O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

30 dias de canções: Bornelh, o amor e a alba

30 dias de canções

Dia 14: Uma canção que você gostaria de tocar (ou ter tocado) em seu casamento

"Reis glorios" (Rei glorioso), de Guiraut (ou Giraut, e ainda Guiraud) de Bornelh (ou Borneilh) que viveu aproximadamente entre os anos de 1140 e 1200. É uma das minhas músicas favoritas, e uma canção de alba. Candé, na sua História universal da música, disse que ela continuou célebre até o fim do século XIV, o que é notável para essa época sem imprensa e, muito menos, registros sonoros.
Bornelh parece ter vindo de origem modesta, porém se tornou um dos trovadores mais respeitados. 70 de seus poemas chegaram até nós, mas apenas 4 com a música.
As canções de alba tinham como tema a despedida dos amantes com o amanhecer. A primeira vez que ouvi essa música foi numa apresentação do Ars Antiqua de Paris nos anos 1990, no Rio de Janeiro. Era uma execução bastante lenta, como a que fizeram em estúdio: https://www.youtube.com/watch?v=iG7nJ6KoxCo.
O grupo La Contraclau adota uma interpretação dançante: https://www.youtube.com/watch?v=Zv_jhDNajOw.
Na voz do grande Paul Hillier, do disco Proensa, temos uma outra interpretação: https://www.youtube.com/watch?v=ccBpe0FpHr8.
Dessa música, sobreviveu apenas, e ao menos (de boa parte do repertório medieval, só restou o poema), a linha vocal. Os músicos especializados no repertório medieval veem-se obrigados a criar o acompanhamento, o que talvez já ocorresse na época, isto é, talvez o acompanhamento fosse programaticamente, ao menos em parte, improvisado.
Além disso, os músicos devem adotar suas próprias concepções sobre o ritmo, em razão da notação musical dessa época.
Na época da composição, as fronteiras entre música popular e música "clássica" não existiam e poesia e música andavam de mãos dadas. sobre o impacto decisivo da lírica trovadoresca, cito Eduardo Sterzi, Por que ler Dante (São Paulo: Globo, 2008):
[...] a canção trovadoresca pode ser vista, sem exagero, como a forma originária de toda  a lírica europeia posterior, pelo menos até meados do século XIX, quando o poema em prosa e o verso livre vêm abalar aquele esquema plurissecular (que, no entanto, não se extingue; está vivo, ainda hoje, na maioria das canções populares do Ocidente). E fecunda ainda, para além da literatura (transbordando para as outras artes, para a filosofia, para o senso comum), na medida em que a lírica dos trovadores é uma das fontes principais da imaginação ocidental, ao fornecer-lhe todo um vocabulário do amor e da subjetividade que antes não existia, ou existia apenas de modo incipiente [...]
Trata-se também de uma época em que as culturas islâmicas e cristãs se influenciavam mutuamente (afinal, essa é a própria dinâmica da cultura, e não a da polícia de costumes, hoje adotada por setores da esquerda). Na melodia de "Reis glorios", reconhecemos os gestos da vocalidade da música árabe tradicional. E talvez a própria palavra trobar venha do árabe, leio no texto de Jean-Pierre Canihac ao disco "Reis glorios: L'influence de la musique arabe dans la mythologie occitane" do grupo de Toulouse Les Sacqueboutiers (o barítono Pierre-Yves Binard canta muito bem a canção nesse disco). Segundo leio, Julian Ribera, em 1928, lançou essa hipótese a partir da palavra árabe taraba, que teria como um de seus significados "compor música, entreter por meio de música".
As duas primeiras estrofes do poema, em provençal, querem significar algo como isto:

Rei glorioso, verdadeira luz e claridade,
Deus poderoso, Senhor, se a vós aprouver
Ao meu companheiro prestai fiel ajuda,
Que eu não o vi depois que a noite chegou,
E logo virá a alba.

Belo companheiro, se dormes ou se velas,
Não mais durmas, suavemente levanta,
Que no oriente vejo ascender a estrela
Que traz o dia, eu bem a reconheci,
E logo virá a alba.

