a peça foi proibida pela censura. Ele escreveu, em nota de 1978 conservada na atual reedição pela L&PM: "Os dons de previsão do autor, ao que parece, deram para que criticasse até as mazelas de um regime que ainda não existia. Ou serão sempre as mesmas?"
A pergunta ainda poderia ser feita, em razão de continuidades de um autoritarismo social renitente. No quadrado do JB em oito de abril de 1985 (republicado no primeiro volume do Diário da Nova República), ao lado de um desenho que combina um autorretrato com formas geométricas, escreveu apenas esta indagação: "Como eu nunca vivi numa democracia, de repente me pergunto: 'Deus do céu, e se democracia for isso mesmo que está aí?'"
Sarney era o que estava aí, e continua aqui, tendo sobrevivido a seu mais ilustre crítico literário. O terceiro volume do Diário da Nova República republicou toda a série sobre o Brejal dos Guajas (a equivocada novela de José Sarney), que também pode ser lida nesta ligação. Em um dos momentos, ele mostra que Sarney erra até mesmo o número de eleições que tinham ocorrido, e ressalta: "Ribamar está falando da outra ditadura, 1930/45, anterior à dele, 1964/85." Ora, esta democracia também é dele, que voltou a ser Presidente do Senado Federal e continua a dar as cartas no Ministério de Minas e Energia, agora pela interposta pessoa de Edison Lobão.
Voltemos à ditadura militar, aproveitando que as figuras são as mesmas. O Pasquim tanto fazia críticas frontais quanto indiretas. Em janeiro de 1973, Millôr desenhou um "Vestibular Pasquim", com questões sobre diversos assuntos. Eis a pergunta sobre literatura: "Apesar de cego de um olho e português ele percebeu que se não salvasse o manuscrito dos ............ o pessoal nunca ia saber que ele tinha escrito aqueles versos sensacionais: 'A disciplina militar prestante/ não se aprende, senhor, na fantasia,/ mas vendo, tratando, e pelejando'." Isso foi republicado no volume II de O Pasquim: Antologia. Uma das questões trata Machado de Assis como se o grande escritor mulato tivesse sido racista (o desenho mostra-o expulsando uma criança negra), absurdo que nos faz lembrar de certas limitações intelectuais e políticas de Millôr.
No volume I da antologia, temos o curioso texto de julho de 1971, "Negros homossexuais mutilados X judias lésbicas sexagenárias", vemos o crítico à ditadura militar perdido em relação às reivindicações de minorias e às questões de gênero. Seu humor tornou-se canhestro, era óbvio que ele não estava confortável diante desses problemas: "[...] com o aparecimento insofismavelmente charmoso dos inúmeros poderes do mundo atual O Poder Negro, Estudantil, Feminino, Homossexual, Ecológico, Artístico, Musical, Desportivo e Infantil, onde é que sobrou espaço pra gente arriscar, seguro, um palpite triplo? Quem se acha tão sábio que tenha coragem de casar dois cruzeiros nessa perspectiva histórica? Quem sabe onde está a zebra do páreo?" Nessa loteria, Millôr não soube tão bem como jogar, talvez por encará-la como simples jogo.
Fábulas fabulosas é um livro muito divertido, com momentos profundos, porém o meu preferido é Todo homem é minha caça, de 1981. No posfácio, ele escreve que, embora fosse uma coletânea de "textos escritos através dos anos", "como quase todos os meus livros", ele tinha uma "organicidade", um "sentido geral" que ele sempre buscava. No caso, o cinismo diante do homem, que ele define nesse livro, após as conceituações de Platão ("Um bípede implume") e Dostoievsky ('Um bípede ingrato"), como "Um bípede inviável". Alguns dos textos referem-se à ditadura.
O Guru do Méier comete um erro de grande magnitude no texto "A estrela sobe", que antevê uma queda iminente do astro que era Lula (mas como foi engraçado ele, décadas depois, desenhar Lula, já Presidente da República, dizendo que não podia deixar a corrupção nas mãos dos impolutos). Outros são certeiros. Termino esta nota com a charada que ele deixou sobre Francisco Campos, o Chico Ciência:

Ultima ratio regum - No mundo ocidental (pelo menos) não se faz Justiça sem latim. Uma impossibilidade. A frase citada quer dizer "o último argumento dos reis", isto é, o canhão ou a força. Que são, também, os derradeiros argumentos da Justiça.
Por falar nisso: ganha uma lata de pessegada quem disser o nome do jurista que, em 1964, repetiu primeiro (pela milésima vez na história!): "Uma revolução justifica a si mesma".

