O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

30 dias de canções: A Suíte de Caymmi e uma nota sobre o regente Martinho Lutero e o desmanche da cultura

30 dias de canções

Dia 7: Uma canção de luta

"Suíte dos pescadores", de Dorival Caymmi. Vejam trechos de um ensaio do compositor com a família e Tom Jobim; ou a filmagem de Orson Welles no Brasil.
Trata-se realmente de uma suíte, pois ela congrega elementos diversos: a canção de trabalho, uma resposta das mulheres, a morte e o lamento, e a volta da canção de trabalho - o que é o mais triste: sabemos que o ciclo se repetirá, e o que significa aquele ofício.
Como em outros momentos da obra de Caymmi ("É doce morrer no mar", na calorosa voz do compositor), a canção de trabalho também é um pequeno réquiem, o que é compreensível, tendo em vista os perigos dessa profissão, e especialmente relevante se levarmos em conta que estamos no país da impunidade dos acidentes do trabalho: quem já teve a notícia da aplicação das sanções penais contra empregador em razão desses acidentes?
A equação entre trabalho e morte, na canção, porém, não leva na Suíte a um movimento de luta, e sim de busca de consolação religiosa.
Cantei-a algumas vezes no Coral da USP, no arranjo de Damiano Cozzella, e a ouvi com outros grupos. Ignorava, porém, que essa música era cantada pelos presos políticos em São Paulo durante a ditadura militar. Fui saber disso em atividade da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva', em maio de 2013, quando a vi com o Coro Luther King, regido por Martinho Lutero. Era uma homenagem a Olavo Hanssen, o primeiro preso político assassinado pelos agentes do Deops/SP durante a ditadura militar. 
Escrevi sobre o evento aqui: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/05/ato-em-memoria-de-olavo-hanssen-e.html
O evento começou depois das 16 horas e durou até quase 19, e contou com a participação do Grupo Cultural Luther King, regido por Martinho Lutero Galati, que cantou, entre as mesas, a "Suíte dos Pescadores", de Dorival Caymmi no arranjo de Damiano Cozzella (já a cantei, e não é fácil; vejam-na: https://www.youtube.com/watch?v=b8Nvr7Xx_Jo), música que, Ivan Seixas explicou, era cantada sempre que um preso político era libertado ou transferido. Concluídas as falas, o grupo ainda cantou e tocou "A Internacional".
Neste caso, o trabalho era político, de luta contra a ditadura. O réquiem, claro, tinha seu lugar por conta dos militantes mortos e desaparecidos. Mas a volta da canção de trabalho reafirmava o compromisso político contra a repressão.
Nesse contexto, tratava-se realmente de uma música de luta.
Uma palavra sobre o regente Martinho Lutero, que assumiu o Coral Paulistano em dezembro de 2013 no âmbito de um projeto de fortalecimento da instituição. O próprio portal da instituição diz: "Após sua missão original se perder em anos de decadência, em 2013 o grupo foi novamente fortalecido e revalorizado, passando a se chamar Coral Paulistano Mário de Andrade. Com uma programação extensa de apresentações de música brasileira erudita em diferentes espaços da cidade, retomou seu fôlego e retomou suas atividades resgatando sua autenticidade."
No aniversário de quarenta anos de assassinato do jornalista Vladimir Herzog no DOI-Codi de São Paulo, ele regeu o Luther King: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2015/12/retrospectiva-2015-palavras-publicas.html; uma das canções interpretadas foi o "O bêbado e a equilibrista", de João Bosco e Aldir Blanc, que foi o hino informal da campanha pela anistia.
Martinho Lutero regeu o Paulistano na homenagem a Inês Etienne Romeu promovida em abril de 2016 pela Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo. Ele incluiu o início da "Suíte dos Pescadores" na apresentação. 
No entanto, pouco depois, em junho de 2016, em mais um exemplo do contexto político de retrocesso, ele foi afastado do Paulistano, instituição criada, como se sabe, por Mário de Andrade. O irônico é o grupo ter assumido o nome de seu criador e que tenha sido demitido um dos poucos regentes no país que não mereceria esta ácida crítica que o escritor fez aos músicos brasileiros em crônica de novembro de 1939: (Sejamos todos musicais: as crônicas na 3a. fase da Revista do Brasil. São Paulo: Alameda, 2013):
[...] por mais valiosos que sejam um Henrique Oswald, um Leopoldo Miguez, um Glauco Velasquez, João Gomes de Araújo, Francisco Braga, Barroso Neto [...], que são os músicos representativos da primeira fase republicana, a obra que então fizeram não correspondia nem ao sentido democrático nem nacional que a República viera definir, com bases mais necessárias. [...] Mas por certo a culpa não cabe inteiramente à República. Caberá mais aos músicos, que vivem no mundo da lua, lidando com sons, ritmos e pautas, que jamais tiveram sentido intelectual. Em geral os músicos pensam um pouco mais tarde que os outros homens...
O alto nível técnico e o engajamento na vida social do trabalho de Martinho Lutero tornavam-no próximo dos ideais do escritor para o Coral.
Em São Paulo temos vivido um desmanche das instituições culturais. A Banda Sinfônica do Estado de São Paulo foi aniquilada há pouco. Já escrevi sobre o desmantelamento da TV Cultura e o escandaloso fim da Camerata Aberta em 2015.
Esses episódios, bem como, na esfera municipal, o escândalo de desvio de verbas no Teatro Municipal de São Paulo, que levou à investigação por corrupção e ao afastamento do maestro John Neschling em setembro de 2016, bem mostram que o modelo das organizações sociais (a que está submetido o Coral Paulistano), com sua lógica privatista, é o da precarização da cultura e do desmantelamento do Estado. As bibliotecas-parque do Rio de Janeiro, administradas por OS, fecharam neste ano.
Nem mesmo o argumento de que são mais econômicas serve para as OS: vejam que os presídios privados no Amazonas, seguindo esse modelo, gastavam mais por preso do que qualquer outra no Brasil ("Custo em cadeia privada no AM é quase o dobro da média nacional"), sem proporcionar melhor segurança, tampouco melhores condições para os detidos.
Por sinal, como lembrei no mês passado, a ONU havia destacado a precariedade desses presídios, que saíam tão caros aos cofres públicos e eram tão lucrativos para a iniciativa privada financiadora de campanhas eleitorais: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2017/01/nigel-rodley-1941-2017-o-direito.html
Contra esse desmantelamento e essa precarização também devemos lutar. Em caso contrário, nem mesmo restará uma canção para ser entoada durante a resistência.


Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo


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