O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Desbloquear o urbano: a audiência da Nova Luz e o Estatuto da Cidade

Os dez anos que o Estatuto da Cidade, lei federal n. 10257, completará em 2011 revelam bem o público segredo do idealismo jurídico: as normas jurídicas, por si mesmas, não resolvem problemas sociais.
Isso não quer dizer que o Direito não importe, muito pelo contrário, e sim que ele não deve ser o substituto da ação, e sim que ele deve ser prática social. Se é importante que o Estatuto da Cidade exista, é também necessário que ele seja aplicado e o direito à cidade seja implementado.
O urbanismo é um campo que bem mostra que a simples conjugação dos egoísmos individuais não gera o bem coletivo, e sim algo como as grandes cidades brasileiras: falta de planejamento, corrupção, injustiça, degradação.
O direito urbanístico é algo que nasceu muito tarde no Brasil, muito depois de a maioria da população brasileira ter-se tornado urbana. Afinal, tivera nascido antes,
talvez tivesse imposto algumas restrições ao capital imobiliário, como restrições de uso, de aproveitamento do terreno... Pois o capital imobiliário quer simplesmente maximizar o lucro sem se importar com o impacto urbano, que deverá ser suportado pela coletividade.
A primeira legislação federal sobre loteamentos, o decreto-lei n. 58 de 1937 (da ditadura de Vargas), simplesmente ignorava as questões urbanísticas; concentrava-se nos aspectos privados da relação entre o vendedor e o adquirente do lote.
A moradia é uma questão complexa demais para ser reduzida à simples negociação entre particulares - negociação em que prevalecerá a parte economicamente mais forte. A expansão urbana, com forte base nos loteamentos, simplesmente se deu com a venda de lotes sem infraestrutura, de forma muitas vezes ilegal, sem que houvesse instrumentos jurídicos para eficazmente combatê-la.
Na ditadura seguinte, o decreto-lei n. 271 de 1967 não chegou, nem de longe, a resolver o problema. Avanço maior foi a lei n. 6766 de 1979, que, no entanto, ainda não era a lei geral de urbanismo necessária. Juristas colaboradores do regime, como Miguel Reale, insistiam que os Municípios não poderiam legislar a respeito do direito urbanístico - mas a Constituição de 1969 era omissa a respeito.
Havia, de fato, uma omissão. Rocha Lagôa gostava de lembrar que a palavra cidade inexistia no código civil brasileiro então vigente - embora códigos contemporâneos, em outras partes do mundo, não apresentassem tal lacuna.
De uma lado, para o capital imobiliário, de fato, é melhor que não haja regulamentação, que sempre trará alguma restrição a sua atividade; por outro lado, a população mais pobre não pode conter com políticas de habitação social, sem o suporte jurídico - essa é uma das razões pelas quais o direito importa.
Os movimentos pela reforma urbana, sabedores disso, conseguiram que a Constituição de 1988 tivesse um capítulo da política urbana no título da ordem econômica e financeira, que previa diversos instrumentos urbanísticos.
Começou, então a luta pela eficácia, em dois planos: o municipal e o federal. No primeiro, era necessário aprovar o plano diretor. No segundo, uma lei que fixasse as diretrizes gerais da política de desenvolvimento urbano.
Os grupos que lucram com o caos urbanístico lograram por muito tempo vencer nos dois planos. Veja-se o Município de São Paulo, vanguarda do atraso nacional na matéria, que somente veio a ter plano diretor no governo de Marta Suplicy.
No plano federal, a vitória da ineficácia veio até 2001 - somente nesse ano o artigo 182 da Constituição foi regulamentado com a aprovação do Estatuto da Cidade. Somente no século XXI o Brasil passou a ter uma lei geral de urbanismo! Isso era vital porque o Supremo Tribunal Federal decidiu que os instrumentos urbanísticos previstos pela Constituição, mesmo que estivessem regulamentados nos planos diretores municipais, seriam ineficazes sem a lei federal...
Muitos Municípios, todavia, continuavam sem plano diretor mesmo após o Estatuto, que previu um prazo de cinco anos para sua aprovação, sob pena de improbidade administrativa.
Hoje, que a maior parte dos Municípios possui o plano diretor, e temos a lei federal, a luta é pela implementação dessas normas, ou seja, a realização das políticas públicas previstas pela lei. Não basta a simples eficácia formal das leis. Sem essas políticas, o direito à moradia não se efetuará, como escrevi neste livro da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e da Jornada em Defesa da Moradia Digna, disponível gratuitamente na internet, e que conta com textos de Ermínia Maricato, Nabil Bonduki e outros importantes urbanistas.
Além desses nomes importantes, há também um texto meu sobre a hipocrisia oficial dos poderes públicos, que recusam a legalidade instituída, e a luta dos movimentos sociais para que as promessas do direito sejam cumpridas. A questão das classes sociais é evidente:

A ação dos movimentos sociais de moradia, que, em sua retórica jurídica, pleiteiam que os direitos constitucionais sejam “levados a sério”(para usar a expressão de Dworkin), bem como o Estatuto da Cidade, a que os Municípios em geral não têm dado cumprimento, corresponde, defende este trabalho, a um pluralismo paradoxal. Os movimentos não reivindicam uma outra ordem jurídica, e sim a efetividade da ordem oficial, enquanto as autoridades públicas, no Judiciário e no Executivo decidem e agem de forma a violar o direito estatal. De baixo para cima, é preciso violar o Direito para tentar que ele seja cumprido – as ocupações(e isso as distinguiria, segundo os movimentos sociais, de simples invasões) seriam o instrumento, embora formalmente ilícito, de dar efetividade ao Direito: a própria legalidade precisa ser construída de forma ilegal. De cima para baixo,temos,ao contrário,a recusa à efetividade do direito constitucional, bem como a violação pura e simples da legislação infraconstitucional e de tratados internacionais sobre direitos sociais pelas autoridades públicas – a produção legal da ilegalidade.


Uma implementação democráticas de políticas públicas depende da participação popular, prevista no Estatuto. O caráter exuberantemente pouco democrático da atual administração municipal que os eleitores de São Paulo escolheram transparece no projeto da Nova Luz.
A atual administração perseverou em uma política de entrega do planejamento urbano a corretores e empreiteiras, por meio de concessões urbanísticas, nomeações para o secretariado, alienações do patrimônio público etc. Isso redundou no aprofundamento do colapso do que é público na cidade: transporte, saúde, defesa contra intempéries (afinal, elas afetam mais os pobres...) etc. A Cracolândia, altamente expandida nos governos Serra (um ex-ministro da Saúde, mas de que governo mesmo?) e Kassab, caminha para se tornar a mais completa tradução da cidade de São Paulo.
E o projeto da Nova Luz, que extinguiria a Cracolândia? O caráter pouco democrático da atual administração do Município revela-se, entre outros exemplos, no pouco apreço às audiências públicas: em 14 de janeiro de 2011, depois de anos, o projeto teria sua audiência, que acabou sendo cancelada por excesso de público - comerciantes e moradores mobilizaram-se e pegaram as autoridades de surpresa. O Município queria ir em frente (com centenas de pessoas do lado de fora querendo entrar), mas a Polícia Militar (em geral, mais lúcida nessas horas do que os representantes do governo) ajudou a convencer de que não havia condições, no auditório da Fatec, de que os trabalhos fossem realizados.
Estive lá e pude ver faixas muito significativas como "Cimento não cura crack".
Ela foi remarcada para hoje, dia 28 de janeiro, às 18h, no auditório Celso Furtado do palácio de convenções do Anhembi.
Cancelar audiência pública por excesso de público não seria um belo exemplo do "excesso democrático" segundo Rancière? De qualquer forma, é auspicioso que a população se mobilize, ainda mais neste momento em que o prefeito abandona o seu partido para buscar novos horizontes (quem sabe o governo do Estado?) na base aliada da presidenta Dilma Rousseff.
Não poderei ir, mas tenho certeza de que a mobilização se manterá.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Evento: aniversário de São Paulo