V Blogagem Coletiva e Desarquivando o Brasil, de XI a XXVI



Continuando a convocação para a V Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR, indico os textos restantes que escrevi na série Desarquivando o Brasil. Outros virão, já para a nova blogagem.

Desarquivando o Brasil XI: Manoel Fiel Filho e o Ministério Público Federal, Direito e negacionismo: Texto sobre a tortura e o assassinato do operário Manoel Fiel Filho, militante do PCB, em 17 de janeiro de 1976 no DOI-CODI, e da cumplicidade da Justiça Militar com as execuções feitas pelos agentes da ditadura.

Desarquivando o Brasil XII: Ditadura militar e roupa suja se lava em casa: Trato de documento que achei no Acervo do DEOPS/SP, uma carta apreendida do ex-deputado federal pelo MDB Hélio Navarro, que foi o único parlamentar cassado pelo AI 5 que chegou a cumprir pena no Presídio Tirandentes.

Desarquivando o Brasil XIII: Itamar Franco, Sérgio Macaco e o Caso Para-Sar: Uma das tentativas de assassinato em massa da ditadura militar foi impedida pelo capitão da Aeronáutica Sergio Ribeiro Miranda de Carvalho, o Sérgio Macaco. Foi reformado à força e, depois, processou a União. As Forças Armadas, anos depois, continuaram ao lado dos genocidas frustrados e descumpriram sentença do Supremo Tribunal Federal sob (ou sobre, não sei) a presidência de Itamar Franco.

Desarquivando o Brasil XIV e Terra sem lei V: Liberdade para romanistas e Belo Monte para urubus: Comento documento do Acervo DEOPS/SP sobre mentiras contadas por Médici para participantes de um colóquio de romanistas e daí chego às mentiras sobre Belo Monte.

Desarquivando o Brasil XV: Justiça Brasileira e a negação dos direitos humanos: Mais uma face do negacionismo judicial: em ação do Ministério Público Federal contra torturadores, a juíza Diana Brunstein, da 7a. Vara Federal, logrou extrapolar a impunidade concedida pelo Supremo Tribunal Federal e também negar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos já tivesse decidido o Caso Araguaia.

Desarquivando o Brasil XVI: Ministério Público Federal, cinema e direito à memória: Comentário a respeito do Ciclo de Filmes, Memória e Verdade organizado pelo Ministério Público Federal.

Desarquivando o Brasil XVII: Presos políticos e incomunicabilidade Menciono outra comunicação que fiz sobre o terrível tema da incomunicabilidade dos presos políticos, desta vez com um comentário sobre as Resoluções do Congresso Nacional pela Anistia de 1978.

Desarquivando o Brasil XVIII: Comissão da Verdade no Brasil e na Argentina Comparação, talvez cruel, da Comissão da Verdade brasileira, até hoje não instalada, com a CONADEP (Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas) da Argentina.

Desarquivando o Brasil XIX: Livro do Arquivo Público do RS e impunidade no Judicário: Escrevi sobre o livro da Jornada de Estudos sobre Ditadura e Direitos Humanos organizada pelo Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul e indico artigo de Mateus Gamba Torres sobre o apoio judicial que a ditadura militar recebeu.

Desarquivando o Brasil XX: Márcio José de Moraes, juiz do caso Herzog: Trato de um dos documentos que analisei na Semana Jurídica da UNESP, a sentença pela qual o juiz federal Márcio José de Moraes responsabilizou a União Federal pelo assassinato de Vladimir Herzog.

Desarquivando o Brasil XXI: O estrangeiro na ditadura militar, evento do IRI/USP: Outro evento acadêmico de que participei, a convite dos professores Deisy Ventura e Carlos Eduardo Boucault. Menciono um dos documentos que analisei, um longo relatório do Exército sobre a ofensiva movida contra o PCB em 1974 e 1975.

