O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

30 dias de canções: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto

30 dias de canções

Dia 5: Uma canção que precisa ser tocada baixo

"Über den Selbstmord" [Sobre o suicídio], de Hanns Eisler e Bertolt Brecht. O poema aparece na peça A alma boa de Setsuan. Eisler o musicou nos Estados Unidos em 1942, quando os dois artistas comunistas estavam em exílio.
A partitura pode ser vista nesta ligaçãoTraduzo os versos como Eisler os musicou:

Neste país e neste tempo
Não deveriam existir noites enevoadas
Tampouco pontes altas sobre rios.
Mesmo as horas entre a noite e o dia
E todo o inverno, com isso, são perigosos!

Então, diante da miséria,
Os homens, em um momento,
Jogam fora a vida insuportável.

O poema tem um segundo verso, "Basta um pouco", na segunda estrofe, que Eisler não incluiu; "em um momento" foi adicionado.
O baixo-barítono Matthias Goerne e o pianista Thomas Larcher interpretam belamente a canção no disco que gravaram com o Ensemble Resonanz só com peças de Eisler (Ernste Gesänge: Lieder with pianohttps://youtu.be/CrVXbChLeRg?t=4m17s
Quando se chega à última palavra, "fort", temos um fortíssimo e com a indicação sforzato; soa como se o corpo se jogasse da ponte no último momento e mergulhasse profundamente.
Por causa da sintaxe alemã, o "fort" tem que vir no final, o que deve ter inspirado Eisler para o efeito repentino. Para, em português, sugerirmos algo parecido, teríamos que fazer isto:


Então, diante da miséria,
Os homens, em um momento,
Jogam a vida insuportável fora.

A partitura começa pp e chega ao ppppA voz entra sozinha, quase que continuando o silêncio, pois está em pp, e o piano, na mesma indicação, aparece no segundo compasso. O piano termina a música, depois do fortíssimo, em pianíssimo.
Muitas interpretações ignoram completamente as indicações, na minha opinião destruindo totalmente o efeito da música. Ela deve ser interpretada "baixo". Evidentemente que cantar da forma como está escrito é bastante difícil (berrar é quase sempre uma alternativa mais fácil); por isso, suspeito, na maior parte das interpretações que descobri no youtube os cantores, populares ou líricos, já começavam forte.
Não tenho nada contra violar as indicações da partitura, mas a violação precisa ser consequente e coerente, o que não me parece ser o caso. O canto e o piano pianíssimos são muito mais interessantes por criarem uma atmosfera em que se sugere que qualquer coisa, até falar mais alto daquelas pontes, daquelas noites e daquela hora, pode levar à morte. 
Quando finalmente surge o forte, e acentuado, com o choque sentimos que não se pôde evitar o suicídio.
No momento da II Guerra Mundial em que a canção foi composta, a tentação do suicídio devia ser cotidiana, mesmo entre exilados; lembrem que Zweig e Lotte mataram-se no Brasil em 1942, no mesmo ano da canção.


Dia 1: Um retrato à beira da razão, de Tom e Chico
Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco


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