No aniversário de São Paulo, também a Casa das Rosas manterá uma programação especial.
Como é sabido, a Casa das Rosas hoje é patrimônio estadual junto com a biblioteca do poeta Haroldo de Campos, nela abrigada - e, como tal, integra juridicamente o patrimônio público.
A Casa se tornou pública de fato, e não só de direito, por meio da atuação do professor e poeta Frederico Barbosa, que a abriu para diversos grupos e tendências. Ninguém pode dizer, creio, que sua atuação frente à Casa foi sectária. Até mesmo eu, que não tenho ligação alguma com o partido no poder no Estado de São Paulo (já o critiquei diversas vezes e não tenho ligação com partido algum), nem faço parte de grupos de prestígio literário, já lancei dois livros lá (História e Método na Pesquisa Jurídica, coordenado por Carlos Eduardo Boucault, e uma antologia para crianças da poesia de Federico García Lorca, que selecionei e traduzi, Meu coração é tua casa, que ganhou o Altamente Recomendável da FNLIJ).
Amanhã, participarei do sarau das quatro horas da tarde. Mesmo assim, será interessante já estar lá, por causa da programação anterior, e na Casa permanecer, em razão dos outros nomes que estarão no sarau da tarde e da música e da poesia que acontecerão até o fim da noite.
Não vou falar deles. Prefiro lembrar de alguém que já não pode falar: Luis Aranha, o participante da Semana de Arte Moderna que abandonou a poesia, e cujo livro Cocktails foi recuperado por Nelson Ascher e Rui Moreira Leite. Os originais haviam sido entregados pelo autor a Mario de Andrade, escritos entre a Pauliceia Desvairada de Mario e a Poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade, mas só publicados nessa edição de 1984 da Brasiliense.
Nelson Ascher bem destaca na introdução o singular internacionalismo do poeta.
Queria lembrar só deste trecho do poema "Drogaria de éter e de sombra":

Sou Poeta!
E todos os barulhos não valem a ressonância do meu crânio!
A multidão arrastando-se na cidade
O tripudiar de um piquete de cavalaria
Bondes desabalando frenesis de velocidades
Um milhão de máquinas de escrever batendo frenética [simultaneamente todas as suas teclas
Letras se suspendendo em pontas de tentáculos
Villes Tentaculaires!


É surpreendente a imagem dos textos que, ao serem datilografados na cidade, criam uma outra, que vem da máquina e da letra. Na internet, temos exemplos dessa visão.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Médici aclamado: Negacionismo ou revisionismo?

Eu estava a rever alguns documentos da polícia política que encontrei em uma pesquisa que estou realizando sobre a ditadura militar. Entre eles, uma ordem confidencial de prisão contra uma grande historiadora brasileira que já havia sido encarcerada. Ela acabou se exilando nos Estados Unidos.
A ordem partiu do Ministério do Exército em 1970, isto é, na época do governo do general Garrastazu Médici.
Isso fez-me recordar que, em dezembro de 2010, formou-se uma turma de cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) com o nome desse antigo comandante das Agulhas Negras, ex-delegado brasileiro na Junta Internacional de Defesa Brasil-Estados Unidos e sucessor de Costa e Silva no SNI e também em outro cargo.
O nome foi escolhido bem antes da formatura, no primeiro ano da turma. Não se trata, pois, de homenagem desencadeada pela eleição da presidenta Dilma Rousseff, que conheceu por dentro a arbitrariedade das forças de segurança de Médici (e a elas sobreviveu).
A cerimônia de posse levou a um pequeno escândalo, em razão do discurso do eterno ministro Nelson Jobim, cuja fala, ao lembrar da submissão das Forças Armadas pelo Poder Civil, não foi bem aceita por todos os militares.
Creio que o episódio na AMAN demonstra alguma nostalgia por certos valores que estruturaram a formação das Forças Armadas no brasil. É significativo que isso tenha ocorrido em uma instituição de ensino, pois é para esse tipo de instituição que devemos olhar se queremos ter pistas sobre o futuro. Neste caso, um futuro que se deseja à imagem e semelhança do passado.
Hildegard Angel inquietou-se com o acontecimento.
Há motivos para isso? Quem responderia não poderia lembrar do suposto ideário democrático de Médici, amplamente propagandeado na obra A verdadeira paz:

Louvo na progressista Imprensa de meu País, a grande multiplicadora de idéias e o instrumento indispensável à mobilização dos recursos humanos para o nosso desenvolvimento econômico.

Cito apenas essa passagem, mas há outras, que contrastam fortemente com a pesada censura, as vezes legal, existente naquele governo.
O discurso de posse de Médici também negou frontalmente o contexto histórico:

Homem da lei, sinto que a plenitude do regime democrático é uma aspiração nacional. E, para isso, creio necessário consolidar e dignificar o sistema representativo, baseado na pluralidade dos partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem.
Sobre esse governo, O Alambari, informativo da Academia Militar da Agulhas Negras, na edição especial que indiquei acima, segue a linha negacionista adotada pela propaganda oficial da época e tem a dizer o seguinte:

Promovido a General de Exército em 25 de março de 1969, foi nomeado comandante do III Exército, atual Comando Militar do Sul. Neste mesmo ano, em 25 de outubro, foi eleito Presidente da República pelo Congresso Nacional.
Durante o exercício da Presidência da Republica, toda vez que anunciavam sua presença, em comemorações cívicas e eventos desportivos, era viva e demoradamente aclamado pelo povo, devido à sua integridade de caráter e ao extraordinário progresso econômico alcançado pelo Brasil durante seu governo.

O que é negado nesse trecho? Que não foi o Congresso Nacional que escolheu o general como presidente - a escolha foi prévia, do comando militar, o papel dos congressistas era simplesmente o de dizer "sim" à vontade das fardas. Que a popularidade do general foi construída a partir de intensa propaganda oficial e feroz censura à imprensa (uma das razões pelas quais não podem ser comparadas as popularidades de Médici e Lula, ao contrário do que recentemente pretendeu um grande poeta e mau jornalista). Que houve repressão política, e ela não se contentou com a censura: lançou mão sistematicamente da tortura e do assassinato.
A canonização de Médici é um exemplo de revisionismo? Não gosto muito do termo, pois a revisão, em princípio, nada tem de negativo. Prefiro chamar a casos como esse de negacionismo. Vidal-Naquet tem um livro fundamental sobre o assunto, "Os assassinos da memória: 'Un Eichmann de papel' e outros ensaios sobre o revisionismo" (Les assassins de la mémoire: "Un Eichmann de papier" et autres essais sur le révisionnisme).
Vidal-Naquet bem escreve que o revisionismo, que ele estuda a partir dos que negam o genocídio contra os judeus cometido pelo Estado alemão durante a Segunda Guerra Mundial, não é uma revisão da história:

No campo estilhaçado do discurso histórico, como se situa a empreitada "revisionista"? Sua perfídia é justamente se aparentar com o que ela não é: um esforço para escrever e pensar a história. Não se trata de construir um relato verdadeiro. Tampouco se trata de rever as supostas conquistas da ciência histórica. Nada de mais natural que a "revisão" da história, nada de mais banal. O tempo, ele mesmo, modifica o olhar não somente do historiador como do leigo. (tradução minha, p. 149)
O revisionismo quer negar fatos históricos: o genocídio, a repressão política. E o faz a serviço do poder. Também nesse aspecto ele nega o ofício do historiador, e por isso prefiro chamá-lo de negacionismo.
Não por acaso, os historiadores são caçados por regimes políticos autoritários.
Volto, pois, aos documentos e à pesquisa.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Edições, história, censura: a imprensa de ontem e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