Desarquivando o Brasil XXII: Rubens Paiva e desaparecidos desde o nome: Caso tragicômico em que a Câmara dos Deputados decidiu fazer uma pequena homenagem ao deputado federal assassinado pela ditadura militar, mas sem saber escrever o nome do político.

Desarquivando o Brasil XXIII: Wilson Silva, Ana Rosa Kucinski e o negacionismo: Comentário sobre documento a respeito do assassinato de Wilson Silva e Ana Rosa Kucinski Silva, militantes da Aliança Libertadora Nacional (ALN), desaparecidos em 1974.

Violência em Pinheirinho IV e Desarquivando o Brasil XXIV: Tradições da Polícia Militar: A tradição antilegalista da polícia brasileira: a partir da recente destruição de Pinheirinho pela polícia militar de São Paulo, chego a uma carta de 1975 dos presos políticos do Presídio da Justiça Militar Federal, em que centenas de policiais e militares são apontados como torturadores.

Desarquivando o Brasil XXV: Ruth Escobar e o Comitê Brasileiro pela Anistia: Homenagem a atriz Ruth Escobar, que foi um dos nomes à frente da Campanha pela Anistia. Ela foi alvo constante de investigações pelo DEOPS/SP.

Desarquivando o Brasil XXVI: A Comissão da Inverdade, o começo: Do projeto de "clínica de boatos" na ditadura militar a jornalistas desinformados de hoje.

V Blogagem Coletiva e Desarquivando o Brasil, de I a X


A jornalista Niara de Oliveira está convocando nova blogagem coletiva #DesarquivandoBR, de 28 de março a 02 de abril, com um twittaço em 31 de março e 1º de abril. Solicito aos blogueiros solidários com a causa da verdade a respeito do Brasil que participem, comunicando a adesão a Niara no blogue da jornalista.
Ela me pediu que reunisse os textos antigos. Já consegui fazê-lo com os dez primeiros. Alguns deles são comentários a documentos do acervo DEOPS/SP, a partir de pesquisa que fiz quando participei do Projeto Integrado Arquivo Público do Estado de São Paulo e Universidade de São Paulo (PROIN).

Desarquivando o Brasil: o projeto de lei para regulamentar o acesso à informação pública: Eu analisava o projeto que posteriormente foi aprovado, destacando os avanços que trazia para o acesso à informação.

Desarquivando o Brasil II: Investigando a OAB: Analiso um documento que mostra como a OAB era espionada mesmo antes de ingressar na resistência contra a ditadura militar. Destaco a atuação do grande jurista Heleno Fragoso, que acabou sendo preso por sua atuação contra o regime.

Desarquivando o Brasil III: Segurança nacional e batatinhas: Trata-se de um dos documentos que expliquei no Seminário Direito e Ditadura, organizado pelo PET da faculdade de Direito da UFSC: uma consulta do Conselho de Segurança Nacional sobre a safra agrícola em São Paulo.

Desarquivando o Brasil IV: o exemplo da Argentina: entrevista com Julián Axat Entrevista com o poeta, editor e jurista Julián Axat, em que trata do julgamento dos crimes contra a humanidade na Argentina, da organização HIJOS e da edição de textos de desaparecidos na coleção Los detectives salvajes, que pode ser lida nesta ligação.

Desarquivando o Brasil V: o assassinato de Olavo Hansen: comunismo e insuficiência renal aguda: Olavo Hansen foi um militante do Partido Operário Revolucionário Trotskista torturado e morto em maio de 1970 pela repressão política. Seu caso, que chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e à Organização Internacional do Trabalho, foi um dos que estudei na pesquisa dos documentos do DEOPS/SP.

Desarquivando o Brasil VI: o governo Geisel contra o direito internacional dos direitos humanos: Eu estava para fazer uma comunicação no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul e escrevi sobre o Pacote de Abril de 1977, uma das ocasiões em que a ditadura fechou o Congresso Nacional. O Ministro das Relações Exteriores, Antônio Azeredo da Silveira, havia insistido em dar uma fachada "constitucional" ao ato para a opinião pública internacional, o que corresponde ao que chamo de isolacionismo deceptivo.

Terra sem lei III e Desarquivando o Brasil VII: Belo Monte e as vítimas do Estado : Um texto sobre as relações entre Belo Monte e a ditadura militar, não pelo fato de o nefasto projeto remontar aos anos de autoritarismo, mas pela postura diante do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a mesma naqueles anos e nos dias de hoje.

