O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

30 dias de canção: Tom Zé, a felicidade e o inarticulável

30 dias de canções
Dia 9: Uma canção sobre a felicidade

"Menina, amanhã de manhã", de Tom Zé e Antônio Perna Fróes. Estava em dúvida sobre qual escolher, e Fabio Weintraub me sugeriu esta canção, e logo vi que não poderia ser outra.
Aqui, pode-se ouvir com Tom Zé em 1972: https://www.youtube.com/watch?v=gXJ1gPhcaRw.  A cantora Monica Salmaso, de geração bem posterior à dele, gravou-a em 2004: https://www.youtube.com/watch?v=qDkI7irMO9s.
Nesta gravação ao vivo, também de 1972, ele canta uma letra um pouco diferente: https://www.youtube.com/watch?v=XWaYFx5NjTY.
Nesta gravação, do "Estudando o samba", disco que muitos anos depois encantaria David Byrne (e levaria à redescoberta deste grande músico brasileiro; vejam a história no documentário "Tom Zé - Astronauta Libertado"), ouve-se bem o ostinatohttps://www.youtube.com/watch?v=2Dcu2XWTT18
Desconcertantemente, a música pede para tomar cuidado com a felicidade; "Menina, ela mete medo/ menina, ela fecha a roda/ Menina, não tem saída/ De cima, de banda ou de lado". O clima é de jogo infantil, mas perigoso. Afinal, ela vai "desabar sobre os homens"; poderá matá-los? Salmaso enfatiza o sorriso e o lúdico; Tom Zé, a ameaça.
Nesta apresentação ao vivo, em 2010, ele elogia a cantora e brinca um pouco ao falar dela (que só cantaria a "beleza") e explica a origem da canção: "A ditadura fazia campanha dizendo que o Brasil era um país felicíssimo, ame-o ou deixe-o."
Em 1972, já dizia: "somos um povo infeliz bombardeado pela felicidade".
Ele comenta a influência da poesia concreta na segunda parte da música, que se compõe de jogos verbais; rimas e aliterações conduzem para simples sílabas até chegarmos a vogais, mas não o "u" (cada uma das estrofes só comporta quatro elementos), uma corrida para o inarticulado, e não uma decomposição da palavra felicidade (seria uma operação óbvia, ademais), que não tem o "o".
Ou para uma exclamação pura, a que faremos se um dia encontrarmos essa menina, a felicidade, tão jovem e tão perigosa? No final do número, o performer Tom Zé cai no chão gozando com o "a".
Creio que a segunda parte deriva das origens do compositor. No volume que o poeta Heyk Pimenta organizou sobre Tom Zé para a coleção "Encontros" da Azougue Editorial, o compositor, diversas vezes, ressalta sua origem interiorana, em uma comunidade em que prevalecia a cultura oral, em que a própria conveniência da alfabetização das crianças era objeto de debate.
Este natural de Irará que se tornou aluno de Koellreutter e passou pelo Tropicalismo com uma independência única, descreveu mais uma vez o choque da alfabetização e, depois, do saber acadêmico para alguém que vinha da cultura oral. Cito, do livro, entrevista dada a Christopher Dunn, "O elo perdido do tropicalismo":
Quando eu cheguei em Salvador, eu era um menino da roça e quando as pessoas me perguntavam, desde criança: "Vai chover?" eu suspendia a manga da minha camisa, procurava um lugar que estivesse ventando, procurava o vento e, a depender do calor do vento, da direção, da intensidade, eu dava uma opinião. Mas quando eu fui fazer em Salvador, na minha escola, as pessoas começaram a sorrir, como se eu fosse um ser estranho e maluco. Então eu fiquei com vergonha de ter essa sabedoria. Então eu tive, para conviver com os meus companheiros de escola, que me deseducar para poder me civilizar.
Na segunda parte de "Menina, amanhã de manhã", essa experiência de desalfabetização talvez seja uma das formas de resgate de um saber rico exatamente por não ser articulável. Em 1997, em outra das entrevistas recolhidas por Heyk Pimenta, Tom Zé disse a Pablo Pires do seu "gosto de fazer discursos não acabados, sugestões de pensamento que a pessoa pode se divertir com elas. [...] E acaba sendo uma coisa que, não tendo língua, não precisa traduzir. Me dá a oportunidade de chegar em lugares e de o público de qualquer país cantar." Versos que recolhem fonemas.
O livro recolhe a entrevista que ele deu à revista Caros Amigos em 1999. Ele diz que achava que "Menina, amanhã de manhã" seria um sucesso comercial... Mais interessante, porém, é o que ele diz da cultura oral:
Um povo que lê, um povo alfabetizado, que sabe escrever, não tem medo de perder sua cultura. Escreve livros, bota nas bibliotecas e vai ver novela. Não se preocupa com nada, está tudo ali escrito. O sertanejo é diferente. É esse tipo de analfabeto que eu sou e que Os sertões me mostrou que era o que eu devia continuar a ser. O sertanejo tem que falar cultura, dançar cultura, cantar cultura, fazer pensamento dos conhecimentos esotéricos na paisagem das caatingas num constante esforço para não perder a cultura que ele ama, mas não tem como registrar.
O caráter único de Tom Zé decorre de, apesar de ele ter ido à universidade, ele não renegou suas origens, fundadas em uma ética muito diversa do saber acadêmico e, com isso, criou um idioma único, que combina um saber verbal muito engenhoso com o inarticulável.
A citação trata de um aspecto da cultura oral que levou Mário de Andrade a elogiar a canção popular nas crônicas para a Revista do Brasil (Sejamos todos musicais: as crônicas na 3a. fase da Revista do Brasil. São Paulo: Alameda, 2013): o sertanejo a cria para não esquecer as histórias de sua vida e, por isso, a canção é sempre necessária.
Poder-se-ia dizer que se trata bem do contrário da produção massificada da indústria musical que, além de gerar canções marcadas pela obsolescência, isto é, feitas para serem esquecidas pela próxima moda, também precisa, para o sucesso comercial, canibalizar as tradições e calá-las.
Tom Zé ousou não seguir essa indústria; pagou o preço disso, mas também colheu os frutos felizes da ousadia necessária.


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