A Imprensa Oficial do Estado de São Paulo tem cumprido a função que uma editora pública deve assumir: a publicação de obras de grande valor que são desprezadas e/ou ignoradas pelas editoras comerciais, ou que simplesmente exigem investimentos muito grandes, que uma empresa privada relutaria em fazer.
Hubert Alquéres, que foi seu diretor desde 2003, deixa-a. O governador Alckmin escolheu para substituí-lo Marcos Monteiro, tesoureiro do PSDB (função que provavelmente lhe conferiu alguma experiência em edição).
Quero destacar somente duas das várias iniciativas de recuperação da memória por esta editora. Uma delas, na gestão de Sérgio Kobayashi, a coedição com o atual Correio Braziliense do periódico homônimo do século XIX: o primeiro jornal brasileiro, editado por um homem só, Hipólito José da Costa.
Ele era impresso em Londres (no Império britânico havia liberdade de imprensa, não no português) e era distribuído aqui mais ou menos clandestinamente. O jornalismo brasileiro teve que nascer em exílio.
Circulou entre 1808 e 1822. Com a independência do Brasil, o jornal foi extinto por seu dono e redator, pois a missão estaria cumprida.
A edição fac-similar reserva momentos como esta reflexão, publicada pelo jornalista em dezembro de 1815 a partir da abolição do tráfico de escravos na França:

Consideramos por fim a utilidade da aboliçaõ da escravatura em outro ponto de vista. Nós temos sempre insistido na necessidade de abolir a forma de governo militar nas provincias do Brazil, o nosso periodico está cheio de clamores contra tudo quanto he authoridade arbitraria; temos mil vezes arguido, que os povos do Brazil tem direito a gozar daquella liberdade racionavel, que consiste em naõ estar sugeito se naõ ás leys, e naõ ao arbitrio dos que governam; &c. Ora ¿ como pòde um senhor, no Brazil, gozar destes beneficios; quando tem debaixo de seu poder um escravo, para quem olha quasi com a mesma consideraçaõ, como para o seu caõ, ou o seu cavallo?
¿ Como he possivel, que o homem branco profira os seus desejos de gozar de liberdade, tendo ao pé de si o negro escravo em todo o rigor da palavra?

A mentalidade escravista não morreu, e a ditadura militar deu-nos vários exemplos disso. Ainda no campo da história da imprensa brasileira, outro caso é o jornal ex-, que durou muito menos do que o anterior (de novembro de 1973 a dezembro de 1975) e foi fechado pela censura direta (militares na redação, prisão e tortura de jornalistas) e indireta (ameaças aos anunciantes) do governo ditatorial.
Em 2010, foi relançado, de forma fac-similar, em coedição da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo com o Instituto Vladimir Herzog.
É de lembrar que foi esse jornal o que fez a reportagem pioneira sobre o assassinato de Vladimir Herzog no Destacamento de Operações Internas do II Exército, o que precipitou o fim do periódico, mas abriu portas para outros veículos da imprensa.
De um número extra desse jornal, de setembro de 1975, retiro citações que contrastam com certas posições sobre a imprensa brasileira de hoje.
Escrevi sobre o fim da coluna de Maria Rita Kehl no Estado de S. Paulo, como expressão de uma função censória. Li, no entanto, pessoas que sustentaram que os jornais devem expor apenas a voz do dono, que é dono das vozes que emprega (mesmo os colunistas!), pelo que nada demais teria ocorrido.
O que eu não sabia é que o acontecido colidiu com valores que já foram defendidos pelo próprio jornal, contrários à posição dessas pessoas. Pelo menos é o que se pode deduzir de fala de Ruy Mesquita, então diretor do Estado de S. Paulo e do Jornal da Tarde, no Grupo Educacional Equipe em São Paulo em 1o. de setembro de 1974.

[os jornalistas do Estado de S. Paulo] nos seus 98% discordam da orientação dos diretores do jornal e têm absoluta liberdade de escolher as notícias, assim como para estabelecer a hierarquia das notícias. O jornal O Estado de São Paulo, como todos os outros grandes jornais noticiosos do mundo, procura dar toda informação possível, sem nenhum critério ideológico ou político. (p. 4)

Quanto à orientação do jornal, é evidente: não há liberdade quanto à orientação da página editorial - quem dá a orientação são os diretores do jornal. Quanto ao trabalho dentro do jornal, há total liberdade com uma única recomendação: de se manter a objetividade humanamente possível na elaboração do noticiário. (p. 5)

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Memória e Ditadura: Vídeos da UFSC e novo livro da Secretaria de Direitos Humanos

Descobri estes vídeos do Seminário Direito e Ditadura no blogue de Murilo Duarte Costa Corrêa, A navalha de Dalí (indicado ao lado, entre os "blogues que leio").
A abertura do seminário está nesta ligação, bem como as primeiras palestras. As outras podem ser vistas nesta página.
Já me referi à palestra que dei no Seminário, organizado pelo PET do Direito da UFSC.
Acompanhei pouco o evento, pois tive que voltar a São Paulo. Assisti à longa fala de Vladimir Safatle, que apresentou o capítulo que escreveu no livro organizado com Edson Telles, O que resta da ditaura (no evento, repetiu a estranha afirmação do livro de que a ditadura militar aderiu a tratados contra a tortura). Os comentários do jurista Alexandre Morais da Rosa foram interessantes, bem como as questões do público.
Por sinal, achei muito bons os alunos da UFSC. Lembro agora das reações e das perguntas feitas a uma professora que explicou que os torturadores são velhinhos de pijama e que há mais de uma teoria da justiça (de fato, sobre qualquer coisa no mundo, há mais de uma teoria), razão pela qual não se poderia puni-los: deve-se apenas cobrar a verdade (e a verdade do Brasil é a impunidade? Um pensamento essencialista, pois).
Eu iria começar a minha palestra com o Zé Celso - um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos, e um dos poucos que, hoje, pensa o país - tratando do canhão fálico em O Rei da Vela (bélica invenção do diretor, não de Oswald de Andrade) e sua esdrúxula relação com a segurança nacional. O ensaio de Airton Seelaender sobre o apoio de Goffredo da Silva Telles Jr. ao golpe de 1964, apresentado logo antes de minha fala, fez-me iniciar de outra maneira, no entanto.
Retomei o Zé Celso depois de uma disgressão sobre outro autor, menos importante. E o diretor-dramaturgo-ator, curiosamente, era um tema também de Alexandre Nodari (com o mesmo canhão) e de Flávia Cera, que é uma original pesquisadora do tropicalismo. Falou depois deles Murilo. A mesa desses três amigos meus, com suas afinidades teóricas, foi bem montada. Alegra-me pensar que eles ainda não terminaram o doutorado e já são mais originais do que vários pesquisadores renomados...
Estive na mesa de um depoimento de um importante advogado nos anos de chumbo, Modesto da Silveira (sua vida profissional é impressionante: ele ajudou, por exemplo, Gabriela Silva Leite a criar a associação nacional de prostitutas, que mencionei aqui).
Ver Modesto da Silveira significa presenciar uma parte desta história do Brasil. Note-se também o discurso que Marcel Soares proferiu para introduzi-lo: ele recorda, para quem esqueceu, que a história continua a ser feita.
Há muito a fazer no campo da história. Por isso, é muito oportuna a publicação de Habeas Corpus: que se apresente o corpo, disponível nesta ligação. Trata-se de livro lançado em dezembro de 2010 pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Paulo Vannuchi, na introdução, aborda as desavenças dentro do Executivo e com o Executivo no tocante à criação de uma Comissão Nacional de Verdade e afirma o objetivo desta publicação:

O livro Habeas Corpus sistematiza e resume todas as informações que foi possível colher ao longo de décadas a respeito da possível localização dos restos mortais, muitas vezes com datas e dados contraditórios entre si. Se existir algum grande mérito nessa compilação, ele cabe inteiramente ao esforço heróico dos familiares das vítimas, ex-presos políticos e ativistas que resistiram a décadas de portas fechadas, descaso, omissões, ameaças e até morte, como foi o caso de Zuzu Angel. A esses lutadores e a essas lutadoras, mães, irmãs, filhas, parentes de todo tipo, que nunca desistiram dessa busca, esse livro deve ser dedicado.
Ele se oferece como um primeiro guia para leitura e discussão entre os parlamentares que decidirão sobre aprovar ou não a criação da Comissão Nacional da Verdade. E, mais ainda, como um roteiro inicial para os próprios integrantes dessa Comissão, caso o Legislativo brasileiro assim o decidir. (p. 5)


Seria um efeito político profícuo. Fábio Konder Comparato é citado nas páginas 23 e 24 por conta da inadmissibilidade da extensão dos efeitos da lei de anistia de 1979 aos "carrascos do regime militar". Anthony Pereira, na análise da permanência no Judiciário dos juízes que aderiram ao golpe militar, e no caráter "profundamente autoritário" da cultura judicial (p. 25).
A Operação Condor, este exemplo de cooperação sul-americana no Terror de Estado, recebe destaque. Falta o Brasil democrático aderir à cooperação na punição desse Terror. O livro explica as iniciativas, após a democratização, da Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai para realizar a justiça de transição.
Os casos de desaparecidos começam na página 57; ao longo do texto, desmontam-se farsas encenadas pelas autoridades da época, como Alfredo Buzaid (como a da página 78) e Romeu Tuma, recentemente canonizado pela imprensa brasileira após sua morte em outubro de 2010 (ver, por exemplo, a página 279). E recuperam-se histórias como a de Antônio Raymundo de Lucena (p. 307), ex-militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), que foi morto diante da esposa, Damaris Oliveira Lucena, e dos filhos. Ela e seu filho Ariston foram presos; ela acabou deixando o Brasil, exilando-se com os filhos no México e, depois, em Cuba.
Foi deferida a Damaris indenização segundo a lei 10559 de 2002. Os filhos foram anistiados em 2010. Porém, o corpo de Antônio nunca foi devolvido.
Esse corpo que se faz presente por meio de sua ausência é uma imagem exata da democracia brasileira.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Resenha do Século de Ouro, antologia da poesia portuguesa do século XX

Escrevi esta resenha há mais de sete anos para a antiga revista de poesia Cacto (São Paulo, n. 3, primavera 2003, p. 198-204), que era editada por Eduardo Sterzi e Tarso de Melo. Uma versão menor apareceu anteriormente em um revista de estudantes da graduação em Letras da USP, Metamorfose, editada pelos escritores, nessa época graduandos, Eduardo Lacerda e Andréa Catrópa.
Como as revistas não estão mais disponíveis, e a antologia continua sendo notável, resolvi incluir o textinho aqui.


O ouro do século: Apreciação da antologia da poesia portuguesa do século XX Século de Ouro

Pádua Fernandes

Um bom crítico, todavia, deve julgar os autores não por suas omissões, mas por seus relatos, e se achar qualquer inverdade nestes pode concluir que as omissões são devidas à ignorância; entretanto, se tudo que o autor diz é verídico o crítico deve admitir que o seu silêncio em relação a tais assuntos é deliberado e não decorrente da ignorância.
Políbio (História, Livro VI, parágrafo 11, tradução de Mário da Gama Kury)