Desarquivando o Brasil VIII e Desbloqueando a Cidade I: a Marcha da Liberdade: Participei da marcha pela liberdade, proibida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, e escrevi sobre a marcha e as continuidades da cultura autoritária no Brasil. A presença da imagem de Olavo Hansen foi um dos motivos para a nota.

Desarquivando o Brasil IX: dizendo o incomunicável: Trato de palestra que eu iria dar no Congresso de Direitos Humanos da ULBRA, a convite de Moysés Pinto Neto, e que as cinzas vulcânicas chilenas impediram. A questão é a incomunicabilidade de presos políticos durante a ditadura militar, com uma denúncia feita pelo então deputado federal Hélio Navarro contra Hely Lopes Meirelles, na época secretário de segurança de São Paulo, que havia mantido os estudantes do congresso de Ibiúna ilegalmente incomunicáveis.

1964 e a Voz do Autor: Eduardo Sterzi e Desarquivando o Brasil X: Análise do brilhante poema "País", que Eduardo Sterzi, um dos maiores nomes da literatura brasileira contemporânea, escreveu sobre os quarenta anos do golpe militar. O poema é uma crítica cortante a quem quer reduzir a política à dimensão da memória.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Kelsen, crimes de guerra e justiça de transição


O seminário começou na segunda-feira, mas não consegui escrever antes. O professor Carlos Eduardo Boucault convidou o professor Matthias Jesteadt, que organizou a reedição da primeira edição da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, para dar um curso na Unesp. Paralelamente, organizou este evento sobre Kelsen, para tratar de outros aspectos da extensa obra desse jurista.
O seminário conta com os professores brasileiros Eduardo Saad Diniz, Andityas Soares de Moura Costa Matos e Plínio Toledo.
Falarei também, sobre os crimes de guerra na visão de Kelsen, que era, entre outras especialidades, um internacionalista. Uma questão jurídica muito importante nos anos 1940 foi a do julgamento dos crimes da II Guerra Mundial. Legalmente, esse julgamento teria fundamento, apesar da retroatividade de suas normas, que puniam condutas para as quais não haviam sido anteriormente estabelecidas as penas? Kelsen respondeu que a proibição da retroatividade das leis não se aplicava a esse caso. Cito artigo de 1943, "Collective and Individual Responsibility in International Law with Particular Regard to the Punishment of War Criminals":

O princípio proibindo a edição de normas com força retroativa não deixa de ter muitas exceções. Sua base é a ideia moral de que não é justo fazer um indivíduo responsável por um ato se ele, quando o praticava, não sabia e não poderia saber que seu ato constituía um erro. Se, no entanto, o ato era no momento de sua prática moralmente errado, embora não legalmente, uma lei atribuindo ex post facto uma sanção para o ato é retroativa apenas do ponto de vista legal, não do moral. Uma lei como essa não é contrária à ideia moral que está na base do princípio em questão. Isso é particularmente verdadeiro para um tratado internacional pelo qual os indivíduos foram responsabilizados por terem violado, na sua função de órgãos de um Estado, o direito internacional. Moralmente eles eram responsáveis pela violação do direito internacional no momento em que praticavam os atos que constituíam um erro não apenas de um ponto de vista moral, mas também do legal. O tratado apenas transforma sua responsabilidade moral em legal. O princípio proibindo ex post facto leis é - com toda razão - inaplicável a tal tratado.

Faço notar que o argumento é aplicável a objeções de retroatividade (quando não alegações de "revanchismo") sobre certos casos de responsabilização e punição, com base no direito internacional, de agentes da repressão política, no âmbito da justiça de transição.
Por sinal, falta realizar essa justiça no Brasil.

