O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

30 dias de canções: Manuel de Falla e a dor da natureza

30 dias de canções

Dia 10: Uma canção sobre a tristeza

"Por ver si me consolaba", a Asturiana das "Sete Canções Populares", de Manuel de Falla. Há muito tempo atrás, comprei um disco usado de vinil com elas e as Canções Espanholas Antigas, de Federico García Lorca, na voz de Teresa Berganza e no violão de Narciso Yepes: https://www.youtube.com/watch?v=DzIMmLpdEyo; ao vivo, a mesma cantora, em pura concentração, com o violonista Gabriel Estarellas: https://www.youtube.com/watch?v=c4gyCJVwViI.
Quem preferir ouvi-la com orquestra: https://www.youtube.com/watch?v=9J9oDSXNfeM
Outros cantores líricos, também homens (José Carreras, por exemplo, gravou essas Canções) e cantores de flamenco também as interpretaram. André Mehmari e Ná Ozetti, dois importantes músicos brasileiros, interpretaram-na: https://www.youtube.com/watch?v=OY5W3YF_l4wHá também arranjos instrumentais, de tão grande é a popularidade dessa obra de Falla.
Essa canção me comove principalmente pelo caráter contido da música, não só em relação à dinâmica e ao andamento, mas também à extensão exigida para o cantor, do mi bemol ao dó, acessível para qualquer tipo de voz em sua oitava. O texto também é simples: alguém, tentando consolar-se, aproximou-se de um pinheiro verde, e a árvore, "como era verde", por vê-lo chorar, chorava. Um caso delicado de prosopopeia, a árvore assume uma emoção humana.
Não sabemos a origem da dor, e é realmente melhor que não tenhamos essa informação para que a música gere seu efeito hipnótico; trata-se de uma dor que as árvores podem entender, as sensações bastam para transmiti-la.
Falla não foi um Bartók, nem mesmo um Villa-Lobos no tocante à busca em campo das tradições orais na Espanha. Ele as conhecia por publicações. Cito Miguel Manzano:
[...] no hay ninguna duda de que los músicos españoles de cierto renombre no recopilaron directamente música popular. La razón es bien clara: la música popular de tradición oral ya había quedado, por la época a que nos referimos, casi completamente confinada dentro de los ámbitos rurales. No hay entre los músicos españoles ni un solo caso semejante al de Béla Bartók, que compaginó su actividad de compositor, y muy prolífico, con una dedicación también muy asidua a la búsqueda de la música popular en sus fuentes.
Como a Espanha são várias, e algumas delas nem se consideram espanholas de fato (e falam outros idiomas), é importante marcar que esta canção vem das Astúrias, no norte do Estado. Aqui está a partitura: http://imslp.org/wiki/7_Canciones_populares_Espa%C3%B1olas_(Falla,_Manuel_de).
O que nos leva de volta ao pinheiro, que compartilhava da dor: esse tipo de comunhão com a natureza, esperada nos "âmbitos rurais" de que essa música popular se origina, não é estranho. 
Hoje, no entanto, uma canção como esta teria que falar de uma árvore a chorar por ver um humano, tendo em vista as barragens, os ecocídios, as motosserras, os agrotóxicos, a impunidade no campo que, no Brasil, se antropomorfizaram e se tornaram legisladores, administradores públicos, empresários, jornalistas... E criaram um modelo que foi exportado para a América Latina e a África, o "ecocídio por corrupção". Cito a advogada Mirtha Vásquez a respeito dos impactos no Peru desse modelo desenvolvimentista: "El costo, social y ambiental de la imposición de estos proyectos no importaba, la gente puede ser desplazada, puede quedarse sin tierra, sin agua, los ríos pueden ser destruidos, las fuentes de agua desaparecidas. Y todo, absolutamente todo, por la corrupción." (https://celendinlibre.wordpress.com/category/noticias/).
Trata-se hoje provavelmente do exemplo mais forte da presença internacional do Brasil: a exportação de um modelo lucrativo de destruição, que envolve um consórcio multifacetado de delitos (corrupção, fraude, lavagem de dinheiro, crimes ambientais, crimes eleitorais, crimes contra povos originários e contra ambientalistas etc.). 
Essa degradação a que chegou o país é de uma tristeza sem fim.


Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo
Dia 7: A Suíte de Caymmi e uma nota sobre o regente Martinho Lutero e o desmanche da cultura
Dia 8: Nyro, as drogas e o transporte
Dia 9: Tom Zé, a felicidade e o inarticulável


Nenhum comentário:

Postar um comentário