Histórica, inafastável, antológica – e neste adjetivo, aparentemente tautológico, poder-se-iam resumir as qualidades de Século de Ouro: Antologia crítica da poesia portuguesa do século XX, organizada por Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra (Braga/Coimbra/Lisboa: Angelus Novus; Cotovia, 2002).
O que torna tão especial esta antologia? Em primeiro lugar, a sua estrutura: a cada poema corresponde um ensaio, explicitando que, por trás de toda antologia, existe (ou deveria existir) pensamento crítico.[1] Em segundo lugar, os antologistas sabem que uma antologia é um livro de história.
Devo, porém, precisar o que digo: na medida em que uma antologia corresponde a uma leitura de um período histórico, ela é um livro de história. Nos casos de antologias de literatura contemporânea, podemos comparar os seus riscos (sempre maiores) aos estudos de história contemporânea.
E a ignorância ou o menosprezo desse componente histórico presente em qualquer antologia explica o constrangimento de certos esforços, como o da Antologia de Poesia Portuguesa Contemporânea: Um panorama, organizada por Alberto da Costa e Silva e Alexei Bueno (Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999).
Essa antologia feita no Brasil, embora apresente (mal) 72 poetas, é menos representativa do que Século de Ouro. O critério de contemporaneidade correspondeu a simplesmente escolher autores que tivessem nascido a partir do último ano do século XIX, 1900 - isto é, substituiu-se a história pelo calendário. Tal corte levou a exclusão de poetas como Fernando Pessoa, que, todavia, lançou sua sombra sobre toda poesia portuguesa do século XX - ele só passou a intervir na esfera pública com força após a sua morte. Poetas nascidos no século XX, mas não afinados com o tradicional lirismo português, como Alberto Pimenta,[2] também foram cortados – novamente, creio, por um repúdio à história, eis que ela é uma constante interlocutora do autor de Ode pós-moderna.
Posição oposta, deve-se lembrar, teve a histórica antologia organizada por Cecília Meireles, Poetas Novos de Portugal (Rio de Janeiro: Dois Mundos Editora, 1944). Ela foi o primeiro autor no Brasil a escrever sobre Fernando Pessoa. Viajou a Portugal para conhecer “o caso mais extraordinário das letras portuguesas” (p. 38), mas ele, simplesmente, não apareceu ao encontro marcado. Deixou, porém, um exemplar de Mensagem autografado. Esse grande desencontro da literatura de língua portuguesa por vezes é atribuído a incompatibilidades astrológicas entre os dois autores; mas talvez seja explicado pela solidão imensa que Pessoa havia conquistado nos seus últimos momentos de morte adiada.
Cecília estava plenamente consciente das questões do tempo na poesia e explicou, na antologia, que não escolheu poetas contemporâneos, e sim novos: “Pelos nomes incluídos, ver-se-á que são considerados “novos” ou seus precursores muitos poetas já não contemporâneos.” (p. 18). Dessa forma, Ângelo de Lima e Camilo Pessanha incluíram-se na antologia e contemporâneos “não novos” foram excluídos, coerentemente com um critério que não se resume à consulta do calendário.
Retornando ao Século de Ouro: não se trata – é preciso ressaltar – de um história da poesia portuguesa do século XX, nem de uma coletânea de micro-histórias, como os próprios antologistas deixam claro (p. 45 e 57). No formidável estudo que introduz a antologia, “Desaprender (com) a História”, Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra demonstram que, em primeiro lugar, o recorte temporal do século XX exige uma determinada concepção historiográfica: discutem Hobsbawn e o seu “curto século” e acabam por adotar um lapso temporal maior. Em segundo lugar, afirmam que uma antologia normalmente envolve a concepção de “história monumental”, no sentido dado por Nietzsche – e dessa vontade monumentalizante, normalmente implícita em todas as obras deste tipo, é que os antologistas buscaram fugir.
A estratégia de fuga à história monumental para se criar uma antologia verdadeiramente crítica está presente em várias táticas: uma delas é a ausência de uma autoridade interpretativa única: o livro compõe-se de 73 poemas escolhidos por 73 ensaístas (número a que se chegou por acaso, eis que 87 era a quantidade original de escritores) representando 47 poetas. Cada ensaísta escolheu uma lista tríplice de poemas; o trabalho dos antologistas foi o de escolher um poema dessa lista para cada um dos ensaístas. Daí a constelação de diferenças críticas: frankfurtianos, fractais, estudos culturais, marxismo, por vezes em luta direta.
Não seria o caso de comentar os ensaios neste breve texto, embora eu não me furte a destacar o estudo "arqueológico" de Miguel Tamen sobre "Soneto já antigo" de Álvaro de Campos. ("um crítico é alguém que lembra dolorosamente a terceiros que um casaco que viram de passagem numa montra e por que se apaixonaram [...] é afinal feito de um material pouco nobre", p. 156) e o de Pedro Serra sobre as metamorfoses galináceas de "Os ovos d'oiro" de Armando Silva Carvalho ("Um dos mijados pelo cão do tempo é a Poesia, com uma história de resto muito cara aos voos", p. 313).
Além da heterogeneidade crítica, outro fator que faz o livro escapar à tentação totalizante e tradicionalista própria das antologias é a ordem dos poemas: completamente casual, foi escolhida por um programa de computador!
A originalidade de Século de Ouro, pois, decorreu da consciência de que “a prática antológica não é possível fora de um horizonte crítico” (p. 39) e da adoção de uma perspectiva pós-histórica de sincronização de diversas contemporaneidades do século passado.
Não por acaso, a epígrafe da obra veio de Drummond: os ratos roendo o edifício do século. Assim termina a introdução: “Não somos os pósteros do século XX, não somos os executores testamentários do século XX, que, mais uma vez, no caso da poesia portuguesa, não acabou: Século de Ouro é meramente o nome de mais um dos seus recomeços.” (p. 65).
Lamentavelmente, a recepção crítica em Portugal tem muitas vezes ignorado o estudo introdutório – que, por sinal, responde às objeções levantadas por essa mesma crítica – e limitou a dedicar-se a lamentar a ausência deste ou daquele poeta. E, numa demonstração da trans-histórica estupidez da retórica dos políticos, deputados do Partido Socialista eleitos por Coimbra decidiram protestar publicamente contra a exclusão de Miguel Torga e Manuel Alegre (autores ligados aos socialistas)!
Não por outra razão, pois, escolhi Políbio para epígrafe desta resenha sobre uma antologia que tem como referência teórica autores como Derrida e Nietzsche: as ausências da antologia também possuem um sentido, pois compõem um perfil possível para o que a poesia portuguesa do século XX significou.
Mas Século de Ouro cria mesmo um perfil? Atrevo-me a dizer que sim; conquanto os antologistas tenham rejeitado, em nome de uma concepção pós-histórica, a busca da verdade da poesia portuguesa, parece-me defensável dizer que, no seu estudo introdutório, Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra tentaram fixar uma verdade sobre essa antologia. E é certo que buscaram fixar um método a todos os ensaístas: o modelo da close reading. Além do método, os organizadores fizeram a escolha a partir das listas tríplices - e não se deve diminuir a influência disso. Senão, o governo brasileiro não faria questão de intervir nas universidades públicas reservando-se o direito de escolher o reitor a partir dessas listas, não raramente o candidato menos votado!
Talvez mais importante do que a opção por essa leitura imanentista, os organizadores escolheram os ensaístas – e seria de esperar que Robert Bréchon, por exemplo, autor da bela biografia de Pessoa, Étrange étranger, escolhesse poemas do biografado. De fato, seu ensaio sobre “Magnificat”, de Álvaro de Campos, é um dos mais belos da antologia – e repete a história do gato materializado pela leitura, contada na biografia.
Creio apropriado, portanto, tentar interpretar o perfil da antologia e considerá-la um trabalho autoral, já que “nenhum poeta, nenhum poema ou nenhum leitor pode chegar a ter uma absoluta consciência de si” (p. 26). Ademais, a própria ordem casual deve ser interpretada, pois o acaso (já se sabe muito antes de Mallarmé) produz significado – para o confirmar, basta recorrer a um livro milenar como I Ching.
Gostaria de referir-me tão-somente a três pontos de leitura: o título; que conduz para o segundo, que é Pessoa; o terceiro, que é a esfera pública, que reconduzirá para o segundo.
O ruído do título: Século de Ouro é um título de ouro? E, se for, não desmentiria o intento pós-histórico dos antologistas? Trata-se de uma direta referência ao Siglo d’oro espanhol, sim, mas essa referência é positiva? Servirá para a confissão de um “atraso” da literatura portuguesa, já que foi no século XX que “tudo” em Portugal “começou” (p. 47), e que Portugal foi, como no soneto de Quevedo, “Avaro y rico, y pobre en el tesoro”?
O caso Pessoa: a “metáfora” século de ouro sustenta-se, bem dizem os antologistas, porque houve Fernando Pessoa (p. 37); no entanto, é de notar-se a ausência de Alberto Caeiro, justamente um dos heterônimos mais populares, e mestre dos demais.
É verdade que o século em Portugal começou ignorando Pessoa (autor por excelência póstumo); depois de morto, depois de o mundo tê-lo descoberto (e foi natural que a primeira edição “completa” – tanto se achou depois - tivesse sido lançada no Brasil), Portugal dedicou-se a glorificar Pessoa; e o século terminou, e o XXI se inicia, na tentativa de repudiá-lo. Nesse sentido, é interessante que o fim da antologia, que se dá com o poema “Elegia do amor”, de Teixeira de Pascoaes, comentado por António Cândido Franco, haja uma defesa de Pascoaes como o verdadeiro centro da poesia portuguesa do século,[3] e não Pessoa.
Não menos sintomático é o ensaio de Peter Sanmartinho, julgando irônico que a poesia de Pessoa, que já nada mais teria a dizer desde os anos setenta para a moderna crítica (!), esteja sendo recuperada por estudiosos ligados aos estudos culturais, tendo em vista os poemas de temática homossexual que estão sendo resgatados do fundo da arca.
Outro ponto é o da esfera pública e o lirismo. É interessante notar que os poemas de teor mais explicitamente político foram escolhidos por ensaístas estrangeiros, isto é, por não portugueses – como “Em Creta, com o Minotauro”, de Jorge de Sena, comentado por K. David Jackson; “You are welcome to Elsinore”, de Mário Cesariny, comentado por Perfecto E. Cuadrado Fernández; “As cinzas de Lenine”, de Fernando Guerreiro, comentado por Peter Sanmartinho; “Um adeus português”, de Alexandre O’Neill, por Luciana Stegagno Picchio; “Quase 3 discursos quase veementes” de António José Fortes, por Ruy Duarte de Carvalho.[4]
Como se sabe, a tradição democrática em Portugal, assim como no Brasil, é recente demais para ser chamada de tradição. E os longos anos de salazarismo levaram inevitavelmente a uma sensível degradação da esfera pública, marcando poetas como Jorge de Sena com o signo do exílio.
Nada menos natural, pois, que Eduardo Pitta afirme que "a guerra colonial praticamente não tem projecção ao nível da melhor poesia portuguesa" (p. 234). Os próprios antologistas, com a repercussão do livros, verificaram a não existência de "crítica pública" portuguesa.[5] Deve-se, porém, dizer mais: a própria antologia é um sintoma não só da falta de crítica pública, como da precariedade do espaço público. Não por acaso, convocou-se o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, e não um autor português, para definir o século na epígrafe do estudo introdutório. Afinal, a poesia portuguesa, mostra-nos esta antologia, em boa parte viveu um imaginário século dourado, e não o século XX.
Cabral, quando diplomata brasileiro na Espanha, costumava menosprezar a poesia lírica espanhola que podia ser publicada abertamente durante o franquismo por condescendência com o regime político. Estou longe de possuir os (inconsistentes) furores antilíricos de João Cabral de Melo Neto; muito menos acusaria o lirismo de inevitável complacência com o autoritarismo. Mas não me furto a notar que a poesia comentada pela maioria dos ensaístas portugueses representa antes de tudo um grande cancioneiro com crítica,[6] apesar da heterogeneidade – motivo por que se entende a exclusão de Alberto Caeiro, o mais antilírico dos heterônimos de Pessoa.
Na verdade Caeiro, com sua antimetafísica e sua recusa à mistificação, como lembra Sérgio Alcides, é a antítese de grande parte da poesia portuguesa contemporânea, inclusive Herberto Helder. Nesse quadro, Alberto Pimenta é uma das exceções, bem como António Franco Alexandre.
A ausência de Caeiro talvez seja um sinal de que a presença de Pessoa e, mais ainda, do seu “lirismo crítico”, crítico não só do lirismo como também do sujeito, ainda é perturbadora em Portugal - e, por isso, continua atual, como o ouro do século.