terça-feira, 20 de março de 2012

Desarquivando o Brasil XXVI: A Comissão da Inverdade, o começo



Sem precisar ser nomeada, temos uma larga e prestigiosa Comissão da Inverdade (CI), operando em vários setores, categorias e esferas: públicos e privados, civis e militares, e mistos, principalmente mistos.
Na época da ditadura militar, houve uma proposta, no seio da Operação Bandeirante, de criar uma "clínica de boatos", detalhada no documento acima de setembro de 1969, reunindo "grupos selecionados de INFORMANTES, aos quais serão fornecidos números de telefones que possam receber as comunicações de boatos, durante um amplo expediente de 17 horas por dia, divididas em 5 períodos:- 7 às 10, 10 às 14, 14 às 18, 18 às 21 e das 21 às 24 horas."
Há mais, sobre que escrevei depois. A proposta, que pode ser lida no Arquivo Público do Estado de São Paulo, decorria da ideia de que o controle da informação era vital para a segurança nacional, o que levava não só à propaganda do regime como a campanhas de desinformação (ambas deveriam andar de mãos dadas, por sinal). Ademais, fazia-se presente a tipificação como "propaganda adversa" às denúncias contra o caráter ditatorial do regime e suas múltiplas violações de direitos humanos, como se essas denúncias e violações fossem falsa.
Hoje, nada de parecido, eis que a democracia formal voltou ao país. A desinformação, no entanto, continua a ser um bem nada escasso, desta vez sem uma central a disparar telefonemas de agentes da repressão.
Na grande imprensa, temos, por exemplo, o Estado de S.Paulo, que não logrou perceber que o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos a investigar e responsabilizar os criminosos responsáveis pelos desaparecimentos forçados na Guerrilha do Araguaia. Teria havido apenas uma decisão advertindo o Brasil, a Corte, nessa cândida visão, simplesmente "advertiu o Brasil a investigar a repressão no Araguaia". Repressão é um eufemismo bem achado, por sinal.
Vejam a, partir da página 115 da sentença, de 24 de novembro de 2010, do Caso Gomes Lund e Outros ("Guerrilha do Araguaia") vs. Brasil :

E DISPÕE,
por unanimidade, que:
8. Esta Sentença constitui per se uma forma de reparação.
9. O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 256 e 257 da presente Sentença.
10. O Estado deve realizar todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 261 a 263 da presente Sentencia.
11. O Estado deve oferecer o tratamento médico e psicológico ou psiquiátrico que as vítimas requeiram e, se for o caso, pagar o montante estabelecido, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 267 a 269 da presente Sentença.
12. O Estado deve realizar as publicações ordenadas, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 273 da presente Sentença.
13. O Estado deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos do presente caso, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 277 da presente Sentença.
14. O Estado deve continuar com as ações desenvolvidas em matéria de capacitação e implementar, em um prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 283 da presente Sentença.
15. O Estado deve adotar, em um prazo razoável, as medidas que sejam necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os parâmetros interamericanos, nos termos do estabelecido no parágrafo 287 da presente Sentença. Enquanto cumpre com esta medida, o Estado deve adotar todas aquelas ações que garantam o efetivo julgamento, e se for o caso, a punição em relação aos fatos constitutivos de desaparecimento forçado através dos mecanismos existentes no direito interno.
16. O Estado deve continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa a violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar, garantindo o acesso à mesma nos termos do parágrafo 292 da presente Sentença. [...]


Tais são algumas das obrigações de fazer. E a sentença também declarou que:

As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.