A primeira estrofe é do sentinela; a segunda, do amante, que se alternam. Não ousei rimar nem metrificar, mas o original segue o esquema de pares de versos rimados, que se chamava cobas doblas
Acho que ninguém percebeu, mas fiz uma paródia séria desse poema no meu Código negro em homenagem ao "glorioso nada".
Voltando à poesia de verdade, Bornelh é citado por Dante mais de uma vez. Na Divina Comédia, ele é referido não como o melhor poeta de sua época; ele seria mais popular, mas é preterido por Arnaut Daniel, o "miglior fabbro".
Trata-se da passagem que mais gosto na Comédia, o XXVI do Purgatório. No XXVI, temos aqueles cujo pecado foi "hermafrodito", mas se arrependeram e, por isso, não foram para o Inferno. Dante comove-se por ver lá Guido Guinizelli, que ele reconhece como mestre dele e de outros melhores. No entanto, Guinizelli aponta para um outro, superior a ele mesmo: Arnaut Daniel.
Cito essa passagem na tradução de Xavier Pinheiro (http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/divinacomedia.html):

— “O que te indico, irmão” — tornou-me terno
(E seu dedo outra sombra me apontava)
Mais primor teve no falar materno.


“Nos versos, nos romances superava
A todos: stultos só dizer ousaram
Que o Limosim aquele avantajava.

“Pelo rumor verdade desprezaram,
E, como arte e razão desconheceram,
Sem fundamento opinião formaram.

“Assim muitos outrora procederam
Com Guittone e o seu nome hão proclamado;
Mas verdade alfim todos conheceram.

“E pois que o privilégio hás alcançado
De entrar nesse mosteiro portentoso,
Por Cristo, como abade governado,

“Um Pater Noster diz por mim piedoso;
Quanto mister havemos neste mundo,
Onde ato algum não há pecaminoso.” —

“Por dar lugar ao spírito segundo,
Já próximo, no fogo desparece.
Qual peixe, quando imerge de água ao fundo.

Acerquei-me da sombra que aparece,
E disse que ao seu nome apercebia
Meu desejo o lugar que assaz merece.

Logo assim livremente me dizia:
— “Tão cortês vosso rogo é, que escutando,
Me encobrir não quisera ou poderia.

“Arnaldo sou, que choro e vou cantando,
Triste os erros passados meus lamento,
E o fausto dia estou ledo esperando.

“E peço-vos pelo alto valimento,
Que da escada a eminência ora vos guia,
Que em tempo vos lembreis do meu tormento.”

E, após, ao fogo apurador se envia.

O "Limosim" que, embora preferido por muitos, seria inferior a Daniel, era Bornelh, que nascera no castelo do Visconde de Limoges. Dante escreve em provençal a belíssima fala do espírito de Arnaut Daniel (para mim, um dos pontos mais altos da poesia), efeito que é perdido na tradução acima.
Dante à parte, leio no guia Fayard da Música Medieval, organizado por Françoise Ferrand, que Bornelh foi considerado pelos contemporâneos como o "maître des troubadours".
Na Comédia, não sabemos para onde foi Bornelh: Bertran de Born está no Inferno, Guinizelli e Daniel, no Purgatório, e Folquet de Marselha, no Paraíso. Prefiro pensar que ele permaneceu em outra esfera, a da Poesia, onde as fronteiras não são tão armadas como as daquele esquema religioso medieval, e cuja ordem não seja do julgamento, com sua tríade condenação/expiação/absolvição, mas a da beleza e de seus ritmos. 
Também prefiro pensar nestes outros termos, os da poesia, no tocante ao meu casamento.


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Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo
Dia 7: A Suíte de Caymmi e uma nota sobre o regente Martinho Lutero e o desmanche da cultura
Dia 8: Nyro, as drogas e o transporte
Dia 9: Tom Zé, a felicidade e o inarticulável
Dia 10: Manuel Falla e a dor da natureza
Dia 11: De "People" ao povo e Cauby Peixoto
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