Notas
[1] Deve-se lembrar que recente dossiê sobre Drummond publicado pela Inimigo Rumor em 2002, elaborado por autores portugueses, entre eles Silvestre e Serra, adotou a mesma estrutura da antologia que nascia.
[2] Sua "Canção cuneiforme (antes e depois de dar o bicho)" é analisada por Maria Irene Ramalho em Século de Ouro.
[3] Defesa, é de lembrar, não criada pelo ensaísta, e sim por Cesariny.
[4] Uma exceção foi Vítor Manuel de Aguiar e Silva, que escolheu "Morte ao meio dia", poema político de Ruy Belo, e afirmou: "A naturalização da morte 'no meu país' exclui a ordem da violência" (p. 255). Note-se, por outro lado, que "O preto no branco", de Rui Knopli (que nasceu, deve-se lembrar, em Moçambique, e também foi marcado pelo exílio), embora sua imagética relacione-se com a guerra, pode, paradoxalmente, ser lido como um poema de amor: "Da granada deflagrada no meio/ de nós" (p. 233).
[5] Após uma falsa partida ou para reiniciar o debate sobre Século de Ouro, Inimigo Rumor, n. 14, 2003, p. 196-198.
[6] Lembre-se, por exemplo, de Eduardo Lourenço louvando Ruy Belo por ser um poeta de amores e desamores (p. 216); ou Fernando J. B. Martinho sobre Cristovam Paiva: "É, pois, a emotividade do poeta que ocupa, agora, o lugar central." (p. 296).

domingo, 9 de janeiro de 2011

Violência política nos EUA: Terror e oposição aos direitos humanos

Quando eu fazia mestrado, na década de 1990, escutei uma discussão nada edificante entre dois colegas, que nunca mais vi e cujos nomes não recordo. Um sindicalista havia sido assassinado em uma disputa sindical (não lembro qual foi). Um filho de desembargador, que logo daria umas aulas naquela instituição, dirigiu-se zombeteiro a uma colega que era petista, referindo-se à morte: "A esquerda só faz política matando". Ela retrucou: "A direita só faz política corrompendo." A réplica foi ótima: "Mas corromper não vai contra o sistema."
Não vai, certamente; porém, por que dizer que a direita só faz política corrompendo? Ela também não mata?
É claro, claríssimo que nem toda direita é assassina; Fernando Pessoa não tirou a vida de ninguém, e estava até à esquerda de Salazar - afinal, o poeta não era fascista. É também evidente que houve massacres e genocídios de esquerda: por exemplo, ordens de execução sumária ocupam algum espaço na obra completa de Lênin.
Escrevo isto, porém, por causa dos EUA do século XXI. Temos vários exemplos de assassinato na plutocracia estadunidense, em que "esquerdista" (leftist) é um insulto, a tal ponto que pessoas muito ingênuas pensam que o sistema político dos EUA é um caso de bipartidarismo. Há outros partidos: mas só os dois que têm apoio do grande capital logram aparecer. Vejam o Partido Verde e o Partido Comunista.
Esta imagem não é minha; baixei-a do twitpic de Matthew K, que a deixou disponível aqui para ser carregada em blogues. Ela provém dos Republicanos e mostra os alvos que Sarah Palin, ex-candidata a vice-presidente dos EUA, e virtual presidenciável republicana, designou para serem acertados pelos eleitores. Por quê? Votaram pela tímida reforma da saúde que o governo Obama conseguiu aprovar.

Aparentemente, começaram a atender seu apelo, de forma literal: no Arizona, a deputada democrata Gabrielle Giffords foi atingida, com mais dezoito pessoas. Seis já morreram. Ela havia sido reeleita no ano passado.
Seu concorrente republicano, Jesse Kelly, em uma metáfora bélico-eleitoral de pronunciado mau gosto, pediu durante a campanha para que atirassem nela com uma arma automática. Ouçam aqui ou leiam nesta ligação: http://firedoglake.com/2011/01/08/giffords-opponent-jesse-kelly-held-june-event-to-shoot-a-fully-automatic-m16-to-get-on-target-and-remove-gabrielle-giffords/
Será mesmo o faroeste o grande modelo político dos EUA? Ou, pelo menos, do Arizona?
Nem todos os envolvidos foram presos até o momento em que escrevo esta nota - vejam a matéria no portal do jornal The Guardian.
Ainda não são conhecidas as motivações do crime. Sabe-se, porém, que ele foi cometido em um clima de radicalização política promovido pela direita estadunidense, que age explicitamente com base na desinformação pública (como é sustentar que Obama seria comunista e/ou homossexual e/ou islâmico - e que tudo isso seria uma ameaça nacional - e/ou estrangeiro - e, por isso, não poderia ser eleito presidente) e na ameaça.
Entre os mortos, está uma menina de nove anos, Christina Taylor Green, que nasceu em 11 de setembro de 2001, dia em que foi assinada a Carta Democrática Interamericana e o Pentágono e o World Trade Center nos EUA foram atacados por meio de aviões. Uma criança nascida no dia de ataques do terror estrangeiro de radicais islâmicos morreu pela ação terrorista de estadunidenses. Não será um sinal de que a "guerra contra o terror" movida (criminosamente, aliás, como as memórias de Little Bush confirmam) pelo governo estadunidense engana-se um pouco de meios e alvo?
Acho pertinente lembrar da distinção que Hannah Arendt faz entre poder (segundo a pensadora, a capacidade de agir em comum acordo) e a violência, que é meramente instrumental. Normalmente, eles estão juntos. O poder cria um mundo comum e precisa da legitimidade; a violência, por ela mesma, pode apenas destruir - inclusive o poder.
Cito Crises da República (na tradução de José Volkmann, editada pela Perspectiva em 1999): "A violência sempre pode destruir o poder; do cano de um fuzil nasce a ordem mais eficiente, resultando na mais perfeita e instantânea obediência. O que nunca pode nascer daí é o poder. [...] O domínio pela pura violência entra em jogo quando o poder está sendo perdido." (p. 130) e "[...] politicamente a questão é que a perda do poder traz a tentação de substituí-lo pela violência [...]".
Não verificamos essa perda de poder e substituição pela violência na política externa dos EUA, e, no que Arendt chama de efeito bumerangue, também na política interna, com os apelos à violência promovidos pela direita?
A questão da legitimidade é correlata à do direito. Antijuridistas, de direita ou de esquerda, acham que o direito não importa. Os de direita querem minimizar o direito estatal porque preferem a autorregulação produzida pelo grande capital: temos assim o império do mais forte, que é o mais rico. Certa esquerda acha que, extinguindo o direito, virá a emancipação, porque o direito cria sanções e limitações. Ora, já sabiam os romanos que a liberdade precisa da sanção para ser garantida. Mais tarde, Hobbes consequentemente argumentou que liberdades, se ilimitadas, incluem a liberdade de matar e escravizar o outro. A solução dele para o problema era acabar com a liberdade. Em vez disso, é melhor limitá-la: como vivemos em conjunto, o livre arbítrio de um deve encontrar limitação no livre arbítrio do outro - essa é a intersubjetividade.
A Câmara votaria nesta semana um projeto contrário à reforma da saúde. O massacre fez essa agenda política adiar-se. Mas os Republicanos têm nela maioria, e para eles a saúde não pode ser um direito, mas uma simples mercadoria.
Os direitos humanos importam. Que uma direita que recusa o direito à saúde (um direito social) despreze o direito à vida (um direito civil) dos adversários não demonstra a contrario sensu a unidade e a indivisibilidade daqueles direitos?

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Desaparecidos e o governo de Dilma Rousseff: A ausência do estado de direito na ditadura militar

Eric Nepomuceno publicou em 5 de janeiro de 2011 texto sobre recente episódio de vergonha nacional brasileira no campo dos direitos humanos. Na posse do novo governo federal, o general José Elito Siqueira, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, contestou Maria do Rosário, que está à frente da Secretaria de Direitos Humanos. Ela defendeu a criação de uma Comissão da Verdade para tratar da questão dos mortos e desaparecidos na ditadura militar.
Ele, na postura típica de negação do direito à memória e à verdade, afirmou que era necessário seguir em frente e que tal questão não era motivo nem para se envergonhar nem para se vangloriar.
A presidenta Dilma Rousseff desautorizou-o depois. No entanto, ele ainda está no governo, bem como Nelson Jobim, que é parte da herança do PSDB que os governos petistas insistem firmemente em conservar.
O texto de Eric Nepomuceno, Ley discutible, palabras que avergüenzan, foi publicado no jornal argentino Página 12. Pode ser lido em português nesta ligação: http://www.cartacapital.com.br/politica/o-direito-a-memoria-uma-lei-discutivel-palavras-que-envergonham
Podem-se ler nele considerações sobre a questão vergonhosa e sobre a mais recente condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso relativo aos mortos e desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, sobre que escrevi aqui.
Eric Nepomuceno chama de insólito (em espanhol, esdrúxulo na versão da Carta Capital) o argumento do ex-Ministro da Justiça de Lula, Tarso Genro, de que os agentes da repressão durante a ditadura militar teriam violado o próprio direito vigente à época.
O argumento não só é consequente como verdadeiro. Já falei sobre isso algumas vezes, neste Seminário na UFSC, por exemplo, e também em um seminário de pesquisa em que falei para poucas pessoas, em 2009, entre elas um único aluno graduando em Direito (eu tinha centenas de alunos nesse semestre, mas quase nenhum estudante).
Por sinal, esse desrespeito à própria legislação de exceção criada pela ditadura é um dos fatores que torna absurdo sustentar que tínhamos um "estado de direito" nessa época.
No trabalho de 2009, escrevi isto:

[...] boa parte das medidas repressivas não se coadunava nem mesmo com a própria legislação da ditadura, a começar pela Carta de 1969 e o próprio Ato Institucional n° 5, o qual suspendia os direitos políticos e o habeas corpus em casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular, mas não autorizava os desaparecimentos forçados, as medidas de tortura e as execuções extra-judiciais, que eram inconstitucionais mesmo para os padrões da ordem jurídica ditatorial. Indubitavelmente, tais medidas contribuíram para alimentar a “cultura quase cínica em relação às leis” no Brasil. Como afirmava Seabra Fagundes, a própria ordem jurídica ditatorial, “ainda no seu mais drástico documento” (o AI-5), “desautoriza exorbitar da noção de segurança nacional para ferir, em nome desta, os direitos humanos” (1975, p. 12). Vivia-se, pois, segundo Goffredo da Silva Telles Jr., em um “regime de ilegalidade institucionalizada” (TELLES JR., 1983, p. 243).
Todavia, o papel do direito na institucionalização do regime não pode ser negado, porquanto o governo federal queria manter uma aparência democrática, seja sob o manto de uma “democracia forte”, ou “autoritária”, ou, na expressão de Miguel Reale sobre o governo Médici, uma “democracia social” (FERNANDES, 2006, p. 246). A formalização jurídica era necessária para tanto; ademais, havia entre os militares brasileiros o que pode ser chamado, na expressão de José Murilo de Carvalho, de “legalismo inercial das Forças Armadas” (CARVALHO, 2005, p. 121).


O trabalho inteiro, que faz referência a alguns documentos da polícia política, consultados no acervo do DEOPS/SP, pode ser lido aqui.
A presidenta Dilma Rousseff terá várias tarefas a cumprir no tocante aos desaparecidos: cumprir a sentença da Corte Interamericana é uma delas. Afinar o governo no tocante à questão é outra. Ainda é de esperar que ela não governe como Lula, que, com seu gênio político peculiar, usou as divisões do próprio governo para administrar a manutenção da impunidade.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Bartoli, música, profanações

A Folha de S. Paulo publicou em 3 de janeiro deste ano trechos de interessante matéria do jornal The Guardian com a meio-soprano Cecilia Bartoli. O artigo, completo, é muito mais interessante do que a mutilação que saiu no jornal brasileiro, e pode ser lido nesta ligação: http://www.guardian.co.uk/music/2010/dec/23/cecilia-bartoli-mezzo-soprano
Ainda não pude vê-la ao vivo. Mas não vou negar que ela é um dos maiores intérpretes do canto lírico de hoje - entre as cantoras, a outra que acompanho é Anne Sofie von Otter (também meio-soprano). Mais do que isso, Bartoli reservou seu lugar na história pelo que já fez. Não se trata apenas da voz, mas da inteligência e da pesquisa com que encontra seu repertório.
Pesquisa: pois ela optou não pelo caminho fácil, passar a vida cantando Cherubino, Dorabella, Rosina, Carmen etc. Em vez dos papeis batidos, pesquisou o repertório e gravou diversas árias que nunca tinham sido registradas em disco: de Vivaldi, Mendelssohn, Pacini, Gluck, Salieri (o compositor italiano que alguns, por causa de um filme idiota que ganhou umas estatuetas em Hollywood, pensam que teria assassinado Mozart), Caldara, Alessandro Scarlatti...
Lembro de entrevista a um jornalistazinho inglês, na década de 1990, completamente incrédulo diante da afirmação da cantora de que iria se dedicar ao repertório barroco, e não ao romântico (que é mais vendável). Pois foi o que ela fez, ofendendo as expectativas dos críticos, que tentam retrucar afirmando que, se ela faz pesquisas em biblitoecas e recuperas obras relevantes e esquecidas, é porque ela teme ser comparada com outras cantoras! Um exemplo dessa crítica que não perdoa a falta de medicocridade da cantora está aqui.
Ela optou por não ser óbvia. Em pleno ano Mozart, o que ela fez? Enquanto diversos músicos lançaram previsivelmente discos dedicados a esse compositor, ela nos deu "The Salieri Album", com onze árias jamais gravadas!
Ela lançou um disco "Maria" dedicado - a quem, Callas? Não: Malibran, com uma ária composta pela própria diva do século XIX.
Quem sabia que a Igreja Católica, essa instituição esclarecida, havia proibido a ópera em Roma? Bartoli não apenas sabia como gravou árias das cantatas e oratórios que os compositores criaram para sobreviver à censura religiosa. Nesse disco, Opera proibita, temos "Lascia la spina, cogli la rosa", primeira versão de uma famosíssima ária que Händel depois reaproveitaria na ópera Rinaldo, composta para os palcos londrinos, com o título "Lascia ch'io pianga la cruda sorte".
Bartoli é, pois, um espírito que profana a caretice da cultura musical (as capas de seus discos bem o mostram). O fantástico é que ela, mesmo com o repertório fora do esquadro, vende horrores com seus discos. Além da seriedade artística, ela extravasa a alegria de fazer música. Vejam este curto vídeo de 2008: trata-se de concerto em que ela canta o final da ópera La Cenerentola (A Cinderela) de Rossini. Parece ter sido gravado clandestinamente (e só tem a conclusão da ária), o que torna ainda mais autêntica a interpretação. Angelina, a Cinderela conseguiu, nesse momento, vencer todas as adversidades e casar com o príncipe. A alegria da personagem junta-se à da cantora.
A música exige uma agilidade ímpar, o que Bartoli tem de sobra, bem como extensão. Seu volume é pequeno, o que não é um problema, pois ela não canta o repertório em que uma voz grande seria necessária (a Amme de Richard Strauss, a Fricka de Wagner, Amneris de Verdi etc.) Por sinal, na natureza, as vozes muito ágeis geralmente possuem menos volume, e as vozes potentes, menos agilidade. Exceções como Maria Callas, Helge Rosvaenge, Joan Sutherland, que tinham as duas qualidades, são mesmo exceções.
A entrevista no The Guardian toca no problema da composição contemporânea de música clássica ou erudita. Ninguém compõe para Bartoli, ela se queixa. Imagino que alguns compositores enviar-lhe-ão obras depois desse desabafo. Mas a queixa tem sua razão de ser: lembro da esposa de compositor erudito brasileiro, que gosta de música eletroacústica, afirmando para mim que canto lírico "não tem nada a ver". De fato, para esse tipo de música, a voz falada e ruídos já são materiais suficientes.
Ademais, há uma crise na composição de música erudita. Lembro do romance O jogo das contas de vidro - na ordem de Castália, que Hermann Hesse imaginou, não era mais permitido compor obras novas, e a arte reduzia-se ao já feito; como lemos na tradução de Lavinia Abranches Viotti e Flávio Vieira de Souza, "O fato mais importante decorrente dessa nova orientação, ou antes, dessa nova classificação dentro do processo cultural, foi uma ampla renúncia à criação de obras de arte, a gradual separação da vida espiritual das atividades profanas [...]" (São Paulo: Brasiliense, 1969, p. 13).
Os programas dos concertos e dos teatros de ópera cada vez mais assemelham-se a esse quadro: dedicam-se à música composta pelos mortos, e a composição de hoje é relegada (mas há os de hoje que compõem como os mortos e gozam de um sucesso efêmero).
Hesse talvez tenha visto bem o problema nesse romance. De fato, para criar não é preciso apostar na profanação? E deixar o espaço monástico da ordem? E esse espírito monástico não prevaleceria no público e nos produtores dessa música - como em certos compositores universitários, acadêmicos?
Para terminar, um momento profano. Mais um Rossini, agora uma canção com Thibadeut no piano: Bartoli, como a pequena órfã do Tirol, suplica piedade a Deus.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Imaginação, gênero, vontade de ortodoxia

Alexandra Kollontai, que foi, se não me engano, a primeira mulher a servir como embaixador, teve seus problemas na União Soviética já nos tempos de Lênin. No entanto, o revolucionário-estadista-pensador pôde escrever, entre outros textos de mesmo teor, esta passagem no folheto Uma grande iniciativa, de julho de 1919:

Observem a situação da mulher. Nenhum partido democrático do mundo, em nenhuma das repúblicas burguesas mais avançadas, fez, nesse aspecto, em dezenas de anos, nem a centésima parte do que nós fizemos no primeiro ano de nosso poder. Não deixamos pedra sobre pedra, no sentido literal da palavra, das vergonhosas leis que estabeleciam a inferioridade jurídica da mulher, que criavam obstáculos contra o divórcio e exigiam para ele requisitos odiosos, que proclamavam a ilegitimidade dos filhos naturais e a investigação de paternidade etc.
A mulher continua sendo escrava do lar, apesar de todas as leis libertadoras, porque está esgotada, oprimida, embrutecida, humilhada pelos pequenos afazeres domésticos [...] A verdadeira emancipação da mulher e o verdadeiro comunismo não começarão senão onde e quando comece a luta de massa (dirigida pelo proletariado, dono do poder estatal) contra esta pequena economia doméstica, ou, mais exatamente, sua transformação maciça em uma grande economia socialista. [Versão minha a partir da tradução espanhola das Obras Completas de Lenin publicada pela Editorial Progreso; grifos do original]

Lênin achava que o marxismo bastava como fundamento teórico dessa luta, o que já era insustentável nesses tempos da psicanálise. No entanto, ele deixa claro que o combate pela libertação da mulher deve ser assumido pela esquerda.
Na prática, essa lição de Lênin, que não deveria limitar-se à esquerda marxista (lembre-se, por exemplo, dos que se inspiram em Foucault), é, por vezes, esquecida. Os exemplos, mesmo no Brasil, são diversos. Lembro dos problemas que Gabriela Silva Leite, a criadora da Associação de Prostitutas do Brasil e diretora da ONG Davida e da grife Daspu, teve com a esquerda (mas não com Lula, que ela elogia), principalmente a católica. Para quem não a leu, sugiro Eu, mulher da vida, mais profundo do que Filha mãe avó e puta.

O Partidão (PC), Sérgio Arouca e companhia, os "sanitaristas", não falam sobre Aids. Têm o discurso geral, e pronto, está tudo lá, não entram em "detalhes", da mesma forma que os outros partidos mais "à esquerda". Não vou nem falar da direita, que não merece essa bola toda. Mas é fato que a Aids traz questões imensas, de difícil compreensão para esse povo das esquerdas.
Por não ter cura e expor sexualidades subterrâneas, a Aids suscita questões que passam ao largo das ideias de sociedade produtiva, das mentes que só conseguem pensar nesse modo de produção, que pensam que só deve haver mudança dessas relações e ponto final. (Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992, p. 148)

Mencionando sexualidades subterrâneas, deve-se lembrar da homossexualidade. João Silvério Trevisan conta episódios de discriminação em Devassos no paraíso, como este debate na USP em 1979:

Quando, no decorrer da acalorada discussão, um esquerdista ortodoxo (na verdade, uma bicha enrustida que eu conhecia) observou que a luta homossexual não passava de uma escamoteação da luta de classes, não contive minha irritação: subi numa cadeira e pedi às pessoas que relatassem fatos concretos de como nós homossexuais éramos escamoteados justamente em nome da luta de classes. (Devassos no paraíso. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 344. Grifos do original)

Ainda é necessário lembrar o fato óbvio de que a discriminação contra prostitutas e travestis pobres não ocorre apenas na dimensão de classe social. Escrevi um poema que partia disso em Cinco lugares da fúria, que pode ser lido no Algo a dizer. Conto nele a história de Páti, a patética do parque, uma heroína com soco inglês.
Discursos sexistas fizeram-se ouvir no ano eleitoral de 2010, o primeiro no Brasil em que a quantidade de votos em homens candidatos à presidência da república, todos eles reunidos, foi inferior aos números das candidatas. Tais discursos serão repetidos durante o governo de Dilma Rousseff. Que eles venham de setores da direita, é esperado.
Que também venham da esquerda, não deve causar surpresa, como se pode ler nesta discussão de que participaram bravamente, entre outros, Lola Aronovich e Idelber Avelar.
Não deixa de ser significativo que o discurso da "divisão das esquerdas" seja usado nessas horas para combater o combate ao machismo. Nessa advocacia de um pensamento e uma ação monolíticos, há uma vontade de ortodoxia. Sobra repressão e falta imaginação a esses grupos que tentam reduzir a riqueza multifacetada do desejo.
Termino, pois, com Foucault: "O sexo não é uma fatalidade; ele é uma possibilidade de chegar a uma vida criativa." (Dits et écrits, Paris: Gallimard, tome II, 2001, p. 1554)