A Folha de S.Paulo pode também ser alistada entre os membros da CI. Notável editorial do dia 19 de março de 2012 atacou membros do Ministério Público Federal, da seção do Pará, os procuradores Ivan Marx e Tiago Modesto, por apresentarem denúncia contra o Coronel Sebastião Curió.
O editorial é interessante por sua oscilação entre a ignorância e algo que me escapa no momento, mas que talvez eu consiga capturar até o fim deste texto.
Em primeiro lugar, noto como o jornal, oficialmente, não preza pela esfera pública: "Com a decisão, portanto, o Supremo encerrou de vez, e para o bem da sociedade, toda a polêmica sobre o alcance da anistia."
Encerrou? De vez? Para o bem da sociedade? Vladimir Aras explicou muito bem as questões jurídicas envolvidas em Esqueletos no porão e Crimes e dores permanentes. Tenho pouco a acrescentar.
Faço notar, porém, que as decisões judiciais, exceto nos regimes autoritários, em que a censura e o carrasco estão a postos para isso, não encerram discussão de nada. Decisão judicial se cumpre, mas se discute todo o tempo, mesmo depois de transitada em julgado. É evidente que os juristas debatem e criticam decisões o tempo todo, sem o que não pode haver nenhuma teoria jurídica significativa. Mas os cidadãos em geral também devem fazê-lo - a aplicação do direito é uma prática que pode repercutir sobre toda a sociedade, e não deve ser monopólio de uma casta de profissionais.
É interessante que o jornal queira colocar mordaça sobre a sociedade em nome de um suposto bem comum. De forma paternalista, pretende calá-la para o que se decidiu que é o bem dele e corresponde, neste caso, a tortura, assassinato e desaparecidos sob e sobre o tapete da democracia. Decerto, se amordaçada, a sociedade não poderia expressar o que prefere e teria que aceitar o que lhe impingissem os jornalistas da esfera privatizada.
Como sabemos, a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a lei de anistia não encerrou a questão nem mesmo judicialmente, eis que foi seguida da decisão que citei da Corte Interamericana de Direitos Humanos, curiosamente objeto de silêncio no peculiar editorial.
Silenciando a condenação que o Estado brasileiro sofreu, o editorial pretende que a ideia "engenhosa" dos membros do MPF de que o desparecimento forçado é um crime permanente e, portanto, não fora coberto pela lei de anistia nem pela prescrição, é um "raciocínio tortuoso".
O que o jornal expressa, num tom de quem ralha com os procuradores (o paternalismo autoritário é um estilo, não só uma política), é manifestamente falso: a ideia não é um raciocínio torto do Ministério Público. Ela é dita com todas as letras na decisão da Corte Interamericana, que é convenientemente obliterada pelo editorial.
No parágrafo 256 da decisão, que discute o problema em vários pontos, lemos isto:

b) determinar os autores materiais e intelectuais do desaparecimento forçado das vítimas e da execução extrajudicial. Ademais, por se tratar de violações graves de direitos humanos, e considerando a natureza dos fatos e o caráter continuado ou permanente do desaparecimento forçado, o Estado não poderá aplicar a Lei de Anistia em benefício dos autores, bem como nenhuma outra disposição análoga, prescrição, irretroatividade da lei penal, coisa julgada, ne bis in idem ou qualquer excludente similar de responsabilidade para eximir-se dessa obrigação, nos termos dos parágrafos 171 a 179 desta Sentença [...] [grifo meu]

Com essas omissões jurídicas e com a estranha concepção da esfera pública com mordaça, o jornal simplesmente distorce o que está em jogo para atacar o Ministério Público Federal. Ignoro o que os editorialistas da Folha entenderam do julgamento do Supremo Tribunal Federal na ADPF n. 153. Não obstante o arrazoado pouco razoável do jornal, os procuradores estão certos em afirmar que essa corte não apreciou devidamente a questão que hoje é trazida. Escrevi, em um trabalho que apresentei na Espanha, que houve um momento em que se discutiu a questão:

Ayres Britto, que foi o outro Ministro, com Lewandowski, que votou pela procedência (parcial) da ação, teve a oportunidade de fazer um aparte sobre os casos de crime continuado (o que inclui os desaparecimentos forçados), que não estão prescritos, ao Ministro Peluso. Este Ministro, no entanto, manteve sua posição contrária a tais noções básicas de Direito Penal.

Tratou-se apenas de um aparte, embora se tratasse, realmente, de um ponto essencial.
A CI não é composta apenas pela imprensa. Também são membros honorários da Comissão da Inverdade certos militares da reserva - que se manifestam com um notável esquecimento de si mesmos e das Forças Armadas brasileiras. O general Luiz Eduardo Rocha Paiva afirmou que ninguém pode dizer que Herzog foi torturado e assassinado.
No entanto, decisão do juiz Márcio José de Moraes, em 1978, condenou a União pela morte do jornalista. Sobre o assunto, anotei isto:

Tal era a cultura duplamente cínica em relação ao direito: não apenas criar uma legislação de exceção que feria garantias constitucionais e do direito internacional, mas também violar sistematicamente essa própria legislação de exceção.
As ações da polícia política no Brasil, pois, violavam sistematicamente a própria legislação da ditadura militar - razão pela qual o apoio institucional da Justiça Militar era tão fundamental para os "porões da ditadura", expressão que julgo inadequada, eis que a ideia de porão não sugere que nela estão inclusos os próprios palácios do poder.

