O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Algo como um poema: Onde se queimam prédios...



Escrevo aqui um poeminha meu, de circunstância, tendo em vista as circunstâncias.
Ele não presta, claro, e elas também não.
O começo, evidentemente, foi tirado de Heine, sempre atual, da peça Almansor:

Das war ein Vorspiel nur, dort wo man Bücher
Verbrennt, verbrennt man auch am Ende Menschen.


"Isso foi apenas um prólogo, lá onde se queimam livros, termina-se queimando também homens." O comentário é provocado pela constatação de que os cristãos ibéricos queimavam o Corão.
Fiz, porém, uma indagação, diante das novas perguntas e novos impasses.



Úlcera



Nenhuma paz superior
à de morar na úlcera.

Ela viu um pão quase inteiro,
mais inteiro para ela do que toda a rua.

Onde se queimam livros,
pessoas serão queimadas?
Sou prefeito e não leio.
Prédios são meu negócio.

Onde se queimam prédios,
pessoas desabarão?
Nunca. Só as mais lentas.
Não me culpem. Sou rápido.


Dela se alimentava.
Sonhar era belo dentro da úlcera.

Era favela, a cinza.
Hoje, novas licenças.
Onde se explodem prédios,
quem ficará de pé?


Poderia chegar perto do pão,
mais próximo dela do que lhe era a rua.

As cinzas alimentam
esta nova cidade
que a queda financia
com corpos e destroços.


Sou prefeito e construo
os espaços vazios
para a circulação
de gravatas e bombas.


Nela escavava as riquezas.
A arte rupestre teria sempre imagens da úlcera.

Sou prefeito, a faísca
é o melhor instrumento
para o dócil governo
de imóveis e pessoas.


Se engolisse o pão,
se ainda pudesse fazê-lo,
agora que seu estômago estava todo tomado pela rua.

Onde se explodem prédios,
gente já foi queimada;
arquiteto da cinza,
farei que morem no ar

apesar do pequeno
intervalo entre os ventos
útil para abrigar
ex-cidadãos terrestres.


Oravam para ela o pão e o relento, o abrigo e a fome
na hagiografia completa da úlcera.

Admiro na fumaça
como a cidadania
cheira após a limpeza
dos prédios invadidos

e ouço as bombas, higiênicas.
Meu negócio? Negócios,
esta nova cidade,
esta casa de cinzas.


Fogo e desabamento
sentaram-se ao banquete.
A úlcera teve tempo de perdoar a fome
antes da chegada do desastre?

As cidades deixadas ao capital,
os palácios habitados pelo deserto.

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