Aqui, estamos no terreno do negacionismo puro e simples, sobre que já escrevi.
Vejo que esqueci de dizer, nesse ponto do trabalho citado, que o apoio dos veículos de comunicação à ditadura também foi fundamental, e exigiu a implantação de uma cultura jornalística cínica em relação à esfera pública. Talvez eu esteja agora a captar o que antes me fugira.

P.S.: O professor Vladimir Safatle, colunista de Folha de S.Paulo, escreve neste dia de 21 de março, refletindo sobre o editorial do dia anterior, que "É compreensível que o editorialista queira lutar para que o Brasil não vire prisioneiro de seu passado, alegando que tais fatos são 'página virada'." Não é o caso desse professor.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Uma homenagem a Aziz Ab'Saber

Morreu hoje, com 87 anos, o grande geógrafo Aziz Ab'Saber. Ele era um daqueles nomes que ultrapassam as fronteiras de sua ciência, tanto pela importância de sua teoria, quanto pela força de seu engajamento. Conheci intelectuais que eram de esquerda para questões da classe média - para outros problemas, mantinham-se firmes em seus preconceitos de classe. Não era, de forma alguma, o caso dele.
Apesar de todo seu prestígio, não se encastelou: mantinha-se acessível aos que o procuravam e era completamente despido de pose. Achava-o admirável nisso também.
Entre suas bandeiras, estava a criação de bibliotecas populares (lembremo-nos de que ele foi um grande educador), a que ele fazia generosas doações. Enquanto existiu a que era a maior ocupação vertical da América Latina, a ocupação Prestes Maia (acabou em 2007, com o governo Kassab), ele foi um dos apoiadores da biblioteca criada pelo catador de papel Severino Manoel de Souza. Ele esteve na ocupações várias vezes e em duas ocasiões proferiu palestra para os moradores. A propósito, vejam o fundamental livro do Fórum Centro Vivo, o Dossiê Violações de Direitos Humanos na Cidade de São Paulo: propostas e reivindicações para políticas públicas, que documentou o higienismo da era Serra/Kassab, que continua e talvez se prolongue além de 2012, o que dependerá dos eleitores da cidade.
Nestes últimos tempos, Aziz Ab'Saber se dedicava a reunir a obra e a combater o projeto de Código Florestal. A primeira tarefa, ele a terminou nesta semana.
Quanto à segunda, devemos continuá-la por ele e pelas florestas. Ele foi um dos que denunciou o absurdo anticientífico do projeto que faz a alegria da CNA.
Na verdade, ele combateu a proposta desde os seus fundamentos, propugnando que se devia fazer um Código da Biodiversidade, e não um mero Código Florestal. Acessem nesta ligação o texto Do Código Florestal para o Código da Biodiversidade, que ele apresentou na 62ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), uma organização essencial da ciência brasileira (e importante na resistência contra a ditadura militar), de que ele era presidente de honra e conselheiro:

A utopia de um desenvolvimento com o máximo de florestas em pé não pode ser eliminada por princípio em função de mudanças radicais do Código Florestal, sendo necessário pensar no território total de nosso país, sob um ampliado e correto Código de Biodiversidade. Ou seja, um pensamento que envolva as nossas grandes florestas (Amazônia e Matas Tropicais Atlânticas), o domínio das caatingas e agrestes sertanejos, planaltos centrais com cerrados, cerradões e campestres; os planaltos de araucárias sul-brasileiros, as pradarias mistas do Rio Grande do Sul, e os redutos e mini-biomas da costa brasileira e do Pantanal mato-grossense, e faixas de transição e contrato (core-áreas) de todos os domínios morfoclimáticos e fitogeográficos brasileiros.

O próprio modelo, cientificamente, está ultrapassado. Que CNA e Kátia Abreu defendam o atraso, não é de espantar: eles representam a dominação secular do latifúndio no Brasil. E, aos aldorebelianos que acham patriota que o Brasil destrua seus próprios ecossistemas, sugiro que leiam isto:

Será muito triste, cultural e politicamente falando, que pessoas de diversas partes do mundo ao lerem as mudanças absurdas pretendidas para o Código Florestal, venham a dizer que fica comprovado que “o Brasil não tem capacidade para administrar e gerenciar a Amazônia”.

A questão é científica e política. Creio que os obituários repetirão que Aziz Ab'Saber era muito respeitado, mas isso não vale para todos os meios: para a maioria dos políticos profissionais, a palavra dele era igual a zero. Para essa categoria, por sinal, a ciência e a academia não são coisas para se ouvir. Lembro de como ele se referia à ignorância em Geografia de diversos políticos, inclusive de Marina da Silva, que ele achava uma Ministra muito fraca (é verdade, no entanto, que ela é uma sumidade perto da atual versão governamental do ambientalismo).
E por quê? Nesta entrevista que ele concedeu à Fórum, lembramos que aquela categoria prefere a opinião mais cientificamente consolidada das empreiteiras: "Acontece que o governo sempre quer fazer obras gigantescas, faraônicas. Quer transpor as águas do São Francisco, fazer barragens no Madeira, que nem conhece direito, nem sabe a distância, tem pouco conhecimento geográfico."

quinta-feira, 8 de março de 2012

Desarquivando o Brasil XXV: Ruth Escobar e o Comitê Brasileiro pela Anistia


Ruth Escobar (Porto, 1936), além de todos os méritos artísticos, teve um papel importante na luta pela volta dos exilados durante a ditadura militar. Nesta nota, trato apenas desse momento, e não de seus mandatos na política partidária, que foram um pouco posteriores.
No seu teatro, na Rua dos Ingleses, faziam-se reuniões do Comitê Brasileiro pela Anistia. No acervo do DEOPS/SP, que hoje está aqui no Arquivo Público do Estado de São Paulo, há diversos relatórios de espiões que assistiam aos trabalhos. Em certo relatório de 29 de abril de 1979, o agente anota que os Comitês tinham como atribuições:

1 Divulgar toda prisão e quaisquer arbitrariedades que viessem a ocorrer nos diversos setores da população;
2 Divulgar o número e a condição dos presos políticos no Brasil;
3 Promover Assistência Jurídica às pessoas presas e familiares de presos políticos;
4 Promover amparo material e financeiro aos familiares dos presos políticos


Havia uma preocupação com a resistência contra o projeto do Executivo de lei de anistia, que acabou sendo imposto pelo governo. Nesse mesmo relatório, vejam, na página que escolhi, como Ruth Escobar é descrita como responsável pela criação do Comitê Brasileiro, depois de manter contatos com vários movimentos congêneres no estrangeiro e com a Anistia Internacional, bem como com exilados e banidos brasileiros (incluindo Prestes, Arraes e Brizola).

RUTH ESCOBAR, veio orientada pela Esquerda Internacional, a criar no Brasil um COMITÊ BRASILEIRO PELA ANISTIA, que perseguissem os objetivos das congêneres em outros países, exercendo crescente pressão sobre o Governo para forçá-lo a conceder "ABERTURAS POLÍTICAS", como primeira "deixa" para entrarem em cena, seguindo-se após, intensa mobilização, utilizando-se de todos os artifícios possíveis, tentando sempre colocar em "xeque" a autoridade do regime, e inevitavelmente, o primeiro passo a ser dado seria a libertação de todos os "presos políticos", a Anistia para os banidos e exilados a devolução dos direitos dos cassados, e da liberdade para, retornando ao país poderem atuar - como sempre o fizeram em outras épocas - mas agora sob a legalidade, abertamente, sem os temores da clandestinidade.

O uso da expressão "entrar em cena" pelo agente foi uma boa escolha, eis que se tratava de um teatro e de uma atriz a congregar familiares e advogados de presos políticos e exilados naquelas reuniões.
O uso das aspas pelos espiões merece um estudo à parte: como, oficialmente, o regime era democrático, a expressão presos políticos deveria vir entre aspas. A Anistia, tal como o movimento a reivindicava, era considerada como perigosa, pois abriria as portas para a legalização da contestação do regime, isto é, à subversão.
De fato, o projeto oficial do governo, como já escrevi, não previa uma anistia ampla, e bem representava a lentidão calculada da abertura política.
Ruth Escobar teve em 2000 diagnosticado o mal de Alzheimer. Ela não poderá ler esta nota, mas segue esta pequena homenagem no Dia Internacional